Delinquência juvenil na Praia

APRESENTAÇÃO DO LIVRO “JOVENS E TRAJETÓRIA DE VIOLÊNCIA. OS CASOS DE BISSAU E DA PRAIA”, Pureza, J.M; Roque, S.; Cardoso, K. (Orgs), Coimbra, Almedina/CES, 2012

 

A delinquência juvenil trata-se de um dos temas de maior atenção em Cabo Verde e, em particular, na cidade da Praia, pelos vários motivos que os autores referem nos seus trabalhos. Numa perspectiva mais ampla, a delinquência juvenil é, seguramente, um dos domínios mais escrutinados actualmente, associado à violência urbana e à guerra de gangs ou bandos, conforme o lugar a que se refere a análise. No que se refere aos textos sobre a cidade da Praia, considero que cumprem aquilo a que academia deve se dedicar, ou seja, propõem quadros outros de leitura da realidade e apontam os limites das leituras hegemónicas feitas até ao momento sobre a realidade cabo-verdiana.

Os textos dão conta da construção jurídica e social dos comportamentos ditos violentos perpetrados por jovens que a sociedade reconhece como ilegitimamente violentos e que um direito sanciona como tal. De formas específicas e coincidentes com as suas disciplinas de origem, os autores partilham a noção de que a tendência geral em analisar-se a delinquência juvenil como um fenómeno novo em Cabo Verde cria um cenário estereotipado.

fotografia de Redy Lima, Praia fotografia de Redy Lima, Praia

Os textos tratam das formas experimentadas de disciplinarização do corpo e o papel do Estado como principal alavanca desse processo. Poder-se-á dizer, a partir dos textos, que o Estado cabo-verdiano investe fortemente nas suas prerrogativas soberanas em matéria penal e procura impor um novo controle social? O processo de criminalização seria a chave e acontece sem descontinuidade desde o início; o legislador não cessa de criar novas infracções bem como de endurecer a perseguição e repressão das incriminações preexistentes. Entramos num período de verdadeiro frenesi securitário com constantes reformas do código penal e do código de procedimento penal. Acompanha esse movimento uma crescente judiciarização dos conflitos da vida social, a tendência ao recurso à justiça para regular os litígios, conflitos e diferendos de todos os géneros, ao mesmo tempo em que reduzem-se as capacidades de regulação de conflitos interindividuais nas microcomunidades sociais. A urbanização continua, de fato, devido ao desenvolvimento da periurbanização mas esta não é acompanhada de nenhuma reconstrução da dinâmica comunitária. Ao contrário, os modos de vida periurbanos separam cada vez mais a vida familiar da vida do trabalho, dos comércios onde as pessoas fazem as suas compras e mesmo dos equipamentos escolares, de lazer e dos lugares de engajamento associativo. Os contactos de proximidade encolhem neste tipo de vida e acentua-se um movimento antigo de redução das capacidades de regulação infrajudiciárias dos conflitos inteindividuais. Com a falta de interconhecimento, de hábito de diálogo e de mediação, os indivíduos encontram-se sozinhos entre si para regular os seus conflitos e, se não chegarem a acordo, não há outra solução que não seja voltarem-se para os poderes públicos.

fotografia de Redy Lima, Praia fotografia de Redy Lima, Praia

As abordagens à realidade de Cabo Verde e da cidade da Praia, especificamente, têm-se detido, em grande parte, nas visões e estratégias oficiais experimentadas a propósito da delinquência juvenil, mas este livro atesta a complexidade do fenómeno, adiantando que é preciso ir além no conhecimento dos autores, das vítimas e suas circunstâncias, mergulhar fundo na vida dos gangs e das zonas periurbanas da capital, descobrir os diferentes perfis de vida -de ontem e de hoje- e analisar as razões e especificidades das diferentes situações que descrevem o que, em Cabo Verde, compreende-se por delinquência juvenil.

Também, tornar-se-á indispensável a sua leitura aos pesquisadores interessados em compreender a construção da delinquência juvenil como violência, facilitada pela ameaça à integridade física como fator determinante dessa construção e da justificação social em relação às respostas oficiais consentidas para este tipo de ato, num tempo em que outras violências são referidas mas permanecem particularmente invisíveis. Refiro-me, por exemplo, às condições desumanas em diversos contextos de trabalho que provocam respostas trágicas de ataque ao corpo por meio de somatização e doenças que se tornaram problemas de saúde pública, às múltiplas formas mais sutis de violência como o consentimento social face à pobreza extrema, as incivilidades que encobrem todo o tipo de microviolências no cotidiano, a negligência para com os deficientes ou idosos ou a violência política na nova democracia.

Enfim, poder-se-ia referir as diversas formas de violência simbólica que alimentam as violências físicas mas que não são construídas como tal, ao contrário da delinquência juvenil que transformou-se na face mais visível da violência em Cabo Verde, objecto de numerosas polémicas que, como apontam os autores, devem animar mais os debates em ciências sociais e humanas, ultrapassando a mera retórica oficial, o tratamento dado pela comunicação social ou as conversas de rua.

Os autores privilegiam a análise qualitativa, no entanto, não vemos aqui recusada a relevância de um debate (ainda por realizar) em torno de cifras confiáveis da violência que permita contrapor a perceção inflacionada com números objectivos. A supermediatização de alguns acontecimentos alimenta a ideia de que a sociedade está mais violenta, ou melhor, que os jovens (pobres) estão mais violentos. Contribui, também, para vincar as diferenças de condutas entre os “bons” e os “maus” atores sociais, reforçando, em determinados grupos, a convicção de que, inegavelmente, pertencem à categoria dos “bons cidadãos, cumpridores”, claramente diferenciados dos “maus” que, além disso, comprometem a imagem do país. Há, portanto, a constituição de um tipo de vítima social (em potencial) que indigna-se com o fato desses jovens estarem a colocar em causa todo um esforço de constituição de um colectivo e a sua boa imagem para o exterior. No entanto, a maior parte dos jovens e jovens adultos sujeitos dos estudos apresentados não parece ter interiorizado a promessa de um projecto de nação baseada na igualdade de oportunidades e de acesso aos recursos para todos os cabo-verdianos ou, dito de outra forma, vivem, em pleno, as contradições entre a promessa de um desenvolvimento multidimensional, como refere Pureza na sua introdução a esta obra, e a drástica redução da agenda. Neste caso, como mostram os estudos, as intervenções pretendem atingir muito mais os factores de inadaptação individual desses jovens à dinâmica social, enfraquecendo-se, por conseguinte, a referência à privação do seu poder de acção, equidade, acessibilidade e representação pública na sociedade cabo-verdiana.

A nosso ver, as conclusões dos autores não deixam dúvidas de que as abordagens ao fenómeno têm contribuído para clarificar a identificação daqueles que estão de fora e pertencem ao disfuncionamento social, processo este muito importante na consolidação de um tipo de ordem social em Cabo Verde, em que definem-se as distinções entre as pessoas e grupos e a forma como tais distinções são comunicadas, apreendidas e aplicadas nos processos ordinários.

Ou seja, num contexto de crescimento e de desenvolvimento em que a colectividade abandona os pressupostos da distribuição mais justa dos bens e recursos nacionais, torna-se necessário, novamente, reconhecer aqueles que são capazes de jogar o novo jogo social e os que, não cumprindo os parâmetros da normalidade instituída, confirmam, assim, as definições dos grupos dominantes acerca do que é sinal de desvalor ou de incapacidade social.

fotografia de Redy Lima, Praia fotografia de Redy Lima, Praia

Os estudos apresentados não referem-se apenas às dúvidas dos agentes oficiais, não-oficiais e a comunicação social sobre a capacidade de participação social desses jovens mas vão mais além e alcançam as perspectivas dos jovens sobre si mesmos, a sua avaliação sobre o tipo de inscrição que têm nos espaços que não favorece a realização da experiência de si ou a expressão por meio de formas reconhecíveis pelo outro (o não-delinquente), no sentido do diálogo e da cooperação. Em síntese, em geral, existe clareza, entre os jovens, sobre o valor social negativo das suas acções e do peso das mesmas quer na construção identitária, quer na definição da capacidade de ser membro da colectividade podendo jogar o jogo da interacção social.

Ao mergulhar nas práticas cotidianas dos denominados thugs dos bairros periurbanos da capital, Redy Lima descreve as lutas travadas pelos jovens a fim de tornarem-se sujeitos, adquirirem a capacidade de falar e de agir e, assim, participar nos processos de intercompreensão e de afirmação da própria identidade. Este texto, em particular, abre para a necessidade de analisarmos os processos que atravessam a sociedade cabo-verdiana e nos interrogarmos sobre as diferenças relativas aos tipos de território e dos grupos sociais que os habitam. O autor analisa as formas de organização experimentadas pelos jovens como expressão da construção de um lugar social de forma que lhes permite perceber as coisas, estabelecer estratégias de actuação e subversão social e agir conforme uma definição social de si que partilham com os demais.

Especificamente, o seu texto chama a atenção de não se poder ignorar a história, os problemas específicos da adolescência e da construção das identidades sexuais e das relações sociais. Os estudiosos devem propor-se a conhecer as dinâmicas das sociabilidades masculinas e femininas juvenis, em particular, o processo singular da formação de bandos e a forma como evoluem para práticas delinquentes, como alerta Redy Lima.

Com efeito, o que está em jogo são as possibilidades que conformam uma cultura de exclusão no sentido de uma forma comum de interpretar determinada experiência que se fecha na identidade do bairro, forma uma previsão (predição) negativa sobre as possibilidades de sair dali, valoriza os atos de rebelião e legitima as estratégias de “se virar” mesmo as mais ilícitas.

Em todos os trabalhos encontram-se referidas as diferenças dos modos de vida do “hipercentro” em relação às zonas periurbanas em pleno crescimento. Na cidade da Praia a polarização não cessa de crescer, provocando a “guetização” ou o “separatismo social” (Maurin, 2004)). A separação não é apenas socioeconómica mas tem, igualmente, consequências psicológicas em termos de identidades colectivas (portanto, de fronteiras tanto sociais como mentais). A segregação constitui o principal fator que contradiz o processo geral da pacificação das condutas e a análise da evolução das violências interpessoais reenvia à questão da organização democrática da repartição das riquezas determinando as condições de vida. Pensar o futuro desta questão é difícil porque articulam-se processos de natureza diferente, como mostram os autores. Tais processos correspondem às evoluções profundas no modo de vida e nas nossas representações pois a pacificação, judiciarização e competição pelo consumo parecem continuar a desenvolver-se por longos anos. O processo de segregação continua actualmente a enraizar-se mas depende, em boa parte, da acção (ou da inação) dos poderes públicos.

fotografia de Redy Lima, Praia fotografia de Redy Lima, Praia

Todos os autores debruçam-se sobre a atuação dos atores oficiais e da comunicação social, em especial, Lorenzo Bordonaro e Marta Peça, respectivamente, e introduzem a discussão sobre a eficácia dos meios e tácticas sociais que o colectivo possui e utiliza para empurrar seus membros para determinado estatuto. Neste caso, os textos esclarecem sobre a força das representações que se constroem sobre esses jovens em Cabo Verde e a possibilidade de (quase) transformação de indivíduos num género particular. 

Os textos chamam a atenção para o predomínio da visão securitária da violência juvenil e do processo de criminalização que depende mais directamente das evoluções da gestão pública das questões de segurança. A estratégia actual dos poderes públicos é a de responder à questão da violência por um uso quase exclusivo da incriminação (ou seja, a elaboração permanente de novas leis que endurecem o código penal antes mesmo que se disponha da avaliação dos precedentes) e por uma prevenção que se reduz à criação de leis e centros e cuja eficácia reduzida é rapidamente atribuída à falta de meios.

O que fica claro, sobretudo no trabalho de Lorenzo Bordonaro e Kátia Cardoso são as limitações das políticas que o Estado cria para a regulação do vínculo social como garantia da coesão social (Paugam, 1991). Com o predomínio de uma visão securitária, a passagem dos jovens pelas instituições vocacionadas para a disciplinarização dos corpos e contenção da violência, ao invés de significar uma interrupção pedagógica na forma como construíram a sua existência e participação social até ao momento, transforma a punição social num ato a longo prazo e vinca a intenção de invisibilização social pelos atos cometidos. Muito mais do que a punição social face aos seus atos de delinquência, o que as condições que partilham nos estabelecimentos prisionais procuram incutir nesses jovens são as cláusulas do acordo social referentes às aptidões necessárias para viver na colectividade e a sua impossibilidade/incapacidade de cumpri-las. Igualmente servem muito mais para vincar a sua “inintegrabilidade” e (in)competência para inscreverem-se na táctica do jogo (social) da forma como este está montado.

Pelo conjunto dos textos, fica claro que o fenómeno surgiu na mídia em ligação com o debate político sobre a insegurança e as violências urbanas. Apresentada como um acontecimento novo, a delinquência juvenil, no entanto, não é nova nem os fantasmas que suscita; acredita-se que são novos os comportamentos que só o são na sua denúncia. Nesse caso, como reflectir sobre um fenómeno cuja definição não cessa de se ampliar? Em que medida a sociedade interpreta isso como “um preço a pagar pela manutenção das desigualdades e das situações de exclusão numa sociedade de consumo em pleno desenvolvimento”?

Torna-se necessário compreender as transformações das nossas sensibilidades e representações cuja elevação amplia o campo dos atos denunciados como insuportáveis ao mesmo tempo que acentua a compaixão a empatia moral em torno das vítimas desses atos, sobretudo se estiver presente a noção de sofrimento.

Enfim, o livro mostra que a análise sociológica deve afastar-se de julgamentos moralizadores e de categorias mediático-políticas. Trata-se de compreender um fenómeno social procurando estabelecer a realidade empírica dos fatos, estudar os autores, as vítimas, as suas relações, as situações e os contextos. A partir deste livro, as questões que devem interessar os cientistas sociais têm a ver com o sentimento subjectivo da violência, as formas pelas quais a sociedade orienta os problemas da delinquência juvenil, as razões da primazia da resposta securitária. 

Aguarda-se pela apresentação da continuidade das pesquisas desenvolvidas pelos autores e, sobretudo, desejo que os resultados aqui apresentados possam ser amplamente divulgados e sejam objecto de reflexão no seio da sociedade cabo-verdiana, em particular, a sua comunidade académica para que se possa cruzar pontos de vista e ultrapassar o predomínio da visão securitária e legalista do tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Évora, I. (2005) “O lugar da exclusão social”, Revista Direito e Cidadania, Ano VII, n.22.

Maurin, E. (2004) Le ghetto français, ênquete sur le séparatisme social, Paris, Le Seuil. 

 

Mello, S. L. (2001) “A Violência Urbana e a exclusão dos jovens”, In: SAWAIA, B. (org.), (2001) As artimanhas da exclusão, Petrópolis, Vozes, p.129-140.

Paugam, S., (1991) La disqualification sociale. Essai sur la nouvelle pauvreté, Paris, Presses Universitaires de France, coll. « sociologies », 4ème édition mise à jour 1997.

Sawaia, B. (org.), (2001) As artimanhas da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes.

 

por Iolanda Évora
A ler | 8 Fevereiro 2013 | Cabo Verde, delinquência juvenil, jovens, Praia, violência