A propósito das “línguas nacionais”
Na conferência nacional do MPLA, realizada na véspera das eleições gerais de 2008, eu sugeri que deveria ser elaborada uma política linguística abrangente e articulada, de modo a fazer da nossa diversidade nesse domínio uma mais-valia efectiva, o que, quanto a mim, pressupõe superar conceitos subjectivos, emocionais e equivocados, assim como eliminar os factores que apenas dificultam a desejada e necessária cooperação entre as línguas africanas e a língua portuguesa, como a dupla grafia. A minha proposta caiu rapidamente no limbo do esquecimento, antes mesmo do fim da sessão onde a formulei.
A proposta de lei sobre o estatuto das línguas angolanas de origem africana (chamadas “línguas nacionais” pelo ministério da Cultura, que a apresentou) confirma, como se isso ainda fosse necessário, a necessidade dessa política. A rigor, a referida lei deveria fazer parte desta última, ou seja, o aconselhável seria definir primeiro a política linguística global e, depois, aprovar os instrumentos particulares, estabelecendo o estatuto das diferentes línguas usadas (e a usar) pelos angolanos.
O meu objectivo não é, no presente texto, adiantar quaisquer ideias relativas ao provável conteúdo daquilo que eu entendo deveria ser a política linguística angolana, mas abordar apenas um aspecto que, na minha opinião, constitui uma das razões que explica, precisamente, o facto de nem todos concordarem com a necessidade dessa política: o preconceito, por parte de alguns sectores, em relação à língua portuguesa, esquecendo-se aqueles que o alimentam, voluntária ou involuntariamente, dos enormes riscos políticos que essa atitude acarreta.
O uso do conceito de “língua nacional” é o primeiro exemplo dessa atitude. De facto, a expressão é utilizada, de um modo geral, com o objectivo de desvalorizar politicamente a língua portuguesa, mas, observando bem, tal intenção não passa de uma ilusão: a realidade é que, trinta e seis anos depois da independência, fala-se mais português em Angola do que no período colonial.
Por outro lado, o uso predominante, entre nós, desse conceito não tem nada de científico. Com efeito, o termo “nacional” pode ser definido em quatro planos: em termos de origem, dimensão, alcance ou pertença. Acontece que, originariamente, a única língua “nacional” angolana talvez seja o khoisan ou a língua dos pigmeus, que foram os primeiros habitantes do território que hoje constitui Angola; mesmo se incluirmos as línguas bantu, apenas o kimbundu e o umbundu são exclusivamente “nacionais”, pois todas as outras são transfronteiriças.
Em termos de dimensão, nenhuma língua falada em Angola pode ser considerada “nacional”, pois as duas línguas mais usadas (português e umbundu) são-no por apenas 30% da população, aproximadamente. Quanto ao alcance, nenhuma das línguas africanas faladas no país tem um alcance nacional. A nossa única língua de alcance e comunicação nacional é o português. É preciso lembrar a importância que isso tem para a unidade?
Resta a pertença. Nesse sentido, não tenho dúvidas: todas as línguas faladas historicamente em Angola e que sejam, ao mesmo tempo, línguas de cultura e de comunicação da sua população (no todo ou em parte) devem ser consideradas “nacionais”. Isso inclui também a língua portuguesa, que há muito foi “nacionalizada”, tal como aconteceu, por exemplo, com a mandioca, que é originária da América do Sul.
Para quem não sabe, aliás, os angolanos têm contribuído há muitos séculos para a africanização da língua portuguesa. A mais importante variante do português (em termos demográficos), o chamado “português do Brasil”, além de possuir centenas de vocábulos provenientes do kimbundu, do kikongo e do umbundu, é igualmente influenciado por essas línguas no domínio da estrutura e do sotaque. A história, portanto, não começou com “bué”, “cota” ou “bazar” (que os paulistas traduziram para “vazar”).
A constituição de 2010 deu um passo decisivo no sentido de ultrapassar a confusão e a demagogia no domínio linguístico, ao mencionar apenas as “línguas” faladas em Angola e eliminando o termo “línguas nacionais” para se referir às línguas angolanas de origem africana. Por isso, os deputados recomendaram ao ministério da Cultura a alteração da designação da proposta de lei relativa ao estatuto das referidas línguas para “Estatuto das Línguas Angolanas de Origem Africana”. Como é óbvio, a conformidade da legislação ordinária com a constituição é um ponto indiscutível. Mas, pessoalmente, não me repugnaria chamar a essa lei “Estatuto das Línguas Nacionais de Origem Africana”.
Na verdade, as línguas nacionais angolanas têm uma dupla origem: africana (o khoisan e as línguas bantu faladas no país) e europeia (o português). Talvez se possa discutir, ainda, a inclusão nesse conceito de uma outra língua de origem estrangeira, mas usada por grupos nacionais importantes: o lingala, que, como ensinam alguns especialistas, é um crioulo nascido como língua de comércio ao longo do rio Congo.
Uma coisa é certa: os angolanos precisam de falar ao mesmo tempo as suas línguas de cultura (que, para alguns, são africanas e, para outros, é a língua portuguesa, na sua variante angolana, em formação), a sua única língua de comunicação nacional e primeira língua de contacto internacional (o português) e a língua global (ou as línguas globais) do nosso tempo (o inglês e, quem sabe, num futuro mais ou menos próximo, o mandarim). Diante disso, só por distracção é possível ignorar a premente necessidade de uma política linguística abrangente e articulada.
Publicado originalmente no Novo Jornal (Luanda) no dia 18.11.11