Arménio Vieira, o poema, a viagem, o sonho
Logo após ser justamente galardoado com o Prémio Camões em 2009, tornando-se o primeiro escritor cabo-verdiano a recebê-lo, o praiense Arménio Vieira brinda seus admiradores com O poema, a viagem, o sonho (Editorial Caminho), novo livro de poesia.
Neste, o vate das ilhas opta pela tessitura em prosa poética e atinge ótimos resultados acerca de intrigantes indagações existenciais e metafísicas, apropriação e referências várias à literatura e à filosofia ocidental (“Li-os todos”, avisa-nos o poeta, lembrando “No Inferno”), para além da metapoética transgressora, mostrando o pleno domínio da poesia. Assim como a consagrada ironia do poeta e a sua postura independente que aconselha: “Apaga as escrituras. (…) Em ti há um marinheiro demandando uma ilha onde ninguém ainda esteve. Também em ti encontrarás o mapa, a bússola e o navio. Há coisas a que não deves atribuir nomes. A tua ilha não tem nome.”
É a viagem interior proposta ao sujeito que se quer independente, com o “Poema, que é também, mistério”, transportado pelo sonho. O sonho, condição do ilhéu, da evasão do “Poema de quem ficou” de Manuel Lopes, de que “teve saudades estranhas, de terras estranhas”, motivo de releituras como a de NZé dy Sant’Y’Águ em “Na morte de Baltazar Lopes da Silva, que também é o poeta Osvaldo Alcântara, “nunca divisados na retina dos que partiram/ nunca vistos e encontrados no chão inóspito/ e diaspórico da terra-longe”; é também revisitado por Vieira citando Homero: “O viajante que jamais viaja é quem deveras viaja, pois que, viajando nunca, ele sabe dos múltiplos dons com que o Destino distingue o sonhador. Sendo assim (por arbítrio alheio, é certo), o navegante, que jamais teve navios e nunca os desejou, mesmo assim, ele é o detentor das rotas que levam aos portos por nomear. Diga-se então que o azul de tantos céus, que Ulisses viu, como ninguém houvera visto, mais não é que os sonhos de quem, em terra, os sonhou no mar.”
Subverter a tessitura da poesia é uma especialidades de Vieira. “Escandir o verso é ofício a que se furta o poeta”, afirma o vate, “porém ele se escusa de escandir o verso, pois sabe que é vão meter a faca no que não pode ser cortado”. Parecendo justificar a opção pela prosa poética, o poeta vale-se da ironia para criticar os rimadores de versos fáceis e, em seguida, celebrar António Vieira e Fernando Pessoa: “De repente um pobre homem, sem apoio de mágica ou de alquimia, que também é magia, converte-se num aparelho de fazer poemas. Ele então que os faça, pois assim quis a sina. Se for soneto, (…) que eles saiam mais ou menos bem rimados. Atenção: quem rima choro com cachorro, jamais apanha a chave de ouro, e no fim é o cão que fica a rir-se. (…) Já que o santo era padre e como a poesia é o tema, encerre-se o texto com Vieira, também padre e António, tanto mais que os sermões, a mor das vezes chatos, em Vieira eram poemas. Entendeu-o Pessoa e, a dobrar, também eu. Por me chamar Vieira?”
A poesia ousada deste vate maior das ilhas apresenta belas homenagens à literatura ocidental ao unir poetas de diferentes épocas: Homero/Rimbaud, Safo/Baudelaire; para além das citações a Borges, Camus, aos gregos em “Grécia, mater mundi” etc.
Labiríntica poesia, fascinante leitura. A sonhadora viagem proporcionada pelos poemas deste Vieira, dito Arménio, reafirma-o entre os melhores da lusografia contemporânea.
“Eu, que de Homero recebi o poema no instante em que o poema nasce, e vi o Inferno pela mão de Dante, tal-qual Leopardi mais tarde o viu, e, após me afundar no rio onde Hamlet e Lear beberam o vinho que enlouquece, comecei a ter visões que Rimbaud, De Quincey e Poe registaram em negros textos; eu, que no eterno transportei a bandeira que era peso nas mãos de Elliot, e renovei a charrua com que Pound lavrava os versos, e de Whitman furtei-me ao licor, que em Álvaro, digo Campos, porque dorido e menos doce, sabia melhor; então que falta em mim para de Camões herdar a estrela, que Pessoa deixou fugir?”