UNIÃO EUROPEIA, UNIÃO AFRICANA E A DEMOCRATIZAÇÃO EM ÁFRICA
Ao contrário do que se possa hoje pensar, alguns dos actuais países africanos ascenderam à independência num quadro multipartidário, um pouco à semelhança das suas antigas potências coloniais. Foi assim nas colónias inglesas, nas francesas e nas belgas. O caso português constituiu a grande diferença.
A explicação para tais comportamentos reside no facto de as primeiras independências (ex-colónias inglesas, francesas e belgas), ocorridas em finais dos anos da década de 1950, e, sobretudo, na década de 1960, terem sido o fruto de processos negociais, mais ou menos pacíficos, entre os governos coloniais e representantes de formações políticas com existência legal nas colónias.
Mas, também houve excepções. Refiro, por exemplo, a Argélia, tornada independente em 1962, após a assinatura do Armistício de Evien, no rescaldo de uma dura guerra de libertação que custou inúmeras vidas. Instalou-se, pois, então, na Argélia, um sistema político mono partidário, com a FLN a apresentar-se sozinha às eleições. Ahmed Ben Bella eleva-se, assim, à condição de Presidente. Naquele país, o multipartidarismo só é instalado em 1988, após a eclosão de motins, e fica condicionado em 1992, quando tem lugar a ilegalização da FIS (Frente Islâmica de Salvação, vencedora das eleições legislativas), e o consequente estabelecimento do estado de emergência.
O Quénia é uma excepção no processo de descolonização africana realizado pelos ingleses, pois é precedido de uma sangrenta luta de libertação, liderada por elementos da tribo Kikuyu que, revoltados pela perda das suas terras, constituíram uma sociedade secreta que ficou conhecida como a Rebelião Mau-Mau. Mesmo assim, prevaleceu o princípio do multipartidarismo que, em 1982, regride para mono partidarismo quando se entra no período mais duro do governo de Daniel Arap Moi.
A República Democrática do Congo é também um exemplo de regressão de um sistema multipartidário para o mono partidarismo. Este país ascende à independência, após uma mesa redonda que envolveu nacionalistas e a Bélgica, a potência colonial. Decidiu-se, então, pela criação de 6 governos provinciais e um forte governo central. Pela via eleitoral, Joseph Kasavubu (chefe do Partido Abako), tornou-se Presidente da República e Patrice Lumumba (líder do Movimento Nacional Congolês), ficou Primeiro-ministro.
Instalou-se o caos no Congo. Lumumba é preso e morto. Moisés Tshombé, governador da província mais rica, sobretudo em minerais, o Katanga, proclama a sua secessão. Outras províncias ameaçam seguir a mesma via, e o Exército assume verdadeiramente as rédeas do poder até que, finalmente, em 1965, Joseph Mobutu se faz proclamar Presidente da República. Segue-se um longo período de regime de um único partido.
Podemos, pois, dizer que muitos dos poderes que se instalaram em África foram legitimados pelo papel que jogaram no processo de ascensão à independência, quer tenham sido processos pacíficos, quer tenham implicado o recurso às armas. Mas, nem todos começaram pela via da governação solitária, sem oposição.
O caso português é diferente, sobretudo porque o processo de ascensão às independências teve lugar num contexto em que a própria potência colonial estava numa verdadeira encruzilhada: ou se implantava a democracia em Portugal, ou o país cedia às tentações totalitárias de algumas das suas forças políticas internas.
No caso das colónias portuguesas, prevaleceu o princípio da legitimação política pela via da participação na luta de libertação nacional, independentemente dos ideários dos movimentos de libertação. Mas, ao contrário do que sucedeu com a maioria das colónias francesas e inglesas (ou mesmo no Congo-Belga), todos os países africanos de expressão portuguesa iniciaram o seu percurso como nações independentes com sistemas mono partidários.
Os anos que se seguiram às independências da maioria das ex-colónias, foram marcados por golpes de estado militares que puseram fim às poucas liberdades democráticas que então existiam. Foram dezenas os golpes de estado que ocorreram no nosso continente desde 1960, fazendo sobrevir regimes políticos ditatoriais com diversas características, até mesmo as mais funestas.
Com ligeiras excepções, a tónica dos processos de descolonização em África assentou na manutenção dos interesses económicos e/ou geo-estratégicos das potências coloniais, os quais julgava-se serem melhor assegurados pelos chamados regimes fortes (autoritários ou ditatoriais). Alegadamente, tais regimes fortes evitariam a desagregação dos novos estados, permanentemente ameaçados por eventuais convulsões. É essa perspectiva (a salvaguarda dos interesses das potências coloniais e o medo da desagregação dos estados) que torna simpáticos aos olhos das antigas potências os golpes que se vão sucedendo.
A rivalidade decorrente da Guerra Fria entre o Ocidente e os países do chamado Bloco do Leste foi um estímulo à manutenção de muitos regimes autoritários em África, ora suportados por países ocidentais, ora respaldados sobretudo pela União Soviética; mas, também, pela China, mesmo que em menor número. Poucos países africanos escaparam a esse determinismo.
Com o final da Guerra Fria e a consequente alteração da geoestratégia, com a própria consolidação do mercado europeu sobrevieram, então, novos interesses e emergiram outros conceitos: os países ocidentais decidiram promover reformas políticas em África que passariam pela realização de eleições, por práticas de boa-governação e transparência na gestão da coisa pública, combate à corrupção, etc.
Depois de 1990, e num curto período de tempo, assiste-se a uma verdadeira onda multipartidária em África, inclusive, com alterações de poder por via dos processos eleitorais. Cabo Verde terá sido um dos países onde se verificou uma tão rápida e profunda alteração.
Parecia que acabáramos de entrar numa nova fase da vida dos povos africanos, com os direitos dos povos e dos cidadãos a serem tidos em conta pelos governantes. Mas, afinal, foi sol de pouca dura: os poderes instalados reganharam o fôlego perdido e as eleições que se seguiram quase que, invariavelmente, culminam nos mesmos resultados. Vitórias estrondosas dos poderes instituídos. Deixou de haver alternância. Ficou-se apenas pelas eleições, quase sempre contestadas como fraudulentas.
Hoje, vamos já assistindo a factos curiosos e bastante contraditórios: os poderes instituídos fazem-se reeleger com “scores” eleitorais demolidores. Mas, depois, esses mesmos poderes são contestados nas ruas por multidões imensas que os fazem derrubar. Sucedeu assim na Tunísia, no Egipto, com o povo na rua, em fúria. Agora é o ditador líbio que está encurralado: de um lado, está uma parte do seu povo a querer linchá-lo, do outro, está grande parte da comunidade internacional a querer ajustar velhas contas. Muhmmar Gaddafi conhece os dias mais angustiantes do seu longo mandato.
Também há casos em que os ditadores “reciclados” se recusam a aceitar as derrotas nas urnas, forçando soluções de compromisso. Compromissos que visam tão-somente manter o poder real nas suas mãos. Lembro-me, por exemplo, dos casos do Quénia e do Zimbabwe. Ou do caso mais recente que acabou por degenerar em convulsão civil e militar de enorme gravidade: a Costa do Marfim. E mesmo até as últimas eleições presidenciais na Nigéria que esteve à beira de uma guerra civil. A União Africana tem-se mostrado incapaz de ajudar a dar solução a todas estas situações.
Mesmo que tenha inserido nos seus princípios reitores a defesa da democracia e do estado de direito, a União Africana vive o dilema de ter no seu seio líderes que açambarcaram o poder por meio de golpes de estado militares (em alguns casos, manchados por vastas poças de sangue). Sentam-se também nos cadeirões da União Africana líderes quase eternos e que ainda reclamam a legitimidade da luta de libertação, ou quem se tenha feito eleger com o recurso a métodos fraudulentos, ou os que são herdeiros do poder dos progenitores.
A União africana não possui instrumentos de política eficazes para promover a democracia no nosso continente, porque a maioria dos seus líderes não possuem tal cultura, e muito dificilmente se adaptarão a mudanças reais. A partir daí já é mais fácil compreender o modo titubeante como a União Africana actua, quando surgem situações de violação das mais elementares regras democráticas. Por isso, passeiam-se, altaneiros, pelos seus corredores Mwai Kibaki, do Quénia, e Robert Mugabe, do Zimbabwe, perdedores de eleições presidenciais nos seus países e que depois fizeram chantagem com o temor de guerras civis. E a UA protege-os, se lhes são impostas sanções internacionais. Cobre igualmente o Presidente do Sudão, responsável máximo (e confesso) de um conflito que já custou ao país muitos milhares de vidas humanas no Darfur.
É esta a solidariedade africana de que necessitamos? Eu penso que devemos ser apenas solidários para com aqueles que respeitam regras civilizadas de convivência social, para com os que dão garantias de materialização nos seus países das liberdades democráticas.
A União Africana não tem uma matriz distintiva. Afinal, ela funciona como um centro de apoio aos políticos que se eternizam no poder, independentemente dos sacrifícios que tenham que ser consentidos.
No recente caso da Costa do Marfim, assistiu-se a tentativa de legitimação do usurpador do poder. Acenou-se com o espantalho do regresso da velha potência colonial e da violação da soberania de um estado membro. Desvalorizou-se, porém, a outra componente do problema: a atitude antidemocrática daquele que perdeu, e cuja derrota foi reconhecido por quase todos, com excepção dele próprio e de poucos mais que estão perfeitamente identificados. Isso em nada contribui para a democratização da vida no nosso continente.
A União Europeia e outros países ocidentais utilizaram, até a pouco tempo, os recursos da cooperação internacional com meio de pressão política para a promoção de reformas políticas nos países africanos. Mas centraram-se, sobretudo, na realização de eleições.
Os países ocidentais e, particularmente, a União Europeia, pouco têm feito para a real democratização do nosso continente, uma vez que quase se limitam à exigência de realização de eleições. De modo algum tocam na própria essência da democracia. A realização de eleições, mesmo que amplamente contestadas, permite a legitimação política pelas potências ocidentais e pelos organismos financeiros internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, de regimes corruptos instalados.
A certificação da justeza dos processos eleitorais em África quase se tem resumido a uma observação visual da extensão das filas no momento do voto. São sistematicamente descurados todos os outros procedimentos, especialmente aqueles que antecedem o momento do voto, e mesmo até os mecanismos de apuramento dos resultados.
Em África, as fraudes eleitorais têm antecedentes. Vou enumerar alguns: i) Há um domínio absoluto por parte dos poderes instalados sobre os instrumentos de comunicação de massa; ii) Há o controlo total dos instrumentos financeiros por parte de quem está no poder; iii) Controlo, perseguição e repressão das oposições; iv) Manutenção de polícias políticas ao serviço de quem manda; v) Controlo absoluto partidário sobre o aparato administrativo do estado, etc.
Em nome do princípio da não ingerência nos processos internos, os países ocidentais – de que a União Europeia é uma peça essencial – fazem por ignorar toda a mecânica que desvirtua e retira seriedade aos processos democráticos. Passa-se por cima do que é essencial e sobrevaloriza-se o acessório.
A prioridade ocidental é, pois, a manutenção e o aprofundamento das relações com os governos instalados, um comportamento que é estimulado pela crescente competição em África com a China e outras potências emergentes, como a Índia, ou mesmo até o Brasil.
Será também do interesse das potências ocidentais a manutenção de muitos dos actuais regimes autoritários, sob o pretexto de que eles garantem uma maior eficácia na utilização dos recursos que são disponibilizados. Mesmo que, publicamente, digam estar preocupados com a questão da corrupção e da falta de transparência. Parece que temem qualquer eventual incerteza decorrente da instalação de soberanias internas democráticas, que podem ser acompanhadas por períodos de instabilidade.
Temos casos de países carentes de democracia e que possuem importantes recursos naturais, muito em especial, recursos energéticos. Muitos destes países estão já a exportar capitais e domiciliá-los nas antigas metrópoles, acasalando aí os seus interesses com interesses locais. Por isso, os estados democráticos nessa situação estão muito sujeitos aos lobbies internos.
Os países com muitos recursos, mas carentes de democracia, estão igualmente a servir de receptador de força de trabalho proveniente da Europa, um continente em crise de crescimento económico e, por isso mesmo, pouco capaz de gerar suficientes postos de trabalho.
Não nos podemos esquecer de um outro pormenor importante: a luta contra o terrorismo e o temor ao islamismo radical condicionam muito a acção dos governos ocidentais, levando-os a apoiar regimes antidemocráticos em África que, aparentemente, lhes dão garantias de solidariedade.
Os actuais desenvolvimentos no Norte de África, onde se multiplicam e tornam vitoriosos movimentos democráticos, podem ter chamado a atenção do mundo para uma nova abordagem sobre África. A Europa e os EUA prometem apoio multifacetado a esses movimentos. Finalmente, pode ser uma luz no fundo do túnel e um sinal de que o sofrimento dos africanos causado pelos velhos ditadores está a chegar ao fim.