Chiziane, Lisboa e Conversas!

A escritora moçambicana Paulina Chiziane esteve recentemente em Lisboa para receber o Prémio Camões que lhe foi atribuído em 2021. O significado que tem para mim, mulher, angolana, negra, com menos de 30 anos, viver num tempo em que presencio uma das maiores referências do nosso tempo a receber esse prémio é enorme. Logicamente, a dimensão de Chiziane não se mede pelo Prémio Camões. Ultrapassa-o: o seu trabalho de escrita e de fala nos convoca a sentar, ouvir e conversar sobre assuntos importantíssimos do nosso tempo, continuamente. 

O prémio foi atribuído pela primeira vez a uma mulher negra. Se pararmos um pouco e observarmos a lista de pessoas que ganharam o Prémio Camões desde que foi criado em 1988, reparamos que foi atribuído apenas 6 vezes a mulheres, uma única vez a uma mulher negra, sendo que todos os outros nomes da lista são de homens e brancos. O  diz isso sobre hierarquias, racismo e colonialidade? Será o Prémio Camões também um perpetuador ou reprodutor da lógica de relações coloniais entre saberes, modos de vida e visões de mundo no nosso tempo? O que nos diz o Prémio Camões sobre as narrativas que importam, as vozes que imperam e quem ocupa o lugar de centro? E o que nos diz o Prémio Camões sobre ser um dos porta-vozes do patriarcado? 

Chiziane recebeu o prémio no dia 5 de maio e fez um discurso potente cujos fragmentos podem ser encontrados em buscas rápidas no google. De seu discurso, a imprensa repercutiu a sua chamada de atenção ao facto da língua portuguesa precisar de uma limpeza e de ser descolonizada, para refletir e situar-se num tempo em que já não nomeia nem define de forma racista e preconceituosa pessoas, situações, sistemas de pensamento e de organização social que não se encaixem na visão de mundo ocidental. Para ser verdadeiramente de todos e todas nós, a língua portuguesa precisa continuamente de reconhecer a necessidade de mudança na forma como nomeia muito do que tem origem em África e abraçar a contribuição e o enriquecimento constante que é proporcionado pelos falantes do português em África. 

Um dia depois da cerimónia de receção do prémio, na Biblioteca Palácio de Galveias, numa conversa enquadrada na programação do festival 5L, Chiziane, a propósito das línguas relembra: “na colonização fomos ensinados que as nossas línguas eram estranhas e inferiores ao português, por isso, fomos proibidos de usá-las. As consequências dessa proibição são sentidas até hoje.” Eu ouvia Chiziane falando sobre a realidade de Moçambique e pensava em Angola, nas feridas abertas deixadas pelo processo brutal que foi o colonialismo, sendo uma das mais doloridas precisamente aquela ligada ao uso das nossas línguas nacionais. Cresci num país independente onde os meus pais ainda carregavam as marcas de terem sido proibidos de se comunicar em umbundo (a língua materna deles). E agora vou fazer aqui uma pausa para dizer que (e puxando muito a brasa para a minha sardinha) o umbundo é uma língua bem bonita: adoro, por exemplo, as expressões de saudação que se usam. Não existem, no Umbundo, palavras equivalentes a “bom dia”, “boa tarde” e à “boa noite” da língua portuguesa que se usam para cumprimentar, em função do período do dia. Em Umbundo, quando vamos cumprimentar alguém, desde manhã cedo até ao meio-dia perguntamos “Walale?” que significa ou equivale a “dormiste bem / passaste bem a noite?”. Do meio-dia até à noite perguntamos “Wosala?” que significa ou equivale a “como passaste o dia?”. O que eu aprendi sobre essas expressões em conversas com o meu pai é que elas dão a possibilidade de ouvir da outra pessoa sobre como ela realmente está. Perguntar a uma pessoa como ela passou a noite ou como passou o dia é uma forma de demonstrar que nos importamos com ela, que a reconhecemos e queremos saber como vai tudo: não queremos só dizer “bom dia” (não é que haja nada de errado em também só querer dizer isso), mas queremos também saber como ela está porque a enxergamos como nossa semelhante. Eu adoraria cumprimentar todo o mundo assim, principalmente as pessoas que gosto. Lá em casa, a minha vida toda, ouvi milhares de conversas que começaram com um “Wosala?” e transformaram-se em exercícios de escuta ativa sobre a outra pessoa. Pergunto-me como se atreveram a dizer-nos que expressarmo-nos assim era errado? Que era inferior?

a autora com Paulina Chizianea autora com Paulina Chiziane

Terminada a pausa, regresso aos meus pais e à sua relação com a língua. Foi-lhes ensinado que não era civilizado falar em umbundo: “uma pessoa que estudou ou que é civilizada não pode mais falar essas nossas línguas, é preciso falar o português”, era a frase que o meu pai repetia quando me contava sobre as proibições do seu tempo. Tal como o meu pai e a minha mãe, os meus tios e tias, os seus amigos, e toda a sua geração nascida e criada antes das Independências, foram nalgum momento excluídos, humilhados e segregados quando não falavam o português do modo como lhes diziam que deveriam. Meu pai conta vários episódios de humilhação por causa disso. O que sucedeu na vida dessas pessoas após a Independência é que as feridas não foram saradas, os estragos causados pelo colonialismo não foram solucionados no 11 de novembro, e há ainda muitas conversas por ter e feridas por sarar. Hoje, tendo já lido tantas coisas, escutado o meu pai e a minha mãe sobre como era a vida e as dinâmicas de poder antes e logo a seguir à Independência, penso como deve ter sido doloroso todo esse processo. Dizer-se a alguém que a língua em que ela aprendeu a pensar, a falar, a nomear, a si e aos outros, a descrever o mundo à sua volta, não serve, não vale, é profundamente violento: é como dizer que a existência da pessoa antes do português era inválida – é como dizer que ela só passa a existir a partir do momento em que aprende a falar, a pensar e a nomear tudo em português.

“Quem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se poderá afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura, renuncia, mata tudo, para nasceres outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua crença…” (Chiziane, 2022, p.127) 

E é isso: foi dito à geração dos meus pais e à precedente que era preciso deixar de lado as suas línguas, consideradas bárbaras, para se falar em português, para se afirmar em português. Nós, os que descendemos dessa geração, fomos ensinados a ter vergonha de falar o umbundo, o kimbundu, o kikongo, o kwanyama, o fiote, o nhaneca humbe e as demais línguas bantu faladas no território de Angola. Lembro de, quando criança, nas zonas urbanas, o umbundo era falado entre os mais velhos nos espaços-casa. Fora deles tinha de ser só o português, e nós as crianças tínhamos de falar também só em português que era a língua de escolaridade: a língua das pessoas civilizadas. Não compreendia de onde vinham essas ideias até crescer, estudar e começar a pensar criticamente sobre essas coisas por mim mesma. E foi doloroso entender que podia ter sido também alfabetizada pelo umbundo ao mesmo tempo em que era alfabetizada em português. Sim, no pós-Independência, sendo que o português já fazia parte das línguas faladas em Angola, independente da forma como tinha sido introduzido, a nossa alfabetização devia ter sido, pelo menos, congregadora: multilingue. Mas não foi e não é, continuamos a falhar nesse aspecto, nossas políticas institucionais nesse sentido são quase inexistentes e as que existem têm flertado com a ineficácia há bastante tempo.

Chiziane, na conversa, enquanto falava das proibições relacionadas às línguas disse “acho muito triste e ignorante uma pessoa que olha para o outro e diz que tem se desfazer de uma língua para sobrevalorizar outra. Será que não percebemos que uma língua é riqueza? Eu falo e escrevo em português sim, mas eu também falo e mais do que tudo penso nas minhas línguas maternas e isso, para mim, é duma riqueza incrível.” Eu ouvia Chiziane e pensava no privilégio que deve ser poder nomear o mundo, as coisas, em diferentes línguas, em ter acesso a múltiplas possibilidades de expressão e interação com o Outro ou a Outra. Ouvia Chiziane e quase chorava de saudades de casa: de ouvir os meus pais conversarem em umbundo e captar os sons, a sintaxe e as palavras, numa tarde qualquer, com a cabeça pousada no colo da minha mãe.

E sobre as palavras, não só relacionadas à língua em que as usamos, Chiziane foi questionada sobre como a sua escrita, o seu uso da palavra foi recebido quando começou a sua carreira de escritora. Ela conta que enfrentou muitas barreiras quando, após ter escrito o primeiro romance, decidiu publicá-lo, “diziam-me que a escrita não era um espaço para mulheres, que o meu lugar não era ali”. A mim essas palavras caíram como uma chuva de pedras de gelo: quantas vezes, como mulheres, ouvimos que o nosso lugar não era num determinado espaço, que não podíamos estar ali? Quantas vezes, de formas diretas, indiretas e simbólicas passaram-nos a mensagem de que não podíamos cruzar determinadas linhas porque éramos mulheres? Nosso lugar foi concebido pelos outros para ser o de não protagonismo, o secundário, mesmo quando somos quem sustenta e mantém sociedades inteiras de pé, reproduzindo e cuidando de tudo? Mesmo quando as dores do mundo recaem sobre as nossas costas? 

Chiziane disse “a escrita do homem não é questionada como a escrita da mulher. A palavra do homem tem valor, a palavra da mulher precisa ser analisada e ver se se lhe pode atribuir algum valor. O texto do homem não precisa ser reajustado, polido, cortado, mas o texto da mulher precisa passar por isso”. Como ouvir Chiziane e não lembrar das vezes sem conta que nos ensinaram a calar, que nos diziam não podemos falar naquele tom, com aquelas palavras, com aqueles gestos, para não ferir, para não passar dos limites, para não parecer a louca? Como ouvir e não pensar nas várias vezes que a nossa palavra é posta em causa? Como ouvir e não pensar que continuamos a ter de lutar constantemente para afirmar o nosso direito à palavra, a contar as nossas histórias, a denunciar as múltiplas violências de que somos alvo?

É quase impossível estar no mesmo espaço que Chiziane e não sentir a potência que ela é, parece que a aura dos nossos ancestrais a cercam. É difícil não querer fazer-lhe montes de perguntas sobre variados temas. Chiziane relembrou-me da minha avó que se sentava connosco à noite no quintal de casa, com um pequeno fogareiro, e contava-nos coisas. Ela parece um Griot, pensei. Pensei também nas perguntas que lhe queria fazer e fiz. Perguntei-lhe, dentre outras coisas, que conversa(s) ela considera urgente(s) ter com as mulheres africanas hoje. Primeiro, Chiziane disse que já tinha iniciado várias conversas com as mulheres africanas (e não só) nos seus livros. Os seus romances levantam diversas questões sobre a situação das mulheres em África e no mundo, através dos livros ela vem conversando há anos com todas nós. Entretanto, ela reforça: se tivesse de conversar hoje, falaria sobre a necessidade de não perdemos de vista a importância de olharmos para o nosso passado e aprender com as nossas ancestrais sobre nós mesmas, sobre nossas culturas, nossos saberes, sobre nossas formas de resistência às múltiplas adversidades no caminho das mulheres negras desde há séculos. É preciso lembrar daquelas que vieram antes de nós, que abriram o caminho, que criaram estratégias para resistir ao patriarcado, que mantiveram de pé um continente inteiro quando os seus filhos, filhas, e maridos eram levados para serem escravizados em terras distantes. É preciso pesquisar sobre a história de África, sobre a ancestralidade, sem o olhar preconceituoso e racista ocidental.

Chiziane acrescenta: falaria com as mulheres também sobre a necessidade de não sermos colonialistas umas das outras, de nos ouvirmos mais, de não reproduzirmos o machismo. Isso lembrou-me muito a palavra sororidade, uma palavra que a mim diz tanto e sobre a qual quero muito falar em outros momentos. Lembrei-me da sororidade como ferramenta política de luta e resistência ao patriarcado e diversas formas de opressão, mas pensei na sororidade também como ato de acolhimento. Junto com as palavras de Chiziane surgiram, na minha cabeça, as palavras de bell hooks “se não demonstrarmos que é possível eliminarmos as barreiras que separam as mulheres e que pode existir solidariedade, não podemos esperar que ocorra uma transformação ou uma mudança na sociedade como um todo” (hooks, 2020, p.101). Precisamos de continuar o caminho, já iniciado por outras mulheres, de sistematicamente criarmos pontes entre nós.

Terminou a conversa programada pelo festival e fomos para a sessão de autógrafos e conversas privadas com Chiziane. Eu tinha livros dela para serem assinados e tinha ainda coisas para dizer-lhe. Quando fui ter com ela, ao assinar os livros, disse-me “minha filha, os pais te deram mesmo esse nome que deriva do nome do genocida belga? Mas, enfim, não os julgo, já sabemos como foram os nossos processos de assimilação.” A pergunta sobre o meu nome iniciou um diálogo sobre assimilação, sobre a forma como fomos reproduzindo no pós-independência valores coloniais ocidentais. Contei à Chiziane um bocado da história do meu nome completo. Disse-lhe que tenho cinco nomes, sendo quatro em umbundo e um em português. Na altura do meu registo, o objetivo era que todos os nomes fossem em Umbundo, mas não foi permitido aos meus pais. Na verdade, até há bem pouco tempo, praticamente não era permitido registar crianças só com nomes em línguas bantu faladas no território de Angola, era imperioso ter pelo menos um nome em português. Aqueles que conseguiam registar os filhos e filhas só com nomes em alguma das línguas bantu, muitas vezes, tinham de travar sérias batalhas nos serviços de justiça para o efeito. Essa foi uma prática do sistema colonial que herdámos e, infelizmente, mantivemos por muito tempo porque as nossas independências não trouxeram a descolonização mental, continuamos a ter muito trabalho pela frente.

Chiziane ouviu o que lhe contei sobre o meu nome e disse “minha filha, eu entendo, não foi diferente com Moçambique. O que te posso dizer é que vocês, a nova geração, têm muito trabalho a fazer ainda em África. O processo de descolonizar continua e terá de ser levado adiante por vocês. Eu e outros já estamos velhos, vocês terão de continuar: arregacem as mangas, trabalhem.” Pensei em quanta responsabilidade era ouvir aquilo da boca de uma pessoa como Chiziane; pensei também em quão longo é o caminho que ainda temos pela frente e por um momento angustiei-me. Mas, lembrei também das pequenas mudanças que já estão em curso, das pessoas da minha geração que, aos poucos, já não aceitam mais valores e crenças herdadas do colonialismo e foram impregnadas no nosso tecido social. Sim, o caminho é longo, será por vezes tortuoso, inglório e extremamente desanimador, mas a força que nos move, creio, será maior ainda.

Desse encontro com Chiziane fica também guardada a referência que fez ao seu diário de sonhos. Ela contou que costumava registar os seus sonhos num diário e um desses sonhos era ir à Austrália ver um canguru, mantém a esperança de que isso vá acontecer nalgum momento. Ouvia ela falar sobre sonhos e achei muito bonito, dava para sentir a emoção nas palavras dela – espero e desejo que consiga ver os cangurus. Nisto pensei nos meus próprios sonhos, naqueles que gostaria de ver realizados, são tantos: há os sonhos que só se podem realizar coletivamente, como ter um país melhor para todas e todos, e há os sonhos pessoais como visitar alguns países de África nalgum momento ao longo dessa vida…

Por fim, espero e desejo que cada uma e cada um de nós, tal como Chiziane, mantenha acesa a chama dos seus sonhos, que não os percamos de vista: eles têm o poder de nos renovar a esperança e iluminar o caminho.  

Referências

Chiziane, Paulina. (2022). O Alegre Canto da Perdiz (4ªed.). Lisboa: Caminho.

Hooks, Bell. (2020). Teoria Feminista (1ª ed.). Lisboa: Orfeu Negro.

por Leopoldina Fekayamãle
A ler | 14 Maio 2023 | língua, Paulina Chiziane, prémio Camões, umbundo