“A Identidade Cubana e a Experiência Angolana”
A primeira “Operação Carlota”
Cinco de Novembro de 1975 marcou o 132º aniversário da rebelião dos escravos da plantação de açúcar Triumvirato, na província de Matanzas, liderada por uma mulher africana escravizada chamada Carlota. Num dos primeiros actos da sua campanha de libertação, Carlota, acompanhada pelos seus capitães, dirigiu-se a outra plantação, Arcana, na qual um conjunto de co-conspiradores se encontravam detidos no seguimento de uma revolta ali ocorrida em Agosto do incendiário Verão daquele ano, quando os africanos e seus descendentes se ergueram contra os seus escravizadores por toda a província. À medida a que se espalhou a notícia dos sucessos de Carlota, um estado após outro irrompeu em insurreição – San Miguel, Concepción, San Lorenzo e San Rafael. Simultaneamente, os cimarrones organizaram grupos de assalto para atacarem as propriedades de café e gado da região. Pouco tempo passado, Carlota e os seus companheiros foram perseguidos por tropas fortemente armadas sob as ordens do Governador. Em questão de poucos meses, os líderes rebeldes tinham sido apanhados e os seus perseguidores decidiram levar a cabo a mais horrível execução concebível, para servir de aviso exemplar e demonstrar a sua implacável determinação em desmembrar o corpo dos escravos revoltosos - uma Carlota ainda viva foi amarrada a cavalos dispostos em direcções opostas, e depois puxada e esquartejada. Mais do que qualquer outra faceta da sua história, foi o sentido de solidariedade de Carlota - o seu compromisso altruísta com a libertação dos seus pares - que, mais de um Século depois, animou a intervenção militar em Angola e, de facto, acabou por simbolizar a componente africana na identidade cubana.
O culto dos antepassados
“O sangue de África corre abundantemente nas nossas veias,” declamou Fidel Castro na cerimónia de encerramento do primeiro Congresso do Partido Comunista Cubano, em 22 de Dezembro de 1975. Segundos antes, ele tinha feito o pronunciamento inédito de que Cuba era uma nação latino-africana, e agora o primeiro-ministro cubano procurava recordar aos seus ouvintes – e, sobretudo, aos seus adversários em Washington – as raízes e responsabilidades daqueles laços de sangue africano. Feito poucas semanas após o lançamento da Operação Carlota, este discurso marcou a primeira vez que a missão militar fora publicamente reconhecida e introduziu conotações metafóricas e espirituais num discurso internacionalista previamente pintado com tonalidades políticas mais duras: “E de África, como escravos, muitos dos nossos antepassados vieram para esta terra. E muitos foram os escravos que lutaram, e muitos os que combateram no exército de libertação da nossa nação. Somos irmãos dos africanos e estamos prontos para lutar em nome dos africanos!” É difícil sobrestimar a profundidade emocional da força contida na ideia de que os cubanos abrigavam uma herança biológica única, mesmo sagrada, que tornava obrigatório o envolvimento na guerra civil em Angola, não somente a partir de um imperativo moral ou político mas, de forma ainda mais persuasiva, devido a um inexorável chamamento do sangue pelo sangue. Para uma sociedade ainda assombrada pelos fantasmas de um sistema de violência institucionalizada baseado na diferença fisiológica, esta redescrição poética da realidade prometia nada menos do que a possibilidade de uma expiação socialmente reparadora. Ao invocar o corpo nacional (“as nossas veias”), os cubanos entraram no mundo do mito, no qual o sangue historicamente derramado, “o sangue que identifica, o sangue que é traficado, o sangue espalhado na guerra, até o sangue gerado pelo amor,” converge num poderoso rio de expiação comum. Taussig informa-nos que “em muitas sociedades na Ásia, África e América Latina não é uma substância de feitiçaria mas o espírito de um humano morto através do qual são encenadas noções de interioridade/exterioridade.” Similarmente, o falecido antepassado escravo é aqui empregue para marcar os perímetros do corpo sociopolítico cubano, de forma a que o sangue africano partilhado se torne indistinguível do derramamento de sangue africano e, em consequência desta linhagem de mistura de sangue, todos os cubanos, independentemente do seu antecedente sociocultural, podem ser considerados como “irmãos dos africanos.”
Este culto dos antepassados, como qualquer mitologia, é uma força unificadora ou harmonizadora já que, como lembra Joseph Campbell, o papel da mitologia é integrar “o indivíduo na sua sociedade e a sociedade no campo da natureza.” Para o conseguir, os mitos sugerem, por um lado, as potencialidades dentro de determinada sociedade e, por outro, “a actualidade que se esconde por detrás do aspecto visível.” A linguagem dos mitos é a metáfora. Com a sua capacidade para coactivar os dois domínios, a linguagem metafórica consegue transcender os limites do tempo e do espaço. Da mesma forma, os mitos só podem revelar alguns aspectos da verdade social quando entendidos metaforicamente. A poesia, enquanto linguagem metafórica, lida com a tensão entre opostos e desenvolve-se sobre o dualismo, e é possível que esta dinâmica explique a sua importância durante as fases liminares de uma sociedade. Isto pode, em contrapartida, explicar parcialmente o alto estatuto que é conferido a poetas em algumas sociedades coloniais e pós-coloniais empenhadas em processos políticos de unificação, como ilustra o capítulo V relativamente à solidariedade Cuba-MPLA.
Da mesma forma, após a imolação metafórica do passado escravo da nação por Castro, na sua invocação simbólica dos ritos de adoração do antepassado, o que ficou foi o âmago das relações raciais cubanas. Face às alegações feitas pelo Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, e de outros membros da administração Ford de que a missão cubana em Angola era uma guerra soviética por procuração, e que, por conseguinte, os objectivos cubanos deviam ser vistos com suspeição, o governo Castro sentiu uma certa urgência em avançar a contra-alegação de que a decisão do envio de tropas só tinha sido tomada depois de o exército sul-africano ter entrado no território angolano com a aprovação tácita dos Estados Unidos. A África do Sul, enquanto bastião do apartheid, era muito desprezada pelas nações africanas recém-independentes. Assim, à luz da escravização africana na história da nação, era extremamente importante para o governo cubano estabelecer uma clara linha divisória entre o passado e o presente: para demonstrar não apenas que as estruturas legislativas do racismo institucionalizado tinham sido desmanteladas, mas que a Revolução tinha também demolido as estruturas do sentimento de associação à velha ideologia racista.
Havia discriminação no nosso país. Quem não o sabe? Quem não se recorda? Em muitos parques, aqui os brancos e ali os negros. Quem não recorda que em muitos lugares, centros recreativos, escolas, não deixavam entrar os descendentes de africanos? Quem não recorda que havia discriminação na Educação, no trabalho, em todas as dimensões da vida? E quem são hoje os representantes, os símbolos da mais odiosa, da mais desumana forma de discriminação? Os fascistas e racistas da África do Sul. E os imperialistas ianques, sem escrúpulos de qualquer espécie, enviaram tropas da África do Sul para esmagar a independência angolana, e estão indignados por apoiarmos Angola, e estão indignados por defendermos África. Obrigados pelos nossos princípios, pela nossa ideologia, pelas nossas convicções e pelo nosso sangue, defenderemos Angola e defenderemos África!
A primeira coisa que devemos aqui notar é a confissão de transgressões passadas acompanhada de um apelo a todos os cubanos para partilharem um acto de memória colectiva através da repetição da frase “Quem não se recorda?”. O uso do impessoal pretérito imperfeito (“havia”) transmite a noção de práticas continuamente repetidas por antecedentes anónimos num passado imperfeito (no sentido de um passado manchado ou incorrecto). Depois, somos abruptamente afastados da sordidez de há muito tempo atrás e trazidos ao tempo presente com a questão, “E quem são hoje os representantes, os símbolos da mais odiosa, da mais desumana forma de discriminação?”, imediatamente conjugada com a resposta declarativa de que a África do Sul e os Estados Unidos persistem nas odiosas práticas do racismo institucionalizado, transferindo assim a localização da culpa para longe da esfera cubana. Contudo, é só com a viragem para o futuro – “defenderemos” – complementada com a promessa de que os cubanos darão o seu próprio sangue pela causa cubana, que a transmutação final se completa. Por outras palavras, a declaração de que os cubanos – especialmente os instrumentais descendentes de donos de escravos – estão dispostos a sacrificarem-se pelos negros africanos (o grupo humano considerado o mais depreciado) purgava sentimentos antagonistas de medo e piedade ao mesmo tempo que proporcionava testemunho retórico à completa transcendência do passado racista do país.
Em certo sentido, estas palavras desempenham uma dança de sete véus de ocultação e revelação, e com isto quero dizer que a recordação e o esquecimento simultâneos da história cubana iluminam o racismo passado enquanto obscurecem laços pessoais e culturais duradouros com os perpetradores desse racismo. Só não nomeados os vergonhosos racialistas do presente – os Estados Unidos e a África do Sul –, o que constitui prova adicional de que nos encontramos agora no território do mito, pois, como explica Joseph Campbell, este é um elemento comum das mitologias sociologicamente orientadas: “Ou seja, o amor e a compaixão são reservados ao grupo, e a agressão e o abuso são projectados para o exterior, sobre outros. A compaixão fica reservada a membros do nosso próprio grupo.” Deste ponto de vista, podemos dizer que, ao se referir indirectamente a racistas cubanos ou, por outras palavras, ao revelar os seus feitos ocultando em simultâneo as suas identidades, Castro estava a adoptar o tipo de compaixão que Campbell tinha em mente. Assim, ao devolver os donos de escravos ao redil, a história do racismo em Cuba é reinscrita como mito social, e quaisquer traços de feitos racistas que sobrem do passado podem ser lavados pelo derramamento presente e futuro de sangue cubano. (Capítulo 4, “Rituais de Guerra”)
Excerto de A Identidade Cubana e a experiência Angolana (Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2012) por Christabelle Peters