Um ‘grito abafado’ por ‘ovos metálicos que explodem’: a influência nefasta da guerra na poesia de E. Bonavena e na pintura de Pablo Picasso
Os tempos de guerra demonstram as piores facetas da irracionalidade humana envolta numa crueldade desmedida, que dissemina o ódio entre os homens de nações diversas ou em lutas fratricidas. Essas ações geralmente ocultam interesses políticos e econômicos alimentados pelos líderes nacionais, motivados pela incomensurável ganância e total desprezo pela vida das pessoas comuns, cujo desespero é sentido num cotidiano de caos em períodos de conflitos com curta ou longa duração. Infelizmente, esses desarranjos, independentes do tempo, deixam marcas indeléveis na existência daqueles que os presenciam.
Por outro lado, são nesses tristes momentos da história da Humanidade que o artista surge para revigorar e realimentar a crença na condição humana, apresentando obras que denunciam os terríveis acontecimentos vivenciados pelos seus pares e apontam novos caminhos para a reconstrução da harmonia entre os homens, reconduzindo-os das trevas à luz. O múltiplo e prolífico artista plástico Pablo Picasso, considerado por boa parte da crítica especializada como o principal nome das artes no século XX, e o poeta e ensaísta angolano E. Bonavena compartilham do justo sentimento em crer na força solidária do homem para superar as atrocidades causadas por sangrentos conflitos, que tentam destroçar a sensibilidade do ser.
Embora vários nomes representativos do modernismo europeu tenham migrado para os Estados Unidos com o início da Segunda Grande Guerra, Picasso permaneceu na Europa durante todo o conflito. Legou à Humanidade diversas obras detentoras de um expressionismo exorbitante, agrupadas sob a alcunha “Anos de Guerra” (War Years – 1937/1945), sendo o ápice dessa fase o mural “Guernica”, realizado em 1937, que será aqui analisado. Enquanto E. Bonavena, pseudônimo literário de Nelson Pestana, em seu livro de poesia Os limites da luz, brinda-nos com poemas produzidos na diáspora européia carregados em reminiscências, sonhos e erotismo para propalar o extravio das esperanças angolanas mediante a barbárie de tantos anos de guerra civil durante o pós-independência. Para o eu lírico, resta enunciar sendas da utopia que são percorridas e refeitas com persistência pelo poder libertário do Verbo.
Nascido em 26 de fevereiro de 1955, em Luanda, E. Bonavena publicou em poesia Ulcerado em míngua luz (1987) e Os limites da luz (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003), que será analisado neste texto.
O poeta enquadra-se na “geração das incertezas” da literatura angolana surgida na década de 1980, como definiu o crítico literário e também poeta, Luís Kandjimbo. Tal geração é posterior à “geração do silêncio” dos anos 1970, reveladora de nomes como David Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho. Essa geração era
“voltada para a redescoberta ética e estética da palavra poética (…), tendo-se caracterizado pela consciência crítica em relação ao ato de escrever (…). O poema passou a ser, desse modo, o lugar de encontro do poeta consigo mesmo, o local, portanto, da descoberta existencial, política e literária. Nesse sentido, deu passagem à poética dos anos 1980, que radicalizou, em vários aspectos, as conquistas estéticas da década de 1970, diferenciando-se dela, contudo, por não adotar a práxis do silêncio.” (SECCO, 2006, p. 93-94)
A década de 1980 representa o período de desilusão com a utopia revolucionária de um país independente, causada, dentre outros fatores, pela guerra civil iniciada em 1977, entre MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola, foi o principal partido na luta contra o colonialismo, liderado pelo poeta Agostinho Neto) e a UNITA (União Nacional para a Libertação Total de Angola, partido de oposição sob o comando de Jonas Savimbi, apoiado pelo regime racista da África do Sul e contrário ao regime socialista imposto em Angola). Com isso, o desencanto que se estende aos poetas revelados nos anos 1990, leva a poesia a ter,
“como traço marcante, a temática da decepção e da angústia diante da situação de Angola, que ainda não resolveu completamente a questão da fome e da miséria. As dúvidas em relação ao futuro interceptam as possibilidades entreabertas pelos ideais libertários dos anos 60, e a poesia se interioriza, não se atendo explicitamente às questões sociais”. (SECCO, 2006, p. 94)
A Brigada Jovem da Literatura (BJL) criada na cidade de Luanda, em 1980, aparece para lançar nomes da nova geração. E. Bonavena começa a se destacar no universo literário angolano com a publicação da revista Archote, em 1986, que seria uma dissidência da BJL. Segundo o poeta Lopito Feijóo, “foi a maneira como os jovens encontraram (…) de se organizarem para traçarem linhas comuns e partirem para uma carreira literária, ao mesmo tempo que, também, uma homenagem ao poeta Agostinho Neto” (LEITE, 2006, p. 45). Ao dar continuidade a esse processo, como explica a ensaísta e poeta moçambicana Ana Mafalda Leite, E. Bonavena
“critica o caráter institucional das Brigadas, cujo nome aliás denuncia um certo arregimentar dos criadores em torno de um programa político, mais do que uma opção verdadeiramente literária, e a forma como estes grupos estavam ligados ao poder, nomeadamente por fazerem parte da Juventude do Partido” (LEITE, 2006, p. 45)
Em Os limites da luz, E. Bonavena apresenta-nos um conjunto de vinte e um poemas divididos em três partes rigorosamente iguais, nas quais nos deparamos com o retorno constante aos tempos de outrora, motivados por um eu lírico distante de sua terra natal. Na Europa, o eu lírico enunciador recorre aos sonhos para refletir sobre os erros do passado cometidos pelas lideranças políticas e denunciar a situação de desesperança em que o país se encontra. Além disso, busca em seus versos os amores do passado para ser o refúgio tranqüilizador do eu lírico, valendo-se de poemas carregados em erotismo.
A intensa decepção é sentida logo na epígrafe do livro, pois “somente os traidores, mesmo fazendo história,/ estarão ausentes desta memória/ leve” (BONAVENA, 2003, p. 7). O desalento com o caos vivenciado por tantos anos de guerra, somente encerrada em 2002, faz com que o poeta, na distante cidade de Paris, recorde suas influências literárias da geração da histórica revista Mensagem – Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz –, e poetas portugueses como Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Assim como os amigos, a presença do elemento primordial da natureza, a água, como recorrência das memórias primeiras, tendo como alegoria a paisagem dos rios angolanos. Além da constante presença dos rostos dos mortos durante o conflito que tanto o atormentam e cobram a promessa “de um dia redimir/ a memória da pátria” (p. 12), pois “a memória, como forma de pensamento concreto e unitivo, é o impulso pioneiro e recorrente da atividade primeira” (BOSI, 1977, p. 152):
Debruço-me
sobre as águas do rio
e ao tocar leve as vagas,
trago entre os dedos
fragmentos da minha vida
e a ressonância dos poetas
da Mensagem.
Falo de Viriato
Pessoa, Neto e Jacinto,
aos quais junto
Negreiros, Sá Carneiro e
os meus amigos. (…)
E me lembro das águas revoltas e escuras
Do Kwanza, sem pontes,
E com elas o rosto dos mortos
Que me dizem que tardo
em cumprir a promessa
que fizera no silêncio,
na Muxima de um dia redimir
A memória da pátria. (…) (p.11-12)
A aflição com a presença constante dos mortos em sua mente no decorrer do longo poema: “Chatos!/ Que não me deixam/ Dormir” (p. 13), “E a persistência/ dos mortos./ Que teimam.” (p. 16), “Os mortos,/ Retornam e me lembram/ As promessas” (p. 18) é proporcional a quantidade absurda de angolanos exterminados durante o conflito, “os rostos/ que se multiplicam/ aos milhares” (p. 13), que tiveram suas vidas extirpadas na guerra fratricida, fazem o eu lírico dedicar “centenas de velas acesas/ aos nossos mortos e à Paz/ Das suas almas” (p. 16), o que aflora a sensação de impotência: “Apenas tenho entre as mãos,/ ‘A miséria do meu ser’/ Como diria Pessoa” (p. 19).
Os horrores da guerra são indiferentes na escolha de suas vítimas em uma tenebrosa “aritmética da morte”, que ceifa os jovens idealistas e tira o “sonho que lhes soprava a vida” (p. 24) demonstrado em um estudante revolucionário, Kimpwanza, “embalado pelo murmúrio da noite/ e uma bala transpassando-lhe/ a garganta” (p. 21); e, em Wandalinka, “percorrido por um vento frio,/ saraivou à altura do peito,/ medalhando para sempre” (p. 22) o professor primário. Os dois, crentes nas conquistas da revolução apesar das visões diferenciadas em política e religião, eram unidos pela educação, são alguns dos diversos exemplos dos quais o eu lírico se sente obrigado a revisitar:
Assim,
acreditando na utilidade
desta aritmética da morte,
se finaram os meus amigos,
precoce e nobremente
mas sem construir
o sonho que lhes soprava a vida.
Apenas me legaram
este dever de memória!… (p. 24)
Os sonhos esgarçados conduzem o eu lírico a vislumbrar as origens do passado literário angolano com a procura do “futuro anterior” (p. 28), um futuro distante que parecia promissor, como a personagem vóvó Nzenza de Uanhenga Xitu, e o papel fundamental das manifestações iniciais de identidade e esperança, contudo, ainda tímidas, na imprensa do país, em fins do século XIX:
Falava alto
para sobrepor
e procurava o futuro
anterior, nas páginas amarelecidas
da imprensa oitocentista,
(…) dando rosto
aos meus sonhos, alimentados
pelo delírio azul do modernismo,
acariciados pela poesia
da identidade e da esperança.
Na noite!, me encontrava
um pouco e voltava
a mim e
esperava de cócoras,
com certeza no futuro! (p. 28)
Entretanto, no poema seguinte o tempo futuro configura-se incerto, alegoria de um país trilhando o tortuoso caminho da reconstrução. Os versos apresentam características típicas de Angola, alertando os cidadãos para que se reúnam em torno dos valores nacionais reforçados pelo verbo “ter”, que ajudarão a apontar os caminhos para a reformulação da nação recém saída da guerra fratricida. Agora, sem interrupções:
tenho palha,
barro seco e
um chão de milho
por lavrar! (…)
tenho sede
das paisagens da minha terra
e do bucólico dos rios
que as serpenteam (…)
esta felicidade intermitente,
de um sonho e um país
por refazer
tenho esperança
no futuro que se inscreve
incerto!”(p.30)
Enquanto isso, “Novembro Triste” é um poema de lamentação com a trajetória angolana no pós-independência. Após quase trinta anos, Novembro, mês da independência, tornou-se amargurado, sem motivos para comemorações por causa da perda da euforia com o país liberto, as promessas não cumpridas pelos políticos e os problemas sociais não resolvidos deterioraram os sonhos:
nos olhos correm as imagens
de um sonho vivo,
moldado a barro
misturado de sangue
para soletrar – tropeçando nas letras –
uma palavra triste como o país. (…)
encheram-nos os olhos
de novembro, das acácias
aos poetas, falando do sol
e os discursos prometeicos
dos políticos a fingir país
trouxeram flores murchas,
fogueiras apagadas,
meninos sarmentos,
o marasmo na pele dos ventres,
olhos comidos pelas moscas,
rostos mibangados pelo desespero
e o desencontro de Abel
contra Caim.
novembro virou triste. (p.33-34)
Na segunda parte, “O gesto sagital”, o viés erótico associado à memória ganha corpo e dá a tônica na maioria dos poemas. No poema-título desta parte, o eu lírico vaga entre os descaminhos da história guiado pela “reinventar do coração”, alegoria da reformulação do país:
fecunda
uma saudade
remota
que faz de mim
pastor errante
entre ideias dispersas.
somente
o reinventar do coração:
com o barro da nossa cacimba
nos traz alento e alimento
para arar o estar
entre os heróis
sem nome,
que dão sentido
ao ser. (p.41-42)
Esperança e erotismo unem-se na reforma nacional com o fim da guerra civil. O tom sereno e lírico do poema substitui as agruras e violências do tempo que se findou. O poema encontra espaço para a renovação do amor, o telúrico e a esperança:
Por agora,
deixa os sinos do teu corpo
tocarem todos,
deixa a vaga de vento
te levar para as portas do céu.
Poisa levemente os pés
na lã dos caminhos e
vai segura pela minha mão
que voltarás a amanhecer (…)
Os dias serão maduros
de azul, os cânticos de amor e pão.
Haverá mel nos lábios
e em todas as esquinas
estarei
à espera de ti! (p. 45)
Maio, marcado por uma lembrança desagradável, é retrabalhado pela reminiscência erótica do eu lírico, que recorre aos tempos pioneiros na escola “como quando repetíamos o abecedário”, à descoberta do amor “entre beijos ardentes” com o avançar da idade. Enuncia-se eroticamente a renovação do mês de maio com a saudosa lembrança de amores passados, alegoria do recomeço angolano:
éramos três
eu, tu e o Sócrates
que se sentia triste
quando me via navegar,
de vela desfraldada,
entre as vagas e as tuas coxas,
sorriso largo, procurando
o mais do teu calor.
Maio
é sempre um tempo
de flores e de amores.
Deixa tocar os sinos
do teu corpo –
um após o outro – deixa
que o beijo te traga
aos umbrais da luz
e revive
este Maio, apaixonadamente! (p.50)
Na última parte, o estilo predominante é o da poesia em prosa, e, no nosso entendimento, o momento maior do belo livro de E. Bonavena. Em “Lua Azul”, o eu lírico justifica o recorrente uso da combinação memória e erotismo: “Um corpo, é sempre uma chama, ardente e interior. Aquece e ilumina. Devolve à memória a seiva no seu sabor de origem” (p. 56).
Todavia, o eu lírico atenta-nos para o desespero do cotidiano angolano. De uma sociedade com valores invertidos, sob o domínio da violência desmedida e da corrupção desenfreada. Caos, distopia e chacinas passaram, infelizmente, a ser situações rotineiras. Os “ovos metálicos que explodem”, alegoricamente, são as minas implantadas no solo do país durante a guerra, causando grande número de mutilados entre a população civil; enquanto “o grito abafado de luz” é o grito daqueles que não têm voz, filhos de uma pátria dividida por escusos interesses, à mercê de dirigentes inescrupulosos, os “monstros divinizados”:
Tudo escorre! Na crista da onda, a loucura por excelência. Escorre este oceano de dor, o verdugo, o inocente, gatunos e vândalos, escorre a mentira nas línguas putrefactas, a ordem no canhão, o rancor, as lágrimas, a solidão, a exaltação do mal em medalhas de bronze da ignomínia, escorre a chacina no Bié. Escorrem na capital os dinheiros em bolsos sem fundo, as palavras em líricas gargantas cacarejantes no Huambo, a escuridão de ovos metálicos que explodem, a densidade, o grito abafado da luz.
Uma pátria sem rosto, de corpo dilacerado, se levanta sonâmbula entre os monstros divinizados que a dividem. (p. 58-59)
Um “País de sal e luz” é denunciado no poema que desmascara os falsos profetas, com seus discursos persuasivos “usurpando a voz coletiva” (p. 67), e iludiram a nação angolana com os líderes e o desencanto com o fim das utopias:
E em vez da vontade
contida no peito de
um país feito de verde,
leite e milho,
um país de sal e luz,
Houve gritos sufocados,
corpos mutilados,
sonhos adiados,
utopias perdidas:
a liberdade total,
moldada a barro e sangue
dos heróis e mártires da pátria,
decepada.(p. 68)
Em a “Soberana brisa da navegação”, as lembranças eróticas do outrora da amada reaparecem ao lado da denúncia de esquecimento dos que lutaram bravamente para a libertação do país do jugo colonial português. O descrédito e a desolação dos angolanos com a situação nacional é escancarada na metáfora da “noite nos olhos”
Porque em todos os mercados os corpos amanhecem com noite nos olhos. Na boca fruta sumarenta e doce, e da kianda e da memória, O tempo se esquece dos heróis e toda a fruta na kinda apodrece.
Por isto te falo dos reis derrotados como cinzas mornas da história, umas vezes triste outras gloriosa. Te digo dos escravistas de agora que nos deixam apenas uma pálida lembrança colada à pele da fome. E volto ao morno dos teus beijos para me salvar da loucura irremediável de te trazer ao fogo da genuína inquisição. Porque ninguém sabe onde me levam estas águas correndo sob a ponte. Talvez amanhã! (p. 71-72)
É o desencanto e a angústia presentes na enunciação do poema, caracterizados pelo problema da fome, de líderes que mantêm as condições desumanas de parte da população, agora sob a opressão de um regime neoliberal excludente. O eu lírico recorre ao erótico libertador, à memória, e aos mitos, como a Kianda - deusa do mar -, a água como elemento primordial da natureza. Sendo que este, na esperança de conduzi-lo a um rumo indefinido. Mas que necessita ser encontrado com urgência.
Em “Guernica outra vez”, o eu lírico dialoga com a grande tela de Pablo Picasso, “Guernica”, que se tornou um libelo de toda a Humanidade a qualquer forma de opressão. Com “Guernica”, Picasso escandaliza o mundo ao retratar o bárbaro ataque aéreo à pacata cidade espanhola, na região basca, numa perversa parceria entre a força aérea hitleriana, a Legião Condor, com o ditador Franco durante a guerra civil espanhola.
O ataque aconteceu em 26 de abril de 1937. A cidade foi bombardeada por quase três horas em um horário de grande movimento entre os agricultores da região. Estima-se que 40 por cento da população foi morta ou gravemente ferida. Foi a primeira vez na história que uma cidade havia sido bombardeada. Segundo Perktold:
o fato, por ter ocorrido antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando cenas dessa natureza passaram a ser banais e quase diárias, tornou-se emblemático. Com Franco, a humanidade ratificou o que já aprendera na Primeira Guerra Mundial: matar pode ser como algumas atividades capitalistas – por atacado. (PERKTOLD, 2006, p. 6)
Picasso toma conhecimento do que acontece a Guernica na festa do 1º de Maio parisiense. Indignado com o brutal ataque aos seus conterrâneos, o artista, radicado em Paris há mais de trinta anos, fecha-se em seu ateliê e começa a elaborar o que seria uma de suas maiores obras, só comparável a As mulheres de Avignon (1907). Guernica marca também o início de um artista mais politizado, conduzindo-o aos ideais socialistas e ao expressionismo voraz que o acompanharia no decorrer da Grande Guerra.
A genialidade de Picasso em Guernica está no fato de não retratar o bombardeio da cidade basca, mas de um grito. Grito desesperado de todos os elementos, menos o touro. O crítico de arte Fernando Morais ao comentar a obra esclarece que na tela há:
Um grito calculado, que carrega atrás de si, ou consigo, uma rigorosa estrutura plástica. Não é a representação anedótica de um fato histórico, mas a sua reinvenção plástica, uma versão pessoal, na primeira pessoa. E, só por isso, ecoa ainda hoje como obra de arte e como denúncia dos bombardeios que continuam sendo feitos contra cidades, aldeias ou populações indefesas em todo o mundo. Comove por sua dimensão especificamente humana, isto é, política, e envolve por sua dimensão artística.
Na simbologia picassiana, o touro representa a força bruta, o mal, por oposição ao cavalo, que representa a inocência, o bem. Se o touro é o homem e o cavalo a mulher, na fase preparatória de Guernica o touro será o fascismo e o cavalo, o povo espanhol. (MORAIS, 1999, p. 22)
A importância de Guernica se dá por ser uma obra atemporal, porque “tudo ocorre no espaço fechado – um espaço doméstico. No espaço exíguo, (…) a destruição é maior e a extrema fragmentação e a aproximação de corpos de homens e animais aumenta consideravelmente a sensação de dor” (MORAIS, 1999, p. 22). Também por antecipar a estupidez e a selvageria que seriam os conflitos armados dos séculos XX e XXI, como o que ocorreu entre a população angolana. De acordo com Perktold:
O painel é dirigido ao gênero humano e transmite esperança. É, também, fruto da mistura de amor às vítimas e de ódio ao inimigo, de indignação, horror, medo, empatia e da compreensão interna percebida pelo artista espanhol da dificuldade que o homem tem para lidar com o seu semelhante e, por isso, paradoxalmente cheio de humanismo. Ele é o registro (…) a impedir que a carnificina seja esquecida. (…)
‘Guernica’ é, antes de tudo, uma manifestação profética do que o homem do século XX, com sua ciência e tecnologia, produziria nos anos seguintes: os mais devastadores artefatos de guerra e as piores idéias totalitárias, de direita e de esquerda. (PERKTOLD, 2006, p. 6)
Segundo poema de Picasso: “gritos de criança, gritos de mulheres, gritos de pássaros, gritos de flores e de pedras, gritos de camas e cadeiras, de potes, gritos de gatos, de papéis de odores” (MORAIS, 1999, p. 22). Apesar de todo o horror de um grito abafado, o painel apresenta uma lâmpada em sua parte superior, alegoria da ciência e da tecnologia, as mesmas que proporcionaram o desumano ataque serão utilizadas para conduzir o homem ao caminho da paz e da reconstrução.
Como o mural feito por Picasso, que nos convida a uma nova forma de olhar a bestialidade humana, os versos de E. Bonavena demonstram a crueldade da realidade exposta de um conflito fratricida e duradouro.
Seguindo o conselho de Henry Matisse, Picasso convenceu-se a pintar o mural como uma “sinfonia monocromática”, o que é compartilhado por E. Bonavena que também não consegue visualizar as cores, no caso, o azul, alegoria do universo onírico, esperança e sonhos inexistentes na Angola dilacerada pela guerra:
Se os meus olhos
fossem
os olhos de Picasso
estariam transbordantes
de azul,
mas não – não o são. (p. 61)
A desgastante situação de guerra entre seus pares, confunde os sentidos do eu lírico que coloca em dúvida suas percepções, como nas divagações relatadas nos versos:
E se o fossem,
Talvez,
não tivessem percebido
como a menina do Huambo
tem a perna
mais linda do mundo
que a outra se foi
por um dólar.
Talvez, os olhos
de Picasso
não teriam retido
o castanho-luz do seu olhar
de mãos dadas ao azul
dos olhos da princesa de Delfos
que se fecharam para sempre
com Diana de Gales.
Talvez, ou simplesmente
o Bié
sairia da boca dos cavalos
de Guernica,
Outra vez! (p. 61-62)
A reutilização e atualização de elementos da obra picassiana para a sangrenta realidade angolana são escancaradas na última estrofe, como na menina mutilada, denunciando o grave problema das minas implantadas por todo o país, causando até os dias atuais acidentes e mortes. Como em Bié, cidade próxima a Huambo, que sofreu violentos ataques no período da guerra, e ao retomar o grito do cavalo em Guernica que passa a ser o “grito abafado” da população.
E. Bonavena encerra Os Limites da Luz com o poema dedicado ao amor de outrora que perpassa por toda a obra:
Destas lágrimas não te digo porque as verti sem querer. Falar-te-ei da tristeza consciente, desta que alimento como talismã para me salvar da saudade. Deixei o sorriso exilado nos teus lábios. Contigo foram também os sonhos. Resta apenas a tua lembrança, como uma nódoa forte que jamais se vai separar do brim onde mora. (p. 73)
É, de acordo com Alfredo Bosi, no “reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver” (BOSI, 1977, p. 155). Assim, o eu lírico “prisioneiro da saudade” assume o direito ao amor e à imaginação contra as agruras vivenciadas por décadas de uma guerra insana, para refazer seu passado pelos caminhos da palavra que trilha novos percursos para a poesia angolana do século XXI.
E. Bonavena e Pablo Picasso presenciaram em momentos distintos a bestialidade humana perante o seu semelhante. Ora no período entre as grandes guerras, ora a tensão asfixiante da Guerra Fria, as guerras coloniais no continente africano, as guerras civis que estouraram nas nações africanas patrocinadas pelas duas superpotências; ou na atual exclusão econômica e social a que foram legados os países periféricos após a queda do Muro de Berlim, pela supressão do neoliberalismo, os artistas contribuem com seus pares ao denunciar a perversidade com que o poder trata os destinos da população carente, renovam a esperança no homem.
Picasso e E. Bonavena prestam suas colaborações à Humanidade ao fazer ouvir o grito que suas obras eclodem, contra a ganância, a estupidez e a violência exacerbada que marcaram os últimos tempos.,valorizando a condição humana em suas obras.
Bibliografia:
BONAVENA, E. Os limites da luz. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1977.
LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. In: Revista Poesia Sempre: Angola e Moçambique nº 23. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2006.
MORAIS, Frederico. Mitos e mitologias de Picasso. In: catálogo da exposição Picasso, Anos de Guerra 1937-1945. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de 27 de julho a 07 de setembro de 1999.
PERKTOLD, Carlos. Sinfonia monocromática. In: Jornal Estado de Minas. Caderno Pensar, p. 6, de 29 de abril de 2006.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Sendas de sonho e beleza (algumas reflexões sobre a poesia angolana de hoje). In: CHAVES, Rita; MACEDO, Tânia (ORG). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.