Apresentação do livro “Mulheres em Cabo Verde. Experiências e perspectivas”

Eis-nos aqui, finalmente, a assinalar e comemorar um livro que dá à estampa e que era muito esperado. Em primeiro lugar, cumprimentos à Carmelita. Posso dizer que acompanhei, com alguma proximidade, todo o seu esforço para que este momento se tornasse realidade, dentro de um prazo justo em relação à realização da conferência que deu origem a esta obra. Cumprimento, portanto, as organizadoras do livro, Carmelita Silva e Celeste Fortes, e a todos do CIGEF e da editora da UNI-CV pelo trabalho todo que tiveram e pelo cuidado na edição.

Sob metodologias variadas, os autores tratam de temas que se referem às mulheres fora da esfera privada, as transformações no domínio da educação, do trabalho, da política e da vida pública. Os textos inscrevem as diferentes situações protagonizadas pelas mulheres e as reivindicações pela liberdade e emancipação num processo revolucionário de contestação não apenas da dominação masculina mas do patriarcado (o pai, o professor, o patrão…). Mas, também, no seu conjunto, deixam claro que, hoje, não se trata mais apenas desse processo mas do interesse das mulheres na sua autonomia e independência.

Apropriadamente, as organizadoras passam ao largo da moda e dispensam o termo género no título: trata-se de um livro sobre mulheres em Cabo Verde, em diferentes situações e contextos e inclui o importante texto de Teresa Cruz e Silva, de Moçambique, que se refere aos efeitos da reordenação capitalista dos últimos anos com a privatização dos serviços sociais públicos e o desenvolvimento de reformas educacionais que apontam para sistemas excludentes, com uma marginalização dos grupos sociais mais empobrecidos, e com uma presença marcante na desigualdade e na diferença de género na educação.

Sob diversos ângulos e de acordo com as suas escolas de origem, os autores não tratam da ideia de emancipação feminina e das práticas, abordam a reconfiguração das relações entre os sexos que acontece na actualidade (do ponto de vista feminino), na vida social e no trabalho. Também tratam das desigualdades e bloqueios culturais, institucionais, morais e materiais. Igualmente confirmam que, em Cabo Verde, as referências históricas não permitem indicar a existência de um movimento de mulheres nascido, espontaneamente, no seio da sociedade, e que se tenha mantido ao longo do tempo, de uma forma organizada e com ações sistemáticas. Ao contrário, confirmam que a perspectiva de liberdade e emancipação dominante foi introduzida como parte de um programa político-ideológico de emancipação e autonomia nacionais que, até hoje, a academia toma como marco histórico das transformações ocorridas nesse campo. Entretanto, o delicioso e deslizante texto de Iva Cabral e o importante trabalho de José Carlos dos Anjos foram ambos apropriadamente colocados no início da obra, porque recuperam eventos históricos e esclarecem-nos sobre as relações de género em períodos de vigência de outras ideologias e modos de relações sociais, distantes da actual “doxa igualitária”. Iva Cabral e Carlos dos Anjos reflectem sobre quotidianos, esclarecem sobre momentos importantes da vida social cabo-verdiana em que se evidencia a actuação e o protagonismo de mulheres. Estes textos fazem-nos lembrar a importância de entendermos as subtilezas das relações, os processos menos evidentes que conformam as relações de poder na sociedade, as formas pelas quais homens e mulheres se conformam (ou não) com o papel e a importância do outro género. Em conjunto com o artigo de Ângela Coutinho, lembram-nos que “tudo não começou” no pós-independência e que a própria “invisibilidade” das mulheres na luta de libertação nacional, conduzida pelo PAIGC, tema tratado por Ângela Coutinho, confirma que é preciso ter em conta os processos menos aparentes que governam as relações entre os sexos e devem ser tema das ciências sociais. Estes textos introduzem a necessidade trazida, aliás, por todo o livro de que é preciso dedicarmos à descrição, o mais exaustiva possível, das relações sociais entre os sexos e à análise de fenómenos históricos, sociais e culturais, à luz dos discursos e das representações da diferença entre os sexos.

Às ciências sociais cabe indicar, de forma fundamentada, os marcos sócio-históricos que definem as relações sociais e de género e as suas mudanças em Cabo Verde. Para além do processo engendrado no pós-independência, precisamos saber melhor a importância social de episódios como, por exemplo, a migração nos seus diferentes períodos ou, quem sabe, até à chegada do primeiro barco a motor a Cabo Verde, as secas e outros eventos históricos cuja importância social (no campo das relações entre os sexos) precisam ser melhor compreendidos. A migração, por exemplo, como mostra Terza Lima-Neves, que trata das mulheres cabo-verdianas no contexto da migração nos Estados Unidos da América ou Celeste Fortes no seu texto, é um factor central para as aquisições identitárias de mulheres. E, no caso de Celeste Fortes, coloca-se como factor essencial de autonomização das estudantes que se deslocam ao exterior. Este evento põe em evidência processos de individualização e de diferenciação em conflito com as expectativas dos grupos de referência, além dos ganhos identitários presentes num processo de mudança. Igualmente, o texto de Marzia Grassi, dedicado às vidas transnacionais das mulheres que realizam actividades da economia informal percorrendo o espaço diaspórico caboverdiano, mostra que estes percursos são a expressão actual de uma prática desde sempre exercida pelas mulheres e apoiada num contexto cultural familiarizado com esta forma independente e autónoma de trabalho feminino. Do mesmo modo, e ainda procurando ampliar os marcos da experiência actual das mulheres caboverdianas, devem debruçar-se sobre a contribuição que, mais recentemente, os pais trazem para o campo sociológico quando apostam na educação das filhas, e a forma como tal iniciativa se soma às políticas públicas que, a partir da independência, tornaram possível a inclusão maciça das mulheres no sistema educativo, no ensino superior no exterior (e mais recentemente, no próprio país). Quer isto dizer que é preciso considerar todos os rearranjos sociais e das famílias que foram necessários realizar para que a sociedade pudesse incorporar e ajeitar-se aos novos papéis. Chama-se, portanto, a atenção para o facto de as aquisições no campo da emancipação feminina não se limitarem às permissões construídas no campo político, mas devem-se às transformações e evoluções da sociedade e ao progresso científico. Este aspecto é-nos sugerido pelo texto de Maritza Rosabal que trata das reacções das parcerias institucionais e da sociedade civil à proposta apresentada pelo Instituto Caboverdiano da Igualdade e a Equidade de Género (ICIEG), durante o processo de revisão constitucional sobre a violência baseada no género. A autora aponta para as faces (in)visíveis desta violência, espelhadas nas reacções ao projecto e que mostram a importância de se reconhecer as representações dos agentes sociais a propósito das relações entre os sexos.

Tratando do processo de mudança como uma iniciativa social é que criamos as condições para ultrapassar a tendência das abordagens em apontar, por um lado, as diferenças entre homens e mulheres como produto da sociedade e da cultura mas, ao mesmo tempo, considerar que a sua solução se encontra, sobretudo, no campo político das políticas públicas. Faz parte do pensamento dominante não apenas ser aparência, símbolo ou imagem, uma ideia política ou metafísica, mas tornar-se real na intervenção, na produção do conhecimento social, do pensamento hegemónico. Neste sentido, questionando-se sobre a dominação masculina, é próprio da démarche ideológica pretender subordinar os factos àquilo que parece moralmente justo e, ainda, submeter os dados da ciência (aqui, da ciência que trata do social) e as práticas sociais ao “politicamente correcto”. Neste caso, antecipando-se (forçando, exercendo pressão) sobre os ajustes sociais, por exemplo, quanto às entradas do outro género no espaço de domínio tradicional masculino (como é o caso das organizações de trabalho ou das organizações políticas) ou de domínio feminino (o espaço doméstico).

A nova “doxa igualitária” que sustenta o nosso pensamento sobre estas questões também apoia a caracterização do país considerado avançado em termos das leis que protegem dos direitos da mulher, mas cabe às ciências sociais verificar se tais leis são feitas quando se detectam exigências na sociedade ou se se tratam, principalmente, de iniciativas impulsionadas pelas intenções demonstradas por organismos internacionais cuja actuação, certamente, se encontra fundamentada em princípios e ideologias sobre a sociedade, as relações de género e o desenvolvimento económico e social.

A nova “doxa igualitária”, que substituiu o reino do patriarcado, permitiu às mulheres cabo- verdianas somar outras capacidades sociais, políticas e económicas às que sempre exerceram. Ela transformou-se na jovem mensageira da mudança social. Mas, atenção, este modelo - educação, emprego, sexualidade assumida e reprodução controlada - é uma versão criada, actualizada, mercantilizada das sociedades neoliberais globalizadas que tiram o maior proveito desta nova “manne” feminina digna de investimento.

De lembrar, por exemplo, que a introdução de uma lei tão importante como a da VBG coincide, no tempo, com uma preocupação com o empowerment feminino, demonstrada pelos países ocidentais, de democracias consolidadas, em deter o avanço de práticas sociais e religiosas vistas como ameaçadoras para o modo de vida ocidental. Questões como estas não são negligenciáveis, é preciso situar os eventos sociais, clarificar os seus pressupostos e fundamentos e é isso que os investigadores devem à sociedade. Espera-se dos cientistas sociais que acompanhem, de forma sistematizada, os processos mais ou menos visíveis de adaptação dos grupos a propostas de mudanças que atingem, profundamente, o social e as relações sociais, verificando a medida certa em que a sensibilidade social aos temas foi levada em conta pelos decisores.

No plano das leis, os dispositivos são aplicáveis a todos e devem ser cumpridos por todos. Mas enquanto os agentes oficiais actuam em nome de fundamentos julgados indiscutíveis para todos, incluindo mesmo aqueles que os desrespeitam, as ciências sociais devem perseguir as interpretações, as percepções, as significações, a forma como as pessoas se ajeitam face a essas imposições, reinterpretando-as e assegurando uma aplicação que serve às suas necessidades, crenças e modo de viver.

Ou seja, os estudos não devem tomar como ponto de partida comum a toda a sociedade os princípios, leis e regras que foram consagradas até aqui, em Cabo Verde, como orientadores das relações de género mas, ao contrário, proporem-se a compreender como homens e mulheres interpretam essas orientações. Podem até as considerar excessivas, mas o cientista social não deve ter como princípio de pesquisa de que tais dispositivos são os correctos para todos; deve colocar em suspenso as suas próprias convicções e crenças sobre como devem ser as relações e a partilha do espaço público e privado e compreender, conseguir descrever, com segurança, como estes são na realidade.

Os textos que tratam da participação política da mulher em Cabo Verde, com o foco voltado para a sua presença nos órgãos de decisão do país, como é o caso do trabalho de Roselma Évora e de Suzano Costa, sustentam-se, como é óbvio, nos pressupostos sobre todas as vantagens da participação equilibrada de homens e mulheres nesse campo. No caso da participação política tratada pelos dois autores, apontamos que a política é o campo em que se procura a ressemblance, a semelhança, o que significa que não se trata de opor os termos de igualdade e de diferença, porque igualdade é um conceito político e diferença é um conceito ontológico. Ou seja, não se pode pensar que se anula a diferença porque, para aqueles que querem ser homens ou mulheres, não se poderá jamais anular a diferença sexual. O universalismo, a neutralidade aparente implicam o não reconhecimento das desigualdades. Os autores trazem-nos um tema que, nos últimos tempos, tem sido enobrecido como objecto de estudo, suscitando o interesse dos media e dos políticos, tendência esta que a academia tem seguido precisando, no entanto, de se comprometer em compreender de que modo a participação política da mulher se tornou no objecto de estudo “nobre” neste momento da vida social e política do país. Esta investigação contribuiria muito para a nossa compreensão de como os problemas sociais são constituídos como objectos de estudo ou, ainda, como as agendas nacionais e das organizações internacionais contribuem para constituir determinados temas em problemas sociais, antes mesmo da sociedade os indicar como tal e determinar os caminhos para a sua solução.

Os textos sobre a participação política, a participação feminina na agricultura em Cabo Verde (de Carmen Rodriguez Artilles) e as estratégias de reprodução social no mundo rural (de Carla Carvalho) remetem-nos à controvérsia colocada pela ideia de que as mulheres trazem as qualidades julgadas “femininas” para o mundo institucional, organizacional, empresarial, da administração pública e política porque são mundos de homens, que não foram pensados por mulheres nem feito por elas. Alguns estudos importantes sobre o incremento da presença feminina nas organizações de trabalho vêm mostrando que é mais fácil a masculinização das mulheres em profissões “masculinas” do que a feminização do espaço público. O masculino continua a ser associado à virilidade, enquanto o feminino é visto como mais ligado à sociabilidade e ao humanismo. Aqui encontra-se outro desafio às ciências sociais em Cabo Verde, porque aqueles estudos feitos em outras paragens alertam para o facto de que, nas sociedades de tradição patriarcal e que vivem as mudanças trazidas pela maior participação e emancipação femininas, as transformações continuam a ser experimentadas num mundo social que se mostra muito mais amplo para se aplicar significados masculinos do que femininos, ou seja, os significados femininos permanecem intactos na sua escassez e nos limites contextuais a que se aplicam. É sobre os efeitos e os esforços da entrada nestes mundos tradicionalmente masculinos que trata Celeste Fortes no seu texto, ao analisar as transformações vividas pelas estudantes cabo-verdianas quando se deslocam para prosseguir os estudos em Portugal.

mulheres no Tarrafal, foto de MLançamulheres no Tarrafal, foto de MLança

A expectativa de transformação do mundo social num mundo com mais significados femininos sustenta as nossas perspectivas e abordagens em Cabo Verde (como noutros lugares), mas é importante colocá-las em discussão com os estudos que mostram que quando há mudanças sociais que têm implicações nos modelos de pessoa, é mais provável que esses novos valores sejam incorporados mais no masculino do que no feminino. As hipóteses levantadas referem- se ao facto de o estereótipo masculino estar mais próximo do estereótipo mais universal do adulto do que o estereótipo feminino, ou seja, fazemos uma relação simbólica mais evidente entre a imagem do homem e a imagem do adulto, o que quer dizer que a imagem de adulto que temos é uma imagem de homem. Compreende-se, assim, que, também em Cabo Verde, a luta e a contestação tenham sido dirigidas muito mais para a conquista do espaço organizacional e institucional tradicional, para a comprovação de que a mulher pode fazer “trabalho de homem”, trabalho conceptual, que é o trabalho nobre, socialmente significativo e valorizado. Talvez aqui estejam indicações seguras sobre o valor que hoje atribuímos ao estudo das “entradas” e das “pressões contrárias às entradas das mulheres no espaço político, institucional e da administração pública em Cabo Verde, em comparação com outras dimensões menos estudadas.

A obra oferece-nos o panorama dos temas e situações que têm despertado interesse institucional e académico em Cabo Verde; finalmente temos um conjunto seguro que nos permite ter uma ideia de como o tema vem sendo tratado em relação ao arquipélago, mas o aspecto mais importante é que se trata de uma obra que nos abre para outras questões, para as novas pressões, as novidades e problemas que são constantemente colocados a mulheres e homens no campo das relações sociais.

Ao mesmo tempo em que é possível compreender, através desta obra, como é que as mulheres se tornam agentes da sua emancipação, confirma-se a necessidade de tratarmos do tema da reconfiguração das relações no espaço privado, nas relações amorosas e, em particular, a reconfiguração das relações sob o ponto de vista masculino. Quais as controvérsias que o processo de emancipação feminina engendra em Cabo Verde? Que transformações radicais foram operadas? Que efeitos concretos foram trazidos pela entrada maciça das mulheres na vida pública, apontada como uma das mudanças sociais mais marcantes da modernidade? Neste cenário, em que direcção é conduzida a construção de novas identidades masculinas? Tais são algumas das múltiplas questões que se colocam às ciências sociais a partir deste livro e que, devidamente tratadas, nos esclarecem sobre os paradoxos que surgem em todo este processo.

Um elemento que nos ajuda a compreender este paradoxo é-nos colocado pela ausência de estudos sobre o masculino que, a julgar pelo desenvolvimento dos estudos sobre o feminino e de que este livro é certamente um marco, deveriam estar a dar à estampa em paralelo.
Todos concordamos que a discussão sobre igualdade, direitos e emancipação femininos está definitivamente colocada no plano social. Mas, o que dizer das novas gerações de homens? O que sabemos sobre eles? Como vivem com o estigma de que os homens são os protagonistas da dominação e falta de liberdade imputada às mulheres ao longo do tempo? Ou seja, que efeitos, a longo prazo, essa definição do ser masculino em Cabo Verde, tanto tempo afirmada e repetida, teve nas novas gerações? A propósito ainda do foco centrado no masculino, um indício de um campo muito interessante de estudos, que nos é dado pelas novas gerações, é que têm mais facilidade em expressar as suas convicções sobre a igualdade de géneros, de reclamar da violência contra a mulher e exaltar as qualidades humanas da mulher.

É tempo da academia ampliar os seus temas ligados às questões de género e somar à sua dedicação aos estudos da mulher, a investigação sobre o masculino (e dos masculinismos). A começar por reflectir sobre o facto de a introdução das políticas de género desde sempre ter privilegiado as mulheres. De facto, estas sempre foram (são) dominadas, exploradas e as principais vítimas da violência, facto este que não esconde, porém, que se trata a mulher de um sujeito em relação e, por conseguinte, é necessário eleger as dinâmicas das relações como objecto de estudo, atribuir a saliência necessária aos modos como os homens também constroem os seus pontos de vista e interiorizam as mudanças trazidas pelo esbatimento das diferenças, pela supremacia da perspectiva da igualdade de género e da ideologia da mulher independente e emancipada. No ponto em que o trabalho científico se encontra, essa empreitada é difícil porque a academia ainda precisa de criar autonomia em relação à perspectiva político-ideológica que domina o debate sobre o género em Cabo Verde (…). Também é difícil porque há ainda muito a promover no que concerne à emancipação feminina, mas estamos num ponto (quase uma encruzilhada) em que, do meu ponto de vista, não é possível desenvolver uma perspectiva verdadeiramente útil à sociedade cabo-verdiana de hoje

se não for ultrapassada a hegemonia dos estudos do feminino e propormos a investigação do masculino na sociedade cabo-verdiana.

mulheres no Tarrafal, foto de MLançamulheres no Tarrafal, foto de MLança

Um outro elemento que nos ajuda a falar sobre os paradoxos refere-se às mudanças ocorridas no espaço privado, muitas vezes mencionadas mas pouco estudadas entre nós. A propósito de outras realidades, alguns autores referem-se à paridade não encontrada (“introuvable”), ao fcato de as mulheres estarem no espaço público e privado enquanto o homem está muito menos inserido no espaço privado. Ao contrário da explicação baseada em qualidades inerentes ao feminino, esses estudos sublinham que as mulheres participam muito mais que eles nos problemas que hoje são colocados à sociedade, facto este que, no nosso contexto, não nos parece resultar numa novidade introduzida pela modernidade ou pós-modernidade. Mas, entre nós, o espaço privado tem merecido menos atenção e luta; em termos de desenvolvimento de recursos para a entrada nesse espaço que permanece menos valorizado, a não ser para enaltecer as qualidades das mulheres que o exercem em conjunto com a sua jornada no mundo mais apetecível do espaço público. No entanto, como nos remete Maritza Rosabal no seu texto, são os mecanismos de poder e controlo, socialmente aceites e utilizados no espaço privado que condicionam os debates em áreas tão importantes como a da violência baseada no género. Enquanto construímos a percepção de que o nosso mundo mudou porque há mais mulheres com estudos superiores e em cargos públicos de poder, o fraco entendimento sobre os efeitos das mudanças no mundo privado condiciona a compreensão sobre as permanências, aquilo que não mudou no nosso mundo e que se reproduz, por exemplo, como diz Maritza, nas agressões ou na responsabilização excessiva da mulher pelo cuidado e bem-estar da família, entre outros.

No nosso entender, as ciências sociais devem interessar-se mais em produzir conhecimento sobre o espaço privado em Cabo Verde e de como este se abre (ou não) para as entradas dos homens no mundo doméstico e as saídas da mulher para o espaço público, pois, assim, será possível compreender melhor as formas subjectivas utilizadas por homens e mulheres e, de forma consentida pelo outro género, de corrigir a realidade de modo a que esta caiba nos moldes tradicionais. Isto inclui a ampliação da investigação sobre o espaço público à abordagem à esfera privada, às múltiplas negociações que homens e mulheres têm de realizar no seu quotidiano para dar conta da família, da economia e das relações domésticas. Ou seja, o que se passa no mundo das relações de género não se esgota nas disputas, na dominação, na desigualdade, na violência e na imposição e é preciso conhecer e reconhecer as dinâmicas das relações que permitem aos grupos construírem o seu destino colectivo. Cabe à academia reflectir sobre os efeitos de uma compreensão a cidadania excessivamente apoiada no princípio da divisão em termos homem/mulher e da elevação da mulher.

Ou seja, fazem muita falta entre nós os estudos daquilo que é menos evidente, mais subtil, da ordem do imaginário e das emoções entre homens e mulheres. De como os seres se ajeitam uns aos outros.

É preciso, pois, reconhecer melhor as expectativas sociais em relação ao desempenho de funções por parte das mulheres e dos homens para não repetirmos o jargão académico e político sem saber como as teorias caem no seio do senso comum e são por ele reinterpretadas. Caso contrário, mantendo-se a pouca atenção ao espaço privado, aos aspectos construtivos das relações, à forma como mulheres e homens se ajeitam entre si e aos aspectos subjectivos do relacionamento, deve-se questionar se existirá uma hierarquia de circunstâncias em que se aplicam as reivindicações modernas e feministas da igualdade; se há uma hierarquia de objectos de luta e se os próprios reivindicadores atribuem valores e qualidades diferentes aos espaços a ocupar, igualitariamente, por homens e mulheres, seguindo as posições tradicionais que apontam para uma maior valorização dos espaços desde sempre ocupados pelos homens.

Neste início de século (XXI), poder-se-ia pensar que os objectivos de igualdade dos combates feministas terão sido alcançados. No entanto, o que os textos nos apontam é que o ideal igualitário, que dava a entender que todas as diferenças homens-mulheres resultariam de práticas injustas e de discriminações, não se materializou verdadeiramente. E aqui está uma grande esfera ainda incompreendida que cabe às ciências sociais ajudar a sociedade a encontrar respostas.

Certamente que os estudos dedicados ao tema devem debruçar-se sobre as formas de equilíbrio encontradas, os mecanismos de regulação social, as deslocações dos eixos da diferenciação entre os sexos que, de acordo com a época, passam por “outros lugares” tais como os eixos da diferenciação social e de poder que também mudam ao longo do tempo. Grande parte da discussão sobre a mulher cabo-verdiana, embora ainda muito centrada na desigualdade, na resistência do patriarcado em aceitar as mudanças, na permanência de uma concepção sexista da mulher, parece-me que não fica indiferente às tendências das correntes pós-género que advogam uma desconstrução total da diferença dos sexos e dos géneros. Também os cientistas sociais estarão cientes das propostas pós-feministas que defendem a

tradução das evoluções da sociedade, os papéis masculinos e femininos menos marcados, o reconhecimento e valorização das orientações sexuais não “ortodoxas”. O pós-feminismo que não adopta o radicalismo das filosofias pós-feministas vai ao ponto de dizer que a diferença masculino/feminino é apenas o produto de uma linguagem “performativa” que cria rapazes e raparigas unicamente pela força das palavras.

O livro fornece-nos o cenário actual dos estudos em Cabo Verde, sustentados no pressuposto da ideia da mulher-sujeito que deve construir-se e assumir as suas formas de “estar no mundo” com os seus próprios argumentos e no interior das pressões impostas pela sociedade. Toda a dificuldade reside na escolha das armas a utilizar para o seu reconhecimento, sejam mulheres ou homens.

No aprofundamento do tema é que a diferença entre os sexos será relegada a segundo plano, buscando-se a pesquisa da identidade mais profunda que conduz, no final, ao intercâmbio de papéis, como sugere Badinter (1986).

 

Apresentação na Praia, a 30 de Março de 2012. originalmente aqui. “Mulheres em Cabo Verde. Experiências e perspectivas”, organizado por Carmelita Silva e Celeste Fortes, CIGEF, UNI-CV 

por Iolanda Évora
Corpo | 29 Janeiro 2019 | Cabo Verde, feminismo, género, igualdade, mulheres