Confiança radical
Hospitalidade. Coragem. Humildade. CONFIANÇA.
No último encontro do nosso grupo RESHAPE, que reflecte sobre arte e cidadania, escrevi estas quatro palavras, que surgiam com frequência nos nossos debates. Em especial a palavra “CONFIANÇA”, que trazia também de outros encontros e conversas. Surgiu em tantas ocasiões nos últimos meses, que, finalmente, chamou a minha atenção.
A 13 de Dezembro, último dia da reunião do RESHAPE, acordámos com as notícias das eleições britânicas. Um dos primeiros artigos que li naquela manhã intitulava-se “Why people vote for politicians they know are liars” (Porque é que as pessoas votam em políticos que sabem que são mentirosos), a pergunta premente na mente de muitas pessoas.
«Serão as pessoas insensíveis às falsidades? Não saberão se as coisas são verdadeiras ou falsas? Não se preocupam mais com a verdade?», questionava o autor, Stephan Lewandowsky, professor de Psicologia Cognitiva. Continuou explicando a distinção entre o nosso entendimento convencional de honestidade e a noção de “autenticidade”: «O principal elemento da honestidade é a precisão factual, enquanto o principal elemento da autenticidade é um alinhamento entre as personalidades pública e privada de um político.»
Lewandowsky referiu-se à pesquisa de Oliver Hahl, que identificou as circunstâncias específicas em que as pessoas aceitam políticos que mentem. «Somente quando as pessoas se sentem desprovidas de privilégios e excluídas de um sistema político é que aceitam mentiras de um político que afirma ser um defensor do ‘povo’ contra o ‘establishment’ ou a ‘elite’. Nessas circunstâncias específicas, violações flagrantes do comportamento defendido por essa elite – como a honestidade ou a justiça – podem tornar-se num sinal de que um político é um autêntico campeão do ‘povo’ contra o ‘establishment’». Com base novamente na pesquisa de Hahl, quando as pessoas consideram um sistema político legítimo e justo, rejeitam os políticos que dizem falsidades e detestam que lhes mintam. «Para neutralizar os demagogos», escreve Lewandowsky, «e tornar a mentira novamente inaceitável, é preciso que os eleitores recuperem a CONFIANÇA no sistema político.»
Confiança também é a palavra para a cidade de Helsínquia, que tem a ambição de se tornar na cidade mais funcional do mundo até 2021. No seu documento estratégico 2017-2021, lê-se que uma cidade funcional tem como base a confiança. «Uma cidade funcional tem muitos pontos fortes e poucos pontos fracos. A funcionalidade baseia-se na igualdade, na não-discriminação, na forte coesão social e em formas de operar abertas e inclusivas. Todas as pessoas sentem-se seguras em Helsínquia. Uma cidade funcional baseia-se na CONFIANÇA. A segurança e uma sensação de CONFIANÇA mútua e união são uma vantagem competitiva para a cidade. A cidade é para todos. A cidade é construída em conjunto.»
Esta visão é reflectida nas acções concretas que a cidade está a adoptar para implementar o seu plano. Falando sobre a nova biblioteca pública de Helsínquia (2018), Tommi Laitio, director executivo da cidade para a cultura e o lazer, disse numa entrevista: «Este progresso de um dos países mais pobres da Europa para um dos países mais prósperos não é acidental. Baseia-se na ideia de que quando somos tão poucos – apenas 5,5 milhões de pessoas – todos têm que aproveitar todo o seu potencial. A nossa sociedade depende fundamentalmente das pessoas poderem CONFIAR na bondade de desconhecidos.»
Parece-me que a CONFIANÇA é talvez uma das acções mais radicais para enfrentar os demagogos, os populistas, os mentirosos, os “autênticos” salvadores. Mas temos ainda um longo caminho pela frente, que exige uma construção sobre os valores de honestidade, transparência, empatia e inclusão. As pessoas, os cidadãos, precisam de se sentir fortes, confiantes, com poder. Precisam de sentir que são importantes, precisam de acreditar que “Sim, eu posso fazer algo”. Confiar na bondade de desconhecidos, no entanto, não é algo que acontece “porque sim”. Confiar é ir contra os instintos de medo e sobrevivência. É radical; é preciso coragem; é o que nos falta.
Numa das reuniões do RESHAPE, no ano passado, uma das minhas colegas partilhou este excerto do livro de Jay Griffiths “Wild”: «Fui educado – como todos nós o somos – para ficar dentro, dentro dos limites da minha tribo (limites físicos e intelectuais) e permanecer dentro da zona protegida, deixar o trânsito da rotina sufocar o desejo pelo verdadeiro exterior. Fui ensinado – como todos nós o somos – a ter medo do desconhecido à minha volta, dos desertos selvagens do além.» “How can art better support practicing citizenship together?” (Como pode a arte apoiar melhor a prática da cidadania em conjunto?) é a questão central do nosso grupo. Talvez ajudando as pessoas a descobrir e CONFIAR na sua imaginação, alimentando «a energia e a motivação daqueles que tentam converter palavras em acções concretas».
Publicado no blogue Musing on Culture a 4.1.2020
Pré-publicação de alguns excertos no Buala.
Ficha técnica
Título: O que temos a ver com isto? O papel político das organizações culturais
Autora: Maria Vlachou
Prefácio: Tiago Rodrigues
Editora: Tigre de Papel e Buala
Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian
Número de páginas: 168
Formato:11cm x 17cm
ISBN: 9789895342945
Contacto: Tigre de Papel | geral@tigredepapel.pt