“A voz underground”, por Reem Kassem (Egipto)
No Egipto, sempre pareceu que a única coisa capaz de juntar as pessoas era o futebol. Sempre que a selecção nacional está em acção, todos sentem a mesma coisa. Os jovens reúnem-se nos cafés, outras pessoas em casa e outras ainda montam ecrãs no exterior para as pessoas poderem ver o jogo na rua. A mudança acontece apenas quando as pessoas gritam e quando existe uma necessidade colectiva. Os egípcios estavam à procura de outras formas que os pudessem juntar, de novas ferramentas através das quais poderia expressar-se e promover um diálogo com significado.
O sector cultural veio fornecer actividades culturais e artísticas para o público em geral. No Egipto não há centros culturais suficientes e as actividades propostas não conseguiram dar resposta às necessidades da sociedade egípcia. Inevitavelmente, as actividades culturais estão sobretudo centradas no Cairo e depois em Alexandria, e o resto do país é totalmente ignorado. Além disso, as formas tradicionais de actividades culturais apresentadas em salas de concertos e centros de conferências não conseguiram atrair novos púbicos – são sempre as caras do costume.
Existem duas camadas no sector cultural egípcio: aquela gerida pelo governo e a independente. A primeira é representada pelo Ministério da Cultura e entidades a ele associadas; a segunda é a cena underground. Quase em todas as regiões do Egipto existem teatros nacionais, teatros de ópera, palácios culturais e grupos de dança e de música oficiais do Ministério. A cena underground, que surgiu em 2006 e cresceu rapidamente entre 2009 e 2011, é representada por jovens artistas de todas as disciplinas que não são financiados pelo Ministério da Cultura e, portanto, não são controlados pelo Governo. Actuam sobretudo em privado e em centros culturais de outros países e, até um certo ponto, são os ‘homólogos’ das ONGs e das iniciativas não-governamentais no Egipto.
Como os artistas underground conseguiram dar à população aquilo que os artistas oficiais não puderam dar, através das suas actuações em centros culturais não-governamentais ou nas redes sociais, juntaram um grande número de fãs que acreditam nas artes alternativas. Por exemplo, a banda Massar Egbari (que significa “caminho obrigatório”) canta canções sobre problemas sociais, como o desemprego, o caos do trânsito e as más condições de vida. Esta banda, e outras que partilham a mesma missão, criam com o público uma relação que não é apenas a de artista-espectador, mas uma espécie de ligação, onde o público pode usar a banda para descarregar a sua energia negativa e carregar-se com esperança. O público sente-se confortável em comunicar os seus problemas através das canções da banda e da sua música. Foi assim que a camada independente do sector cultural começou a influenciar os jovens deste país; sobretudo através da cena underground. Tornou-se, portanto, numa prioridade urgente dar resposta à necessidade para mais eventos culturais, teatros, espaços e projectos que irão satisfazer esta procura crescente.
Em 2009, os artistas e os operadores culturais aperceberam-se deste desejo crescente da comunidade por eventos públicos e street art. Os gestores culturais começaram a lutar para obter licenças. Houve várias tentativas para organizar eventos em espaços públicos, que foram impedidos por questões de segurança ou parados na fase do planeamento pelos decisores políticos. O processo chegou ao fim com a chamada “Revolução Cultural”. Quando começaram os protestos no dia 25 de Janeiro, uma nova janela se abriu, dando aos artistas o sinal que deveriam assumir a liderança. Em menos de cinco dias, foram compostas canções, foi escrita poesia, foram iniciadas produções teatrais, foram preparadas exposições de fotografia e foram feitos filmes. Foram construídos palcos em espaços públicos e os artistas apresentaram espectáculos revolucionários. Como resultado, a cena underground tornou-se oficialmente na representação ideal da cultura contemporânea e, de uma certa forma, serviu para formar as novas políticas culturais.
No último ano, as estruturas culturais independentes têm sido muito activas. Muitas são novas e têm uma missão orientada para o espaço público e a street art. A criatividade com a qual têm trazido as artes a espaços não-tradicionais tem surpreendido os Egípcios e tem mudado muito a sua percepção das coisas. As entidades financiadoras têm dedicado especial atenção a projectos que trabalham com ou envolvem novos públicos e promover o acesso livre à cultura. A última coisa que queremos neste momento é tratar as pessoas como meros espectadores. A fase actual de transição política é um momento para participação e mudança social e as instituições culturais deveriam seguir a mesma linha.
A arte em espaços públicos pode ser entendida como o reflexo da nossa identidade e cultura colectiva. Tem um alto potencial para celebrar a diversidade da nossa sociedade e fortalecer o sentimento de pertença. No entanto, nos últimos anos não tinha havido nenhum compromisso público ou interesse nisso e, assim, a distância entre o indivíduo e a comunidade aumentou. A realidade cultural no Egipto está a mudar com o uso do espaço público por artistas independentes, com a reinvenção do espaço público através de festivais multi-artes e com a apresentação de novas formas de arte em público.
Reem Kassem começou a trabalhar no Centro de Artes da Biblioteca Alexandrina em 2003. Em 2010 tornou-se Responsável pela Programação de Artes Performativas. Coordena o programa mensal e os festivais de artes performativas, gere as assinaturas do Centro em redes internacionais e promove as suas produções internacionalmente. Em 2011, criou AGORA for Arts and Culture, uma organização independente que liga a prática artística e a educação não-formal ao desenvolvimento social. Em 2012, criou AGORA International, com base em Marselha (França). Tem participado em vários fóruns culturais em países europeus e do norte de África.
Originalmente publicado em: Musing on Culture.