Bibliotecas Comunitárias em Angola: espaços de cultura, aprendizagem e esperança para além do centro!
Em Angola, nos últimos dois anos e meio, surgiram vários projectos sociais, sem fins lucrativos, ligados à difusão do livro e da literatura no geral. Uma das componentes mais fortes nesses diversos projectos foi a criação de diversas bibliotecas comunitárias, em diferentes regiões do país, pelas mãos de jovens que se foram inspirando uns aos outros. Várias pessoas, em diferentes lugares, às vezes em simultâneo e outras não, foram dando asas à sua imaginação e dentro das suas comunidades criaram bibliotecas comunitárias que têm servido a um número significativo de pessoas, sobretudo crianças e jovens.
Deste grupo de jovens criadores de bibliotecas meus colegas e eu fazemos parte. Vivemos no Namibe, uma província no sul de Angola, e num dos bairros periféricos da nossa cidade, o Bairro Valódia, criámos uma biblioteca comunitária denominada Mbanje do Livro. Mbanje significa “casa”. E uma casa só de livros era tudo que nós desejávamos ter na nossa comunidade. Esse desejo foi alimentado por várias razões, algumas delas são a extrema dificuldade em conseguir livros em Angola porque são caríssimos para o bolso da maioria da população, e a ausência gritante de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de hábitos de leitura, à difusão e massificação do livro, e à promoção da literatura. Crescemos num contexto social em que o sistema de educação ainda não está devidamente estruturado para desenvolver hábitos de leitura e aproximar o livro das pessoas. Na escola, onde passamos parte significativa do nosso tempo ao longo da vida, quase não se lê – salvo aqui as excepções de trabalhos de alguns professores e professoras que dentro das suas escolas lutam para melhorar esta situação.
Há ainda o facto da quase ausência de bibliotecas públicas pelo país. Nalgumas províncias, existem bibliotecas públicas, entretanto a maioria destas serve muito pouco às populações, quer seja por conta do fraco (e muitas vezes desactualizado) acervo bibliográfico, quer seja pelos horários e formas de funcionamento. Às pouquíssimas bibliotecas públicas institucionais que existem pesa também o facto de estarem localizadas nos centros urbanos – nas capitais das províncias – o que constitui um factor de exclusão para as pessoas que vivem fora desses centros. Diante deste cenário, jovens espalhados pelas diferentes regiões de Angola têm buscado alternativas para que nas suas comunidades as pessoas consigam estabelecer relações com o livro, para que além do centro existam espaços onde se possa ler, debater, acolher diversas actividades artísticas e se possa pensar um país que contemple todas e todos.
Nesse espírito, partindo da nossa própria experiência de vida – que nos trouxe um entendimento da importância de ler e da literatura para a vida das pessoas – unimos forças e durante a pandemia começámos a fazer contacto com várias pessoas e instituições em busca de apoios. Para nós é fundamental realçar sempre que o Mbanje foi erguido por meio das diversas doações que recebemos. Nós lideramos o projecto, mas para a sua execução real foi preciso um trabalho colectivo que envolveu várias fases, pessoas e instituições. E aqui destaca-se o papel do envolvimento comunitário nos projectos sociais. Não é possível trabalhar para as nossas comunidades sem que elas se envolvam, se engajem e participem. É fundamental construirmos em conjunto o entendimento da importância da cultura, do livro, da literatura para a vida das pessoas porque só assim “a catarse colectiva” acontece. O trabalho comunitário é uma forma de crescer junto e de lutar por transformações sociais significativas nas nossas comunidades. Neste caso específico, acreditamos que a literatura é também um caminho para transformação e enriquecimento da bagagem cultural individual e colectiva.
Durante seis meses intensos mobilizamos pessoas que nos doaram dinheiro, material e mão de obra não remunerada para transformar em biblioteca o espaço que havíamos conseguido. Um espaço que havia sido criado anos antes para ser uma casa da juventude, mas que andava em degradação profunda. “Re-significamos” o lugar. Com diferentes mãos arranjámos as janelas, as portas, mexemos na tinta para pintar paredes, lavámos, limpámos e fomos todas e todos construindo uma relação com o espaço. Lembro-me de termos recebido várias crianças ao longo desse processo, e da ansiedade delas quando explicávamos que estávamos a criar ali um espaço que seria também para elas: “um espaço que vos faça sentir em casa e na companhia de muitos livros”, dizíamos-lhes. Víamos o brilho nos olhos dessas crianças e prosseguíamos.
Algo ainda a realçar nessas crianças que nos visitavam: uma boa parte delas, apesar de andar na escola, nunca antes tinha lido um livro, não tinham sido introduzidas à leitura de livros literários e explorado vários sentimentos por meio do texto, ou a magia e o encantamento que se nos fica ao lermos um bonito conto, ou ainda a beleza de um poema. Perguntávamos se sabiam o que era uma biblioteca e não sabiam; perguntávamos se havia bibliotecas nas suas escolas e não havia. Uma realidade que é bastante comum em Angola, sobretudo nas escolas localizadas em zonas periféricas. Nossas escolas são maioritariamente construídas sem pensar na inclusão de bibliotecas. Nas poucas escolas em que as bibliotecas existem, elas funcionam muito pouco por várias razões: a falta de incentivo aos alunos para frequentarem os espaços, o fraco acervo bibliográfico (muitas vezes restrito a livros didáticos), o fraco investimento na formação e contratação de profissionais (bibliotecários) para trabalharem efetivamente nessas bibliotecas.
É imprescindível pontuar aqui que o mau funcionamento das poucas bibliotecas que existem nalgumas escolas é também o reflexo da falta de planos estruturados, consistentes e que devem ser bem adequados à nossa realidade. No início do ano passado foi lançado o Plano Nacional de Leitura pelo Ministério da Educação de Angola, no papel o mesmo refere alguns objetivos importantes para se chegar à meta que é desenvolver hábitos de leitura pelas escolas no país. Além de objetivos, o Plano traz a componente de ações a desenvolver e aqui, até ao momento, não vemos quase nada feito. Não temos visto ações voltadas a criação de bibliotecas escolares ou ações voltadas ao melhoramento das que já existem; não temos visto ações voltadas a formações contínuas para professores e educadores de infância no âmbito do desenvolvimento de hábitos de leitura, à promoção de debates nacionais e provinciais sobre a importância do livro, à distribuição de livros de forma gratuita pelas escolas do país, etc., tudo isso e muito mais escrito neste Plano. Infelizmente, na prática a teoria tem sido outra.
Ademais, importa realçar também que um Plano Nacional de Leitura precisa contemplar ações além da Escola, envolver outros órgãos do Estado além do Ministério da Educação, o que não acontece neste caso. Não adianta ter uma lista de livros por ler dentro do Plano quando, por exemplo, as editoras e livrarias pagam taxas altíssimas de impostos para conseguirem movimentar e fazer circular os livros de um lado para outro; ou quando se importa papel e se paga taxas caras para obter esse material. Do convívio que tenho com editores e responsáveis por livrarias, chegam vários relatos sobre os desafios que enfrentam para desalfandegar livros em Angola. Desafios enormes e extremamente dispendiosos. No final, todo o peso financeiro que as editoras e livrarias têm com os impostos naturalmente acaba sendo aplicado sobre o preço dos livros. O resultado disso é termos livros a preços que a maioria da população – boa parte em situação de vulnerabilidade socioeconómica – não consegue comprar. E se as pessoas não conseguem comprar livros, se não têm muitos espaços públicos e gratuitos onde os podem encontrar elas precisam de explorar caminhos para seguir.
A criação de bibliotecas comunitárias tem sido um desses caminhos. À nossa volta vamos percebendo a pertinência e a utilidade de projectos como este. E pensar na utilidade de uma biblioteca foi o que nos moveu e move até hoje. Pensar na biblioteca como um espaço para criar pontes entre livros e pessoas, entre artistas de música, de dança, artes plásticas e um público vasto, existente além dos centros urbanos, é um caminho para garantir o acesso à cultura e às artes a quem tem muito mais dificuldades de conseguir isto por si só ou por estar fora do centro.
Erguemos o Mbanje em 6 meses de trabalho incansável. Inauguramo-lo e começamos a receber pessoas. Recebemos pessoas de forma absolutamente gratuita. A maioria delas são crianças, adolescentes e jovens que têm tornado a leitura parte importante do seu dia a dia. O Mbanje oferece uma variedade de livros, desde literários até aos científicos. O nosso acervo foi montado a pensar na diversidade, graças a colaboração, empenho e doações de diversas pessoas e instituições. Antes de inaugurarmos o Mbanje, fizemos uma formação intensiva sobre gestão de bibliotecas para que conseguíssemos levar adiante o nosso trabalho com o mínimo de rigor possível. A formação foi-nos oferecida no âmbito dos apoios de pessoas e instituições que contactamos, mais uma vez ficou entendemos a importância de trabalhar em comunidade.
Desde que colocamos a biblioteca a funcionar temos procurado ser mais do que uma casa que só disponibiliza livros. Desafiamo-nos a desenvolver nela actividades que, além do lazer, se centram em promover várias manifestações artísticas e artistas locais: adolescentes e jovens que se dedicam à música, ao teatro, à dança, às artes plásticas e encontram na biblioteca um lugar para se apresentar nas actividades culturais que desenvolvemos. Temos sido também um espaço que acolhe actividades, reuniões e tertúlias realizadas por vários grupos de jovens sempre que precisam de um abrigo. Entendemos a importância de sermos uma via para fortalecer o trabalho dos Outras pessoas – um Outro/a que nos inclui – mesmo que às vezes seja só por meio de ceder um espaço onde nos podemos congregar.
Tal como o Mbanje, nas outras bibliotecas comunitárias têm acontecido também actividades que promovem a Arte e a Cultura. Tudo isso acontece dentro de bairros periféricos, além do asfalto. É emocionante, lindo e profundo ver a forma como os jovens se mobilizam de dentro dos seus bairros para se juntar nas bibliotecas comunitárias, pôr sobre a mesa as suas narrativas, encontrar pontos comuns entre elas e a partir daí pensar na construção de um país melhor para todos e todas.
Nós, e as outras bibliotecas comunitárias que existem, temos promovido conversas com escritores angolanos, o máximo que conseguimos. Fazemos apresentação e venda dos seus livros – normalmente a preços mais baixos, em função do nosso contexto e da boa vontade dos autores. As conversas com os escritores significam muito para nós: ter pessoas que escrevem sobre o nosso país, sobre a vida e as suas dinâmicas para pensar junto connosco, dentro dos nossos espaços, fortalece as visões de mundo para o bem comum, de forma coletiva; ter pessoas inspiradoras a conversar com os adolescentes e jovens das nossas comunidades mostrando-lhes que é também possível ser escritor e fazer um caminho nesse sentido, significa contribuir para que a nossa Literatura se eternize e se enriqueça infinitamente.
Há ainda um projeto que desenvolvemos dentro do Mbanje denominado O Livro em Movimento. O projeto consiste em mensalmente montar bibliotecas móveis em outros bairros periféricos da nossa cidade. Entendemos a importância de criar espaços como o Mbanje, mas sabemos que não é suficiente, não chega para atender o tanto de pessoas que nos procuram. Por isso, todos os meses fazemos os possíveis para movimentar livros até um bairro periférico específico, e ali disponibilizamo-los às pessoas por um período de tempo. Muitas vezes sentimos que não é o suficiente, mas em simultâneo sabemos que o fazemos na medida que nos é possível, com força, determinação e coragem. No final, apesar das dificuldades, guardamos sempre as boas memórias e a satisfação no rosto das pessoas por termos criado pontes entre elas e os livros de forma gratuita; por termos sentado com elas para pensar junto por meio dos livros.
Se as bibliotecas comunitárias são de todo a resposta aos desafios que temos no âmbito da promoção e difusão da Literatura, penso que não completamente. Sem contar que para o tamanho de Angola precisamos de muitas mais bibliotecas além das que existem. Entretanto, com toda a certeza posso afirmar que as existentes constituem atualmente uma das melhores alternativas, usadas por jovens, para dinamizar a vida cultural nos seus bairros e trazer esperança às pessoas. E no nosso país, nestes dias que correm, trazer esperança às pessoas, sobretudo aos adolescentes e jovens, é tudo o que precisamos.
Quero finalizar este texto deixando aqui o nome de algumas das bibliotecas comunitárias que conheço e as respetivas localidades. Elas têm sido espaços seguros para acolher crianças e jovens no dia a dia. Nomeadamente: a Biblioteca Comunitária 10Padronizada – localizada no município de Viana em Luanda, na ponte da Robaldina; o Ondjango Literário-Biblioteca Comunitária – localizada em Benguela; a Biblioteca Contr’Inorância – localizada em Luanda; a Biblioteca de Rua Kalunga Dya Kwijya – localizada na Ilha de Luanda; a Biblioteca Comunitária do São João – localizada na cidade do Lobito, província de Benguela; a Biblioteca Conhecemos os Benefícios da Leitura – localizada em Benguela; a Biblioteca Livros São Portas – localizada no bairro Gamek, em Luanda; a Biblioteca Wayula Ovassu – localizada no bairro Boa Vista em Benguela; a Biblioteca Mujango – localizada no bairro dos Congolenses em Luanda; a Biblioteca 10Formalizada – localizada no Camama em Luanda; a Biblioteca Calumbiro – localizada na cidade do Lubango, província da Huíla; a Biblioteca KUDILONGA – localizada no município do Sambizanga, província de Luanda; e a Biblioteca Comunitária Cacilda de Lemos – localizada no bairro 5 de Abril na província do Namibe.
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Artigo publicado na revista Mundo Crítico.