Para não esquecer o passado – Breve História Colonial em África, pinturas de Tchalê Figueira
A sangrenta experiência colonial em África consolidada durante a Conferência de Berlim (1884-1885) é retratada de forma corrosiva nas pinturas da série “Breve História Colonial em África”, do artista plástico Tchalê Figueira, que objetiva não deixar que esse triste passado seja revisto de forma branda ou rasurado da História. Com isso, o artista procura desvelar terríveis personagens e demonstra a agonia dos povos africanos em um expressionismo voraz e de forte impacto. A análise aqui presente pretende mostrar como Tchalê Figueira realiza plasticamente em dez pinturas (anexadas ao final do texto) suas denúncias ao sistemático genocídio de negros africanos durante o colonialismo. O suporte teórico escora-se nos historiadores Joseph Ki-Zerbo, Carlos Moore, Albert Memmi, entre outros.
Neste início de século XXI vivenciamos perigosos revisionismos históricos com o intuito de suavizar imensas tragédias da história da Humanidade, que encontram espaços generosos nos veículos de comunicação dominantes em uma procura incessante para silenciar as vozes de pesquisadores comprometidos com os estudos pós-coloniais, desveladores de visões que desmascaram os cínicos e hipócritas discursos hegemônicos.
Vários são os agentes nos países pós-coloniais nas diversas áreas do saber e das artes a lutarem contra a história oficial de suas nações. No continente africano essa situação é ainda mais grave, dentre vários motivos, em razão do recente processo de soberania desses países, principalmente as ex-colônias de língua portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Atento ao tempo em que vive e às mazelas que uma perniciosa amnésia induzida em relação à representação do colonialismo em África, o artista plástico e também escritor Tchalê Figueira elaborou a recente série de pinturas intituladas “Breve História Colonial em África”, na qual procura resgatar terríveis passagens vivenciadas pelos africanos na virada do século XIX para o XX.
Atendendo sugestão de G. T. Didial, um dos heterônimos de João Manuel Varela, Carlos Alberto Silva Figueira passa a usar o nome Tchalê (nome pelo qual é conhecido pelos moradores de sua cidade) para designá-lo. Nasceu em 1953, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Aos 17 anos, em meio às guerras de libertação nas colônias africanas dominadas por Portugal, em um ato de rebeldia, Tchalê decide sair clandestinamente de Cabo Verde para não servir ao exército fascista português e assim lutar contra seus pares. Ruma a Roterdão, na Holanda, mas pouco tempo aí permanece. Viaja pelos mares da Europa à Ásia e às Américas.
Em 1974, fixa-se na cidade da Basileia, Suíça, onde frequenta a escola de belas-artes e torna-se artista plástico. Retorna ao Mindelo somente em 1985 onde encontra-se até hoje.
Atualmente é um dos mais prestigiados artistas plásticos de Cabo Verde com obra reconhecida por diversos países. Além disso, já possui uma considerável obra literária com os seguintes livros de poesia: “Todos os náufragos do mundo” (1992), “Onde os sentimentos se encontram” (1998) e “O azul e a luz” (2002); enquanto em prosa publicou “Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação” (2005), “Solitário” (2005) e “Contos da Basileia” (2011).
Acompanho com extremo interesse as obras plásticas e literárias de Tchalê Figueira através de seu blog “Arco da Velha” – tchale.blogspot.com – ou por redes sociais como o Facebook. Tchalê é um artista inquieto, indignado e revoltado com as injustiças de diversas ordens, principalmente as motivadas por políticos, e não deixa de expor suas opiniões com veemência. Essa vontade de manifestar-se a favor dos oprimidos acompanha suas pinturas,
tornando-se uma característica costumeira. Estão lá representados os homens e mulheres marginalizados da cidade do Mindelo, na sua rua da Praia. Prostitutas, bêbados, traficantes, pescadores, pessoas ociosas do cotidiano e esquecidas pelo poder público, mas que ganham representatividade em suas telas. Uma pintura expressionista em suas formas distorcidas da figuração humana – geralmente em primeiro plano –, muitas vezes agressivas na denúncia social, em outras ocasiões apresentam-se irônicas, como também podem ser alegres nas celebrações festivas do cabo-verdiano. Suas cores obedecem a recusa de representação do real típica do fauvismo francês. Os fundos de suas telas costumam ser grandes manchas de cor, abstratizantes e de gestualidade agressiva como os melhores nomes do expressionismo abstrato, dentre tantos, Clifford Stills, são indefinidos e com a intenção de destacar a presença da figuração humana, pois é do homem que a obra deste mindelense se preocupa. Ou seja, Tchalê Figueira possui uma identidade plástica, ou como afirmou G. T. Didial: “há nestas obras uma linguagem própria e uma visão de mundo” (DIDIAL, 1999, p. 98). Traço característico e temáticas de forte contundência social são marcas nas telas deste grande pintor.
Breve História Colonial em África
A partir de 1860 o continente africano sofre com os violentos ataques dos europeus, favorecidos por tecnologia bélica avançada à época, que Tchalê Figueira representa nas abomináveis figuras de Leopold II, rei da Bélgica, e incentivador das atrocidades cometidas no Congo, seguidas pelo desbravador e sanguinário Henry Stanley, representado na pintura “Henry Stanley, o monstro” e “Stanley Cap”, para quem “os selvagens apenas respeitam a força, o poder, a audácia e a decisão” (SERRANO, WALDMAN, 2008, p.216), e pelo não menos abominável Guillaume Van Kerckhoven e do odioso Otto Von Bismarck na pintura “Clube alemão das colônias – Peitche und Zuken Brot”, um dos articuladores da Conferência de Berlim.
Nas telas representativas desses repugnantes seres humanos, Tchalê recorre ao uso do texto para não deixar dúvidas sobre quem está representado. Para além da denúncia, salienta-se o caráter didático e necessário para que esses protagonistas do genocídio étnico não sejam rasurados da história africana. A representação da força e da soberania na figura ornada com suas patentes e designações reais de Leopold II, seu sorriso sádico em rosto típico de máscara africana, contrastam com o pavor dos africanos mortos e da presença predominante do vermelho a sangrar nosso olhar, a esquartejar nossa memória, e a partir daí, a retomada de consciência de um passado desesperador que a História não pode apagar. O pintor reflete em expressões hostis e sorrisos expondo carnívoros dentes as violentas ações desses monstros no período colonial. Aliás, de um modo geral, os sorrisos perversos com dentes escancarados são caracterizadores na obra plástica de Figueira dos líderes repressores da história da Humanidade em suas diversas facetas.
As expressões reveladas nas pinturas de Tchalê demonstram o ódio pelos africanos e o prazer que essas figuras tinham em cumprir as suas cruéis missões. Pinturas agressivas, todavia, jamais ultrapassariam os atos violentos motivados por seus personagens, que, infelizmente, foram reais. E trata-se de uma realidade para a qual não devemos esquecer.
Homens que acompanharam o histórico de violência do tráfico negreiro e confirmaram a banalização de atos cruéis aos negros africanos. Cabe a lembrança de um artista ao qual a obra de Tchalê Figueira dialoga com frequência, e nessa série em especial, o inglês Francis Bacon, que também utilizava um expressionismo enfurecido para retratar a violência do cotidiano: “Quando trago a violência para pintura, dizia ele, não se trata da violência da guerra, mas, da violência da realidade por si mesma.” (SYLVESTER, 2007, p. 81).
Violência exacerbada na representação de sadismo e prazer no sorriso de Guillaume Van Kerckhoven, com sua pose de satisfação em traje militar a exibir todas as suas medalhas ao cumprir a missão de exterminar negros, em contraponto às expressões aterrorizadas de incontáveis rostos de negros amontoados. Nesta pintura, Tchalê Figueira para demonstrar a imensa quantidade de africanos mortos utiliza um procedimento comum e consagrado na pintura do artista plástico moçambicano Malangatana Valente. Malangatana tinha como característica representar uma quantidade impressionante de pessoas espremidas em suas telas, comprimidos no espaço asfixiante da superfície pintada a revelar-nos a irracionalidade e desumanidade do colonialismo, e da desestabilização oriunda da opressão em cores contrastantes e impactantes. Para esta pintura de Tchalê resgato palavras de Mia Couto a respeito da pintura de Malangatana que encaixam com perfeição ao mostrado pelo mindelense:
“Estes rostos repetidos até a exaustão do espaço, estas figuras retorcidas por infinita amargura são imagens deste mundo criado por nós e, afinal, contra nós. Monstros que julgávamos há muito extintos dentro de nós são ressuscitados no pincel de Malangatana.
Ressurge um temor que nos atemoriza porque é o nosso velho medo desadormecido. Ficamos assim à mercê destas visões, somos assaltados pela fragilidade da nossa representação visual do universo. (…) No seu traço está nua e tangível a geografia do tempo africano. No jogo das cores está, sedutor e cruel, o feitiço, (…) estes bichos e homens, atirados para um espaço tornado exíguo pelo acumular de elementos gráficos, procuram em nós uma saída. A tensão criada na tela não permite que fiquem confinados a ela, obriga-nos a procurar uma ordem exterior ao quadro. Aqui reside afinal o gênio apurado deste „ingênuo‟ invocador do caos, sábio perturbador das nossas certezas.” (SECCO, 2003, pp. 224-225)
Como é possível conferir, as assustadoras imagens desses tristes representantes do colonialismo europeu não são mais horríveis do que as atitudes desumanas praticadas durante a conquista militar do continente africano. Figueira simplesmente transfere para suas pinturas as assombrosas ações do colonizador em África. A lembrança de Leopold II não é gratuita, pois promoveu um banho de sangue durante a ocupação do Congo em proporções maiores que o holocausto nazista, e está muito bem representado na pintura do cabo-verdiano.
Escorro-me nas afirmações do historiador cubano Carlos Moore para lembrar que o Congo foi o “único caso de um país que fora incorporado à potência colonizadora como propriedade pessoal do chefe de Estado” (MOORE, 2009, p. 30). Ainda de acordo com o Moore, em 76 anos de colonização belga no Congo (1884-1960), estima-se que pereceram 25 milhões de pessoas. A violência desmedida – irracional define melhor – da colonização belga ultrapassa o absurdo, como podemos analisar na passagem abaixo incluída no livro de Moore e que se encontra no Wikipedia:
“Para impingir as cotas de borracha, a Force Publique (Força Pública) foi instituida: de uso corrente, policiais, na sua maioria eram canibais do Lualaba. Armados com armas modernas e chicote. A “Força Pública” rotineiramente pegava e torturava reféns (na maioria mulheres), açoitavam, estupravam, incineravam aldeias e, acima de tudo, extirpavam mãos humanas como troféus mostrando que, quando as cotas não eram cumpridas, não estavam tendo vontade o suficiente de cumprir.
Um oficial branco de baixa patente descreveu uma incursão para punir uma aldeia que havia protestado. O oficial branco em comando: “Ordenaram-nos a cortar as cabeças dos homens e as pendurar nas cercas da aldeia, bem como seus membros sexuais, e pendurar as mulheres e crianças em forma de cruz”. Após ver um íncola morto pela primeira vez, um missionário dinamarquês escreveu: “O soldado disse: ‘Não leve muito a sério. Eles matam ‘a nós’ se não levarmos a borracha. O comissionário nos prometeu que se tivermos muitas mãos, ele encurtará nosso serviço’” Nas palavras de Peter Forbath: “As cestas de mão cerradas, postas aos pés do chefe de posto europeus, tornaram-se o símbolo do Estado Livre do Congo. (…) A coleção de mãos se tornou um fim em si mesmo. Os soldados da “Força Pública” as traziam em vez da borracha; eles até mesmo iam colhê-las em lugar de borracha (…) Elas tornaram-se um tipo de moeda. Elas são usadas para amenizar o déficit das cotas de borracha, substituir (…) o povo ao qual é exigido trabalhar para as gangues de trabalhos forçados; e os soldados da “Força Pública” tinham seus bônus pagos de acordo com quantas mãos eles coletavam. ”Em teoria, cada mão direita provava um assassinato judicial. Na prática, soldados “trapaceavam”, simplesmente cortando a mão e deixando a vítima para viver ou morrer. Numerosos sobreviventes relataram que eles viveram além de um massacre fingindo de morto, não se movendo nem mesmo quando tinham suas mãos serradas. E esperavam os soldados partirem para então procurar socorro.Estimativas do total das chacinas variam consideravelmente. O relatório famoso 1904 do diplomata britânico Roger Casement aponta para 3 milhões apenas nos 20 anos que o regime de Leopold durou; Forbath, no mínimo 5 milhões; Adam Hochschild 10 milhões; a Enciclopédia Britânica estima um declínio populacional de 20 ou 30 milhões para 8 milhões”. (grifos do autor) (MOORE, 2009, p. 30-32)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_Livre_do_Congo
A mutilação, a violência sexual e a matança indiscriminada de africanos foi uma prática comum em praticamente todo o continente africano. Milhões de negros foram mortos com sadismo e voracidade jamais vistas. Tchalê retrata a escravidão e o estupro feito com frequência nas mulheres negras, denunciando o caráter violento e forçado do início da miscigenação, principalmente nas colônias portuguesas, como mostram as pinturas “Violação I” e “Violação II”. O detalhe para as expressões de horror e resignação dos oprimidos, assim como o vermelho dos corpos em analogia às batalhas desiguais travadas em solo africano que dizimaram um número incalculável de vítimas.
O historiador Joseph Ki-Zerbo é enfático ao afirmar o que os negros africanos vivenciaram a partir do tráfico negreiro e durante o período da colonização com o incontornável apoio da Igreja Católica:
“Nenhuma coletividade humana foi mais inferiorizada do que os negros depois do século XV. Foram encomendados escravos negros aos milhões; utilizaram-se os negros como reprodutores de outros negros, em “coudelarias” constituídas para reproduzir novos negrinhos para o trabalho nas plantações. Quantas crianças africanas foram jogadas dos navios, ou abandonadas nos mercados escravos, longe das mães que eram levadas, porque era preciso muito tempo para alimentá-las até que fossem exploráveis? Os escravos eram comprados às toneladas. Amputava-se e esquartejava-se como carne bruta os rebeldes ditos “negros castanhos”. Durante esse tempo, na Europa, os teólogos debatiam doutamente a questão de saber se os negros tinham alma. Foi uma pergunta que não se fez a propósito de outros grupos humanos” (KI-ZERBO, 2009, p. 24).
Como este texto procura desvelar as atrocidades aos povos do continente africano, salientamos que as colonizações realizadas pela Bélgica e Portugal foram marcadas pela violência extrema, em razão da “estrutura capitalista débil na comparação com países como a França e a Inglaterra, viram-se obrigados a recorrer a uma brutalidade maior, e não menor, no trato das populações dominadas. Isso porque, destituídos de capacidade de implantar sistemas dotados com maior composição orgânica de capital, tinham de recorrer, para competir com um mínimo de eficiência diante de nações capitalistas mais desenvolvidas, a todas as formas possíveis de coerção, inclusive as que se aproximavam da escravidão” (SERRANO; WALDMAN, 2008, p.221).
Para além dos assassinatos em série cometidos sob a liderança de Henry Stanley, não devemos esquecer a criação das famigeradas legiões estrangeiras pela França e pela Espanha, ambas marcadas pela agressividade no trato das populações africanas e pela longa folha de serviços prestada ao domínio colonial (SERRANO, WALDMAN, 2008, p.216).
Carlos Moore chama atenção para a limpeza étnica ocorrida no continente africano durante a colonização. Moore afirma que “muitos continuam ignorando ou minimizando o fato de que a colonização da África foi um verdadeiro genocídio contra a raça negra” (MOORE, 2009, p. 29). Por isso, a importância desta série de intervenção realizada com furor expressionista e indignação por Tchalê Figueira.
A Conferência de Berlim (1884-1885) marca o auge da supremacia europeia no continente africano após diversos e sangrentos conflitos onde milhares de vidas foram ceifadas em nome da civilização, da fé e do progresso branco europeu. O desprezo aos africanos e a prepotência colonizadora foi de tal ordem que pode ser sentido na declaração do britânico Lord Salisbury a respeito da partilha realizada: “Traçamos linhas sobre mapas de regiões onde o homem branco nunca tinha pisado. Distribuímos montanhas, rios e lagos entre nós. Ficamos apenas atrapalhados por não sabermos onde ficavam estas montanhas, esses rios e esses lagos” (SERRANO; MUNANGA, 1995, p. 6. Apud: SERRANO, WALDMAN p.212).
A prepotência europeia é retratada na pintura “Com régua e esquadro dividiram o cake”, que de forma impactante representa a arbitrariedade do encontro dos países imperialistas assinalados nas cadeiras e do caos civilizador imposto aos africanos. A violência das figuras ilustradas na parte inferior da pintura pode representar a caótica situação e o desespero que se apoderou dos africanos desde o período do tráfico negreiro, alimentado por conflitos criados pelos invasores europeus entre as etnias africanas para assim enfraquecê-las e atingirem com maior rapidez os seus objetivos nefastos. Por outro lado, os colonizadores disputavam entre si as terras africanas. Nesse sentido, deve-se recordar o momento ruim de Portugal com economia fragilizada e pressionado pela Inglaterra, nação hegemônica da época, que “rifou o projeto português do mapa cor de rosa, pelo qual os territórios entre Angola e Moçambique, correspondendo aos atuais Zimbabwe, Malawi e Zâmbia, constavam como um domínio dos lusos. Portugal foi obrigado a recuar diante das pressões britânicas e da ameaça de guerra entre os dois países (1890)”. (SERRANO; WALDMAN, 2008, p.210-211)
O mapa do terror da ganância europeia foi dividido desconsiderando quaisquer opiniões de líderes africanos e assim demonstrado pela pintura voraz de Figueira em “Assim estava dividido o cake”. As caveiras fantasmagóricas mostram o estado de espírito do continente africano. Novamente o caráter didático a mostrar a partilha realizada pelos colonizadores, revelando a maneira acintosa a qual o continente foi subjugado. Vale salientar o destaque à Etiópia, única nação que conseguiu manter sua soberania ao preço de muito sangue e de vidas de seus cidadãos:
Essa partilha do continente africano não foi bem digerida por Alemanha e Itália, nações atrasadas em seus processos de unificação, por conseguinte, ficaram com colônias menores. As grandes faixas de terra sob dominação portuguesa foram motivo de interesse dos alemães, por exemplo. Para retratar este temor de um eventual ataque alemão às colônias, verificamos a aflição do pré-claridoso Pedro Cardoso n‟As Crónicas do AFRO, publicada no jornal A Voz de Cabo Verde de 8 de abril de 1912, e sua posição ambígua em relação ao colonizador luso em uma possível tomada das colônias portuguesas em África pelos alemães:
“A armipotente Alemanha, fechando os olhos à conquista da Tripolitana pela sua amiga e aliada transalpina entendeu-se com a França sobre o Marrocos, com a Espanha sobre Fernando Pó, Guiné Espanhola e, quem sabe? sobre Portugal e agora quer entender-se com a Inglaterra… Todos esses entendimentos visaram desde o seu início as possessões portuguesas. A esperta chancelaria leutónica tem procurado pela condescendência e satisfação às ambições das potências rivais assegurar que a premeditada rapinagem do Ultramar português se faça sem protesto (…) Quem escreve estas linhas nasceu em África mas é português, não só pela bandeira como pelo sentimento e sangue. (…) apesar de saber – pelo confronto – que a administração alemã oferece mais certas garantias de progresso às colónias no estado e circunstâncias portuguesas, não posso fazer calar o meu coração. Não posso conformar-me à horrorosa ideia de que serei obrigado a não falar, a não cultivar esta formosíssima língua toda feita de harmonia e doçura, em que balbuciei as minhas primeiras canções, destronada, substituída por aquela que escreve Goeth, é certo, mas sabendo a cerveja, desarmoniosa, gutural e arrepiante, como o cavo rugir do urso, ou como o horrendo gargalhar da estrige agoirenta. Não! Antes mil vezes o pobre e lusitano do que rico e alemão. Não!” (BRITO-SEMEDO; MORAIS, 2008, p. 132)
Com a colonização implantada no continente, valores ocidentais distantes dos africanos passam a ser implantados. Eles perdem completamente poderes político, econômico e militar. Seguem décadas de violência e racismo declarado, o homem branco europeu escorase nas deploráveis teorias positivistas de supremacia racial e inferioridade do negro predominantes na derradeira metade do século XIX, subjugando os africanos ao que havia de mais tenebroso na espécie humana. Para Joseph Ki-Zerbo:
“A colonização foi muito mais curta do que o tráfico negreiro, mas foi mais determinante. O colonialismo substituiu inteiramente o sistema africano. Fomos alienados, isto é, substituídos por outros, inclusive no nosso passado. Os colonizadores prepararam um assalto à nossa história. O „pacto colonial‟ queria que os países africanos produzissem apenas produtos em bruto, matérias-primas a enviar para o Norte, para a indústria europeia. A própria África foi aprisionada, dividida, esquartejada, sendo-lhe imposto esse papel: fornecer matérias-primas. Esse pacto colonial dura até hoje.” (KI-ZERBO, 2009, p. 25)
Para justificar a sua postura, o colonizador escora-se na arrogância e na prepotência, elevando os seus feitos e rebaixando tudo o que for relacionado ao colonizado, sendo este atingido moral e fisicamente, conforme diz Memmi:
“Como pode a usurpação passar por legitimidade? Duas operações parecem possíveis: demonstrar os méritos eminentes do usurpador, tão eminentes que clamam por semelhante recompensa; ou insistir nos deméritos do usurpado, tão graves que não podem senão suscitar tal desgraça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. Sua inquietude, sua sede de justificação exigem do usurpador, ao mesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e que afunde o usurpado mais baixo que a terra.” (MEMMI, 2007, p. 57)
Como sequência a esse pensamento, o ódio do colonizador age com extrema brutalidade, impõe suas certezas e frisa as diferenças que justificam a submissão do colonizado:
Utilizará para descrevê-lo as cores mais sombrias: agirá, se for preciso, para desvalorizá-lo, para anulá-lo. Mas não sairá jamais deste círculo: é preciso explicar a distância que a colonização estabelece entre ele e o colonizado; ora, a fim de justificar-se, é levado a aumentar mais ainda essa distância, a opor irremediavelmente as duas figuras, a sua tão gloriosa, a do colonizado tão desprezível. (MEMMI, 2007, p. 58) Retomo Ki-Zerbo para demonstrar como era o ensino nas colônias, comum a todas elas, legando ao ostracismo a história e a cultura dos povos autóctones:
”(…) a história africana era desconhecida. Fiz todos os meus estudos no âmbito francês, com manuais franceses. Não havia nada no programa que tratasse da África. Ainda pequenos, tínhamos de utilizar um livro de História francês que começa assim: “Nossos antepassados, os gauleses…” Repetimos maquinalmente o que queriam inculcar-nos. (KI-ZERBO, 2009, p. 14)
Esse colonizador, representante da civilização europeia, demonstrou a pior faceta dohomem perante o seu semelhante durante o período da colonização e fez (e faz) do racismo a principal arma para massacrar os africanos. Esse mesmo “bárbaro civilizador” que caçava, matava ou traficava animais da diversificada fauna africana e que permanece com a sua sanha usurpadora das riquezas minerais de todo o continente africano, agora com a máscara do neoliberalismo, ou o neocolonialismo.
Entretanto, boa parte dos africanos jamais aceitou a dominação colonial, exceto as elites vassalas que mantinham a posição subalterna perante o colonizador branco. O racismo à população negra, tanto em África quanto na diáspora, estimulou o surgimento de dois movimentos de alcance mundial: a negritude e o pan-africanismo. Esses dois movimentos tiveram suas ressonâncias na política, na literatura, na história e em demais áreas do conhecimento. Seus líderes e simpatizantes foram agentes históricos em prol do fim do colonialismo em África, por conseguinte, da independência dos países africanos e contra a discriminação racial ao negro no restante do mundo. Esses dois movimentos estimularam
líderes cativantes e a população de negros a reivindicar e lutar pela libertação dos países africanos, com maior ênfase a partir do fim da II Guerra Mundial e consequente enfraquecimento dos países europeus. As batalhas pela descolonização foram sangrentas,
trazendo a morte para milhões de africanos. Somente de líderes pan-africanistas, Carlos Moore enumera 37 nomes assassinados “entre 1957, data da independência de Gana, e 1987,
data do assassinato do último dirigente declaradamente pan-africanista, Thomas Sankara” (MOORE, p. 48). Mas o processo era irreversível, a História foi feita e a duras penas os países africanos conseguiram eliminar o famigerado colonialismo. Infelizmente, as novas nações dizimadas por séculos de opressão e usurpação ainda sofrem as consequências do atraso e muitas estão hoje enfrentando as imposições da política neoliberal e das grandes empresas que praticamente dominam as economias dos países mais ricos do mundo.
Conclui-se que na crueldade retratada na série “Breve História Colonial em África”, o artista e ativista Tchalê Figueira crê na função social da arte como reveladora de vozes adormecidas, escancarando as feridas, sangrando as vísceras do passado colonial de injustiças que se perpetuam no presente, incomodando os olhares daqueles que desejam o esquecimento das atrocidades desse período. Por outro lado, pinceladas como facas a esquartejar as mentes obliteradas dos que não tiveram acesso ou foram obstruídos em sua instrução a esse triste passado colonial, ainda sangrento na crueldade dos dias contemporâneos em África. Pinturas a clamar liberdade e o direito à vida, suprimido de boa parte dos africanos. Pinturas de um humanista ao extremo, seguidor da “postulação irritada da fraternidade” de Aimé Cesaire e parafraseada pelo poeta cabo-verdiano Mário Fonseca. Pinturas que pretendem resgatar a história de sofrimento e dor dos africanos, assim como resgatar o necessário sentido solidário, político, denunciador e combativo do pan-africanismo. Tchalê segue uma tradição de obras de arte denunciatórias contra a Humanidade explicitada em Pablo Picasso com Guernica e as obras feitas durante a II Guerra Mundial, Francisco Goya e a série de gravuras Desastre da Guerra, e as pinturas de Malangatana Valente durante o período colonial em Moçambique e durante a guerra de desestabilização já com a nação independente. Tchalê Figueira integra um grupo de homens cada vez mais raros. Dos inconformados.
Encerro com um poema deste pintor-poeta Tchalê Figueira:
Do lado neutro da trincheira
Contempla a tua obra!…
Canta!… Glorifica teus mortos
Vê as suas frias camas
De poeira vermelha
Corpos radioactivos
Crianças deformadas,
Rostos empobrecidos em urânio
Cabeças rapadas
Hospital de angústias
Mercenários rugindo
Alfabeto de mortos
Artéria podre do paraíso
África encharcada de vírus
Coreografia abominável
Petróleo de sangue
Diamantes brilhantes
Em dedos de abutres.
BIBLIOGRAFIA:
BRITO-SEMEDO, Manuel; MORAIS, Joaquim. Pedro Cardoso – textos jornalísticos e literários: parte I. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008.
DIDIAL, G. T. Tchalê Figueira – pintor das grandes e pequenas vicissitudes cabo-verdianas. Anais – Associação de Estudos de Culturas Comparadas. Mindelo: Cabo Verde. v. 2. n. 3. dez/2000. pp. 97-99
FONSECA, Mário. Se a luz é para todos. Praia: Publicom, 1998. pp. 29-33
KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? – Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MOORE, Carlos. Da África mítica à África real: para uma cooperação realista entre a África e a diáspora. In: A África que incomoda – sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2009. p. 11-65.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Craveirinha e Malangatana: cumplicidade e correspondência entre as artes. In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as Literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora. Rio de Janeiro, 2003.
SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D’África – a temática africana na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
SYLVESTER, D. (2007). Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naif. In: BORGES, Sonia. Francis Bacon: destituição subjetiva e formalização da obra de arte. Psicanálise & Barroco em revista. v.8, n.2, pp. 38-48, dez.2010