Mobilidades contemporâneas no contexto pós-colonial: Mbembe, Glissant e Mattelart
Introdução
O pós-colonialismo, a crise das metanarrativas, a impossibilidade de abafar as demandas surgidas no pós-guerra com os novos movimentos sociais, e a vulnerabilidade a que estamos sujeitos, de ter nossas vidas tiradas, trazem impactos notáveis para os que transitam, como imigrantes e refugiados, suscitando novas e necessárias leituras e apropriações dos direitos humanos e sua relação com a alteridade. Tomamos por referência neste texto o processo, a organização e as condições das mobilidades humanas atuais e as relações de convívio com o outro. Busca-se observar a questão a partir de um paradigma interessado nos possíveis efeitos positivos, a curto e longo prazo, de uma mudança na narrativa sobre a mobilidade internacional de pessoas, com um novo entendimento da cultura e diversidade.
Já há muito se discute a necessidade de recusar certo universalismo abstrato dos direitos humanos e a importância de diálogos assentes na ideia de incompletude de todas as culturas, que contemplem a diversidade cultural, social e epistemológica do mundo (Sousa Santos, 2006). Uma das questões que tensiona os campo dos direitos humanos é justamente a restrição contemporânea do direito ao universalismo, a pertencer ao mundo, a viajar por ele e deixar a sua marca como humano. Para contornar algumas linhas de força e potências deste debate, passaremos por algumas leituras da contemporaneidade que explicitam a questão do outro e o caráter universal dos direitos, como as do filósofo camaronês Achille Mbembe, do sociólogo belga Armand Mattelart e do escritor e poeta martinicano Édouard Glissant.
Partimos das políticas de inimizade que marcam as democracias ocidentais, do racismo e da necropolítica, para posteriormente indagar uma ética do passante, uma convivência utópica, uma relação mundo com as diversidades e a subsequente construção de uma nova narrativa de hospitalidade. Ao mobilizar esses três autores, e em diálogo com outros, pretende-se contribuir para aprofundar o debate público sobre o lugar do outro e sobre o tratamento corrente de afastamento e extermínio daquilo que é construído como diferente. Do mesmo modo, busca-se elucidar novas possibilidades de leitura para o fenômeno das mobilidades contemporâneas, ao tratar dos deslocamentos como modo de vida, da legítima reivindicação de uma multipertença, de identidades híbridas e da conformação de espaços de acolhimento permanentes – em contraposição aos movimentos de ruptura tão comumente descritos na literatura contemporânea.
Mbembe, a necessidade do inimigo e a mobilização do racismo
Em sua obra mais recente, Políticas da inimizade (2017), Achille Mbembe versa sobre temas fundamentais para compreender o tempo presente. Algumas dessas discussões incidem diretamente na maneira como são percebidas as populações em movimento, na construção de suas representações e na persistência de lógicas discriminatórias que pedem por novas formas de ver e agir.
Mbembe trata da busca por um inimigo como traço fortemente presente nas democracias ocidentais, mostrando como em nosso tempo a necessidade de um inimigo é construída e reforçada de modo que o desejo de separação passe a ocupar lugar central no debate público. Assim, agudizam-se as lutas e mobilizações que alimentam lógicas de suspeição, da visão do outro como ameaça que deve ser exterminada.
A associação entre os que chegam de fora e a iminência de perigo não é nova: a ideia do estrangeiro como boca a mais e roubador de empregos, de cujas manias e doenças ameaçam diretamente a integridade do corpo nacional está, com diferentes modulações e matizes, presente em toda a história do mundo ocidental (Mbembe, 2017)1. Em História do medo no Ocidente (1978), Jean Delumeau descreve como os relatos de viagem constituíam, ainda na Idade Média, uma atração extraordinária, ao mesmo tempo que se observava uma atitude muito restritiva com os considerados estrangeiros. O casamento de uma jovem com alguém de fora podia causar cólera nas aldeias, os habitantes locais se silenciavam diante das autoridades se um dos seus maltratasse um forasteiro, havia rixas entre camponeses de localidades vizinhas e a responsabilidade das epidemias era, muitas vezes, atribuída aos judeus.
No entanto, na contemporaneidade, segundo Mbembe, esse comportamento apresenta algumas especificidades: o possível e falado inimigo é posto como um perigo difuso, sem rosto, sem nome e sem lugar, podendo ser uma religião, uma ideia, uma civilização. Em diálogo com Bauman (2005), o filósofo camaronês destaca a construção e reprodução alargada do sentimento de terror e medo diante de algo desconhecido, que ameaçaria nosso modo de vida: “hoje, a menina com véu; amanhã, o aprendiz terrorista que regressa dos campos de batalha do Médio Oriente e, geralmente, lobos solitários ou células latentes escondidas nos interstícios da sociedade sujeita à sua espionagem, à espera do melhor momento para passar à ação” (Mbembe, 2017, p. 85). Assim, “o ódio ao inimigo, a necessidade de neutralizá-lo, bem como o desejo de evitar o perigo de contágio do qual ele seria o vector, são as últimas palavras da política no espírito contemporâneo” (Mbembe, 2017, p. 84).
Estes inimigos, que surgem geralmente sob caricaturas, clichês e estereótipos, são representados como não semelhantes com os quais nenhum acordo é possível ou desejável, o que é traço de um tempo de indisposição para a partilha. A proposta da igualdade universal, diz Mbembe, foi gradual e violentamente substituída por um “mundo sem”: sem muçulmanos, negros, terroristas e estrangeiros, que devem ser deportados, torturados “pessoalmente ou por procuração”. O discurso é o da suspensão ou restrição das constituições, da lei, dos direitos, das liberdades públicas, das nacionalidades, enfim, de todas as proteções e garantias até hoje consideradas como adquiridas. Para o autor, tal processo seria uma espécie de saída da democracia que “suspende as normas em nome de proteger as próprias normas”, que, portanto, não seriam para todos.
À incessante busca por um inimigo soma-se a mobilização contemporânea do racismo, descrita sensível e incisivamente por Mbembe como um dado fundamental de nosso tempo, central na vida das populações em movimento, passando pelas histórias de negação de imigrantes, de nacionais que continuam sendo vistos e chamados de imigrantes, de fronteiras que devem ser restauradas, de intrusos, de inimigos, de segurança nacional e de tradições, infinitas histórias que se reciclam. Como já observado, existe uma relação direta entre o recrudescimento do racismo e a maneira como as populações estrangeiras não brancas são representadas (Santamaría Lorenzo, 2002). Essas populações correm constantemente o risco de serem atingidas por alguém, por uma instituição, por uma voz, por uma autoridade pública ou privada que lhes pede para justificar quem são, por que razão estão ali, de onde vêm, para onde vão, por que não voltam para casa.
Recorrendo à “farmácia de Fanon”, Mbembe lembra que o psiquiatra e filósofo da Martinica, que tanto contribuiu para os debates sobre descolonização a partir de seu trabalho em África, observava dois tipos de racismo nas sociedades coloniais. De um lado, o que chamava de racismo vulgar, primitivo e simplista (quando se mediam os crânios, quando se tentava contar as pregas do cérebro, quando se tentava compreender a lógica da instabilidade emocional do negro, a integração subcortical do árabe, a dimensão das vértebras do judeu), uma modalidade de racismo que “se queria racional e até científica”, logo desconstruída. De outro, uma forma de racismo claramente cultural, que atacava formas particulares de vida que o colonialismo se esforçava então para liquidar, uma tecnologia central de separação, de escolher quem viveria ou quem morreria.
A lógica persiste com novos contornos. Olhando o fenômeno hodiernamente, Mbembe fala do “nanorracismo”, que complementaria o que chama de “racismo hidráulico”, dos micro e macro dispositivos jurídico burocráticos e institucionais da máquina estatal que fabrica “clandestinos” e “ilegais”, colocando-os em acampamentos nas periferias das cidades, multiplicando os sem-papéis e acumulando centros de retenção. O nanorracismo seria uma forma de preconceito em relação à cor expressa em gestos do dia a dia aparentemente inconscientes, em brincadeiras, insinuações, lapsos, anedotas e subentendidos que expressam um desejo obscuro de estigmatizar, violentar, ferir, humilhar e contaminar “o que não é dos nossos”.
A época do nanorracismo consiste em “colocar em condições insustentáveis um número cada vez maior dessas pessoas tidas por indesejáveis, cercá-las no quotidiano, infligir-lhes repetidamente incalculáveis golpes e feridas racistas, despojá-las de todos os direitos adquiridos, […] de modo a que apenas lhes reste a autodeportação” (Mbembe, 2017, p. 96). Dialogando com Bauman (2005) em suas reflexões sobre as “populações supérfluas”, Mbembe aborda o poder de fabricar toda uma massa de gente habituada a viver no fio da navalha ou, ainda, à margem da vida – gente para quem viver é estar sempre a prestar contas à morte.
Finalmente, Mbembe dialoga também com as discussões sobre a biopolítica, o poder de que falava Foucault de ditar quem pode ou não viver. O autor cunha o conceito de “necropolítica”: “trata-se de uma morte à qual ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento de responsabilidade ou de justiça no que respeita a esta espécie de vida ou a esta espécie de morte” (Mbembe, 2017, p. 65). E um motor central dessa política, tal como da biopolítica, está no racismo.
Habitar o mundo, habitar a fronteira e a ética do passante
Neste trabalho, interessa-nos particularmente a reflexão de Mbembe a propósito da busca de uma “ética do passante”, em diálogo com a ideia de habitar o mundo, proposta pelo escritor senegalês Felwine Sarr, e de habitar a fronteira, da escritora camaronesa Léonora Miano. Mbembe, falando de nossa condição de passantes, de nossa situação comum de vulnerabilidade no mundo, propõe um pensamento de passagem, de travessia e de circulação, relacionado ao trajeto, à circulação e à transfiguração de forma que habitar não é pertencer. Assim, o filósofo recusa as classificações que imobilizam, elogiando uma ética que considere a tradução, os mal-entendidos e conflitos, recuperando o corpo, o rosto, a palavra.
O que de fato significa ter nascido em algum lugar? Como esse acidente assinalará de maneira tão irrevogável quem somos, como somos conhecidos e por quem nos tomam? Para o filósofo, não pertencer propriamente a nenhum lugar é próprio do ser humano, uma vez que, por sua condição de ser composto por outros seres vivos e outras espécies, pertence a todos os lugares em conjunto. Portanto, aprender a passar constantemente de um lugar para outro deveria ser o seu projeto, visto que esse é, de todo modo, seu destino. “Mas passar de um lugar para outro é também tecer com cada um deles uma dupla relação de solidariedade e de desprendimento. A essa experiência de presença e de diferença, de solidariedade e de desprendimento, mas nunca de indiferença, chamemos a ética do passante” (Mbembe, 2017, p. 248). Para Mbembe (2017, p. 245),
“Atravessar o mundo, dar conta do grau do acidente que representa o nosso lugar de nascimento e o seu peso de arbitrário e de constrangimento, agarrar o irreversível fluxo que é o tempo da vida e da existência, aprender a assumir o nosso estatuto de passagem, uma vez que é provavelmente, em última instância, a condição da nossa humanidade, a base da qual criamos a cultura – são, talvez, afinal, as questões mais difíceis do nosso tempo, que herdamos de Fanon na sua farmácia, a farmácia do passante.”
É assim que Mbembe convoca a figura de alguém que parte, que deixa seu país, que vive em lugares onde cria casa e liga seu destino ao daqueles que o acolheram e reconheceram, no seu rosto e sua singularidade, uma humanidade. Nesse processo, que implica tradução, mas também conflito e malentendidos, algumas questões vão dissolver-se por si, na busca do que nos é comum, de nossa condição comum.
Então uma nova linguagem faz-se necessária, uma linguagem afiada, que tenha como fim atormentar a realidade não apenas para soltar seus cadeados, mas sobretudo para salvar vidas. Essa nova linguagem passa pelo corpo, o rosto e a voz: “Restaurado à vida e, assim, diferente do corpo rebaixado da vida colonizada, este novo corpo será convidado a pertencer a uma nova comunidade. Desenvolvendo-se de acordo com o seu próprio plano, caminha agora com outros órgãos, podendo assim recriar o mundo” (Mbembe, 2017, p. 250).
Nesse mesmo sentido, no ensaio Habiter le monde, Felwine Sarr (2017) exalta a fundação de uma política universal da relação, uma utopia ativa que opera a partir de uma realidade dominada pela inimizade e abre o mundo à alteridade. Habitar o mundo, diz Sarr, é partir de um certo lugar, um lugar matriz (uma matriz de lugar) que aprendemos a desprender para articulá-lo a outros lugares, aprendendo a se dessituar para habitar um espaço mais vasto. Em diálogo com essa proposição, Léonora Miano (2012), em Habiter la frontière, trata das “identidades de fronteira”, ancoradas num espaço de acolhimento permanente, e não de ruptura, como a literatura contemporânea commumente ressalta. É a fronteira definida como o lugar onde os mundos inevitavelmente se tocam; o lugar da oscilação constante: de um espaço ao outro, de uma sensibilidade à outra, de uma visão de mundo à outra. É onde as línguas se misturam – não necessariamente de forma florescente, mas impregnando-se naturalmente umas nas outras, para produzir, numa página em branco, a representação de um universo composto, híbrido. A fronteira evoca a relação e faz nascer um novo o significado.
De acordo com Miano, apesar de poderem indicar violência, ódio e desprezo, as fronteiras também anunciam que os povos se encontraram e que “as plantas não se reduzem às suas raízes e estas podem ser replantadas e florescer num novo solo. Uma planta também pode cruzar as suas raízes com as de uma outra e engendrar um novo ser vivo. O mundo ao qual pertencemos é, em primeiro lugar, aquele que trazemos em nós” (Miano, 2012, p. 25).
A construção de Miano, assim como a de Mbembe e Sarr, é feita a partir da observação do continente africano e da circulação de seus descendentes pelo mundo. Por um lado, a África, terra poderosa, extrema, rompeu a bolha criada pelo colonialismo, permanecendo nos costumes ancestrais conservados nas famílias, no odor da terra, nos movimentos das pessoas e das coisas, na alimentação, na pele, na língua que os adultos continuaram a falar e em outros traços. Ao mesmo tempo, a África, tal como a conhecemos hoje, é uma construção europeia. Os europeus a batizaram, desenharam e criaram fracturas no coração de conjuntos homogêneos, impondo a sua língua através de políticas de assimilação. Se é fato que nem todas as tradições desapareceram, não se pode negar que os nossos povos necessitam atualmente de se recriar e reinventar. É um desafio que deve ser levado em conta e aceitado, mesmo que seja doloroso e que, de certa forma, signifique habitar as identidades de fronteira construídas historicamente. O hibridismo é, portanto, uma condição do estrangeiro, do africano que se desloca no mundo.
As identidades de fronteira nascem da dor, do roubo, do estupro, da auto-aversão. Elas tiveram de atravessar estas sombras para inventar uma ancoragem sobre as areias movediças e se impor não contra, mas entre os outros. No fundo, elas habitam um espaço de cicatriz. A cicatriz não é a ferida, é a nova “linha” de vida que se criou. Ela é o campo dos possíveis os mais insuspeitos (Miano, 2012, p. 30). É o motivo da sombra e da luz, onde uma sempre engendra a outra, onde não se coloca a hipótese de escolha, mas de assumir: a sua parte da sombra e a sua parte da luz. Este movimento, esta dualidade, representa para a autora o fundamento da natureza humana. O humano é, antes de tudo, esta criatura de contraste que habita um lugar onde a sombra e a luz se tocam.
O outro, a utopia e a relação do mundo
Mbembe alerta ao seu leitor que a crítica que propõe ao nosso tempo “somente será frutuosa se proporcionar uma leitura regressiva do nosso presente” (Mbembe, 2017, p. 21), e que qualquer verdadeira desconstrução para fechar e demarcar fronteiras entre “aqui e acolá, o próximo e o distante, o interior e o exterior” deve fazer a crítica a todas as formas de universalismo abstrato, tal como já havia dito Boaventura de Sousa Santos (2006). Mbembe pretende analisar o que hoje se faz passar por “pensamento global”, alertando que só é global o pensamento que, “na recusa da segregação teórica, se baseia de facto nos arquivos de ‘Todo o Mundo’” (Mbembe, 2017, p. 22), evocando a expressão do pensador Édouard Glissant (2001).
É interessante notar como o pensador camaronês utiliza os conceitos de Glissant em dois momentos chave da sua argumentação: na explicação de pressupostos de análise e na conclusão, quando lembra que “o século XXI abre com uma confissão, a da extrema fragilidade de todos. E do Tudo. Começando com a ideia do ‘ToutMonde’, que Glissant recentemente poetizou” (Mbembe, 2017, p. 243). Em outra passagem, indaga: “poder permanecer e poder mover-se livremente não serão condições sine qua non da partilha do mundo ou, ainda, do que Édouard Glissant chamou ‘relação global’? O que poderá identificar os seres humanos, em termos de reconhecimento, para além do acidente do nascimento, da nacionalidade e da cidadania?” (Mbembe 2017, p. 248).
Para nosso propósito de revelar a abrangência e a potência dos direitos humanos como avessas à concepção de “políticas da inimizade”, convém explorar, mesmo que de forma introdutória, alguns pressupostos do pensamento de Glissant, retomado também pelo sociólogo belga Armand Mattelart (2002) para pensar a possibilidade de vivermos juntos, sem inimizade.
Pensamento em arquipélago
Militante e precursor do que hoje se convencionou chamar de “pós-colonialismo”, “estudos culturais” ou, mais recentemente, “interculturalidade”, Glissant tem uma trajetória política tão vasta quanto suas publicações como poeta. Desde o seu apoio à causa dos argelinos2 na década de 1960 até à sua importante atuação na Unesco na década de 1980, toda a sua carreira esteve associada à militância da “causa cultural” e da educação dos povos colonizados. Entre 1981 e 1988, como diretor do periódico El Correo da Unesco, investigou as “culturas mestiças”, sendo responsável por inúmeras publicações e textos sobre sua importância e vínculo com conteúdos educacionais. A sua atuação política pode ser comparada à de outro martinicano negro, também caro a Mbembe, o psiquiatra Franz Fanon, que lutou na Frente de Libertação Nacional argelina e foi responsável, depois de Aimé Cesaire, por denunciar a violência dos processos colonizadores, seja no racismo ou na linguagem.
Para Fanon (2005, p. 41), a questão colonial é dialética, ou melhor, seu problema é a falta de dialética, pois o negro deveria ser reconhecido como Ser e partilhar da relação Eu Outro. Em 1961, a publicação póstuma de seu livro, Os Condenados da Terra, evidenciou a conclamação de um “terceiro mundo revolucionário”, onde aqueles que foram até agora subalternos, colonizados, deveriam mudar a história criando o “homem novo”. Fanon (2005, p. 64) explica como tal homem deve fazer parte de uma consciência nacional (não de um nacionalismo), com todos os membros e intelectuais da nação engajados na valorização da cultura local. Negando os abstracionismos europeus relacionados ao Homem (como o individualismo) e a forma europeia de governar, o autor alerta que, no maniqueísmo próprio ao mundo colonial, o colonizador sempre verá nos indígenas, negros e muçulmanos a “fonte de todo mal”; e os colonizados concordariam com tal visão ao tentar imitar a Europa e seus valores. Fanon investiga diferentes formas de superar essa situação, o uso da violência como único meio de liberdade dos povos colonizados, a importância da cultura nacional e os distúrbios mentais oriundos da colonização. Embora suas ideias já fossem conhecidas, foi o prefácio elogioso do filósofo Jean Paul Sartre que tornou Os condenados da terra mundialmente famoso. No texto, Sartre (apud Fanon 2005, p. 6) afirma que o “Terceiro Mundo se descobre e se fala pela voz de Fanon”, indicado pelo existencialista como “o representante dos combatentes”, sejam eles negros, oprimidos ou colonizados.
Partilhando da mesma luta anticolonial de Fanon, porém sem a valorização explícita da violência como arma efetiva para a emancipação, Édouard Glissant iniciou sua carreira defendendo a “negritude” e a ideia da ancestralidade negra, mas gradativamente substituiu a concepção de identidade pelo conceito de rizoma. Sua obra preanuncia, define e defende concepções acerca da voz dos subalternos, considerados outros no debate sobre universalismo e particularismos culturais que para nós é o principal foco da tensão dos direitos humanos. Segundo Enilce Rocha (2005, p. 9), a escrita de Glissant é representativa da voz do intelectual:
“Para Glissant, os povos que irrompem na contemporaneidade necessitam construir sua modernidade à força, e cabe às artes em geral, e à literatura em particular, a função essencial na propulsão do imaginário utópico de suas coletividades; do contrário estas correm o risco de não se nomear, de calar sua voz, sua identidade e seu projeto coletivo. Assim sendo, sua escrita – de grande densidade poética – está conscientemente ancorada na espessura antropológica e na singularidade histórica do lugar de onde o intelectual, o poeta, o escritor e o artista emitem a sua voz, o seu canto.”
A partir do conceito de “terremoto” – contrário à fixidez, às doutrinas e aos sistemas de pensamento –, o poeta analisa o turbilhão de encontros, temporalidades e processos das mestiçagens. Glissant (1996) intitula o conjunto não sistêmico de suas ideias de um “pensamento arquipélago”, e valendo-se de metáforas que envolvem a cidade e a cultura para designar as particularidades do Diverso, tal como a terra e o mar, enfatiza a Relação para designar a confluência das culturas, povos e minorias.
Glissant usa a imagem do rizoma (múltiplas raízes de uma planta) para descrever uma identidade plural, que se opõe à identidade fixa, de raiz única. Em contraste com o modelo de culturas atávicas, a figura do rizoma reflete a capacidade de desenvolver identidades de culturas mistas, pois a rede de insumos externos que o rizoma demanda torna inviável a raiz cultural ou identidade única.
Ao formular a “categorização das culturas” entre “atávicas” e “compósitas”, Glissant, como os pensadores Deleuze e Guattari, contesta o pensamento Uno utilizando analogias geográficas/geológicas: “terremoto”, “arquipélago” e o próprio “rizoma”. Empregando metáforas sobre a terra, a fixidez e a ancestralidade na figura da árvore símbolo, esses autores discorrem acerca da multiplicidade do pensamento e questionam a essência identitária. Em Glissant e em Deleuze e Guattari, o perspectivismo da diferença é convocado no combate epistêmico às luzes de Platão e à fenomenologia hegeliana.
Segundo Deleuze (1991), não há momento mais privilegiado que o barroco para entender a fuga, a curva ou a dobra das linhas, capazes de confundir o olhar daquele que observa. E não por acaso, Armand Mattelart (2002) encerra seu livro com o epílogo “Um sistema barroco”, fazendo referência a Édouard Glissant, poeta do arquipélago francês no Novo Mundo (a Martinica), tomando sua obra como princípio do “viver junto em escala planetária”.
Em História da utopia planetária: da cidade profética à sociedade global, Armand Mattelart, bastante engajado nas lutas por justiça na América Latina – particularmente no I Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2001 no Brasil –, analisa desde o espaço das cidades nas lutas dos povos e grupos por melhorias até o “espaço virtual”, negador dos territórios previamente demarcados. O livro divide-se em duas partes: “Cosmópolis” e “Tecnópolis”, com um epílogo cujo título é bastante sugestivo: “Um sistema barroco”. Mattelart (2002, p. 418) considera a concepção de etnocentrismo e suas crenças no progresso linear do desenvolvimento as culpadas pelo adiamento de uma questão inevitável no século XXI: a pluralidade de culturas, que retoma conflitos antigos, porém impossibilita qualquer ideia que leve ao congelamento binário. Para negar o que chama “utopia neoliberal” e “escatologia do progresso”, centradas “na visão abstrata e compacta do sistema econômico”, o autor remete ao “sentido da história” e à noção de sistema barroco de Maurice Merleau Ponty, que não pretendia unificar as “misturas que compõem um conjunto concreto” nem as “excrescências”.
Nessa obra, Mattelart (2002, p. 417) retoma o poema que já havia utilizado como epígrafe – “Plano mar”, de Victor Hugo – para debater a antítese entre a diversidade e a unidade, tão cara aos direitos humanos, ou “o espectro de Babel”, aplicando “à civilização a fórmula de Pascal, ‘o centro em todas as partes, a circunferência em nenhuma parte’”, antecipando o debate “sobre a unidade complexa do mundo na diversidade, única forma de união capaz de ser atingida na dissociação dos ‘gêneros humanos’”.
Mattelart (2002, pp. 419-420) destaca também a importância de Édouard Glissant, que se expressa a partir do “caldeirão cultural da mestiçagem” (situado na América colonial), sendo por isso capaz de “lutar contra a corrupção dos termos que nomeiam o ‘viver junto’ em escala planetária”. Na visão utópica defendida pelo sociólogo belga, o poeta latino-americano conseguiria ultrapassar o “imaginário da noção de identidade raiz única, avatar da ideologia da ocidentalização, na direção da identidade rizoma, relação aberta sobre o mundo” (Mattelart, 2002, p. 420).
A ideia do autor para viabilizar sua declarada utopia é a “creolização do mundo contemporâneo”, ou “TodoMundo”, que parte da vontade nascida no arquipélago caribenho, ou melhor, na América mestiça. No texto “O mesmo e o diverso”, Édouard Glissant (1996) inicia sua argumentação a partir do mais veemente tema da filosofia pós-metafísica: a relação entre o Uno e o Diverso, que cerca as concepções de humanismo e da nacionalidade. Daí também que Mbembe (2017) se apegue a essa ideia para pensar a relação entre o mesmo e o outro em Políticas da inimizade.
Ao eleger como primordial a tarefa de pensar o Diverso – esse elemento formativo e desestabilizador dos universais antropológicos –, Glissant troca as formas transcendentais pela transversalidade, visando relacioná-las sem as hierarquias que atribuem qualidades pejorativas ao pensamento caótico, geralmente associado ao irracionalismo: o Diverso, que não é o caótico nem o estéril, significa o esforço do espírito humano em direção a uma relação transversal, sem transcendência universalista. O Diverso necessita da presença dos povos, não mais como objeto a sublimar, mas como projeto a pôr em relação. O Mesmo requer o Ser, o Diverso estabelece a Relação.
A complexidade do pensamento de Glissant3 faz emergir a Relação e o TodoMundo como seus mais importantes conceitos. Preferindo-os à universalidade, o autor os reivindica como condição finita dos particulares, que não se perdem na relação com o Uno. Ele próprio sutilmente misturado, o conceito de TodoMundo4 – presente nos romances e ensaios de Glissard – é forjado para compreender a copresença entre pessoas e coisas, que o autor chama “estado de globalidade”, em que culturas e imaginações se penetram e fazem se relacionar o Uno e o Diverso, conceitos irmanados em sua obra, figurados como gêmeos assimétricos e afastados.
É a partir dessa ideia de Relação – e de seus estreitos vínculos com os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari – que o poeta martinicano estabelece seus conceitos de “creolização”, “digenese”, “errância”, “história”, “ilha”, “mundialidade”, “relação”, “rizoma”, “terremoto”, “todo mundo”, “traço”, “turbilhão” e “utopia”, reunidos sob a alcunha de “ideias em arquipélago”, que negam a noção de Universal, como já preanunciara a filosofia de Nietzsche, em sua abominação pelo “sentido histórico uno” do “espírito europeu”.
No capítulo “Pela opacidade”, do seu livro Poética da relação, Glissant (2008, p. 53) considera precioso o direito à diferença, não para tolerá-la, mas para fazê-la se relacionar ao Uno, compósito e também ambíguo. Nessa relação, caberia
ao outro, tentação máxima da pretensão ao universal, introduzir o Diverso nas culturas modernas, em suas errâncias e reivindicação estrutural de uma igualdade sem reservas.
Mais abrangente do que a miscigenação ou o sincretismo sintético, a “creolização do mundo” aventada por Glissant (1996) é concebida como processo de formação das sociedades crioulas. Imprevisíveis, tais sociedades nasceriam do desenvolvimento de novas entidades culturais oriundas de variadas estradas, sem a diluição de suas origens.
Considerações finais: mundo comum e uma narrativa de hospitalidade
Pensando no caso das mobilidades, recuperamos também a bem-vinda luta por uma narrativa da hospitalidade a ser partilhada em um mundo comum. Uma narrativa que frustre a ideologia securitária dominante, que ignora todas as práticas de hospitalidade que constroem uma outra compreensão do nosso mundo. Segundo o filósofo Guillaume Le Blanc (2018), a prática da hospitalidade tem como desafio participar na disputa de poder e ultrapassar o discurso da utopia. Assim, Le Blanc propõe restituir a inteligência (eficiência) da hospitalidade na nossa sociedade, tornando-a uma palavra de ordem política.
O itinerário da hospitalidade passa não só por receber e acolher, mas também por partilhar. O receber, dar alívio (e segurança) diz respeito a um imperativo humanitário, moral, religioso e ético. Quando alguém tem necessidade, vem-se ajudá-lo, qualquer que seja a pessoa: este é o ponto de partida, e está presente. No entanto, a passagem do alívio ao acolhimento está completamente quebrada. Sabemos como ajudar, não sabemos acolher. Porque acolher supõe um longo tempo, um espaço durável, um dispositivo em que se leva tempo para sustentar uma existência, para ver com ela aonde ela quer ir. Este desenvolvimento sustentável da política humana não está na agenda. A política da hospitalidade aparece então como uma resposta potente à política da inimizade.
Assim como Mbembe (2017), Mattelart evoca Glissant e sua ideia poética de TodoMundo (Tout-Monde) para pensar numa condição que ultrapasse as essências identitárias que nos afastam e constroem muros entre nós. Nela não há fantasia, longe disso, já que por si só opera a síntese de toda a inflexão desse autor, que se concentra em pensar a interpenetração de culturas e imaginários. Deste modo, o TodoMundo designa a nova copresença de seres e coisas, o estado de globalidade em que reina a Relação. Seja na ética do passante, que visa evitar a necropolítica e a política da inimizade, seja na relação global aventada por Mattelart, o pensamento de Glissant pode nos ajudar a pensar os direitos humanos como plataforma de luta em que a dignidade humana não seja relativizada.
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Ensaio publicado originalmente na revista Lua Nova, São Paulo, 108: 137-156, 2019
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- 1. Discutindo a repercussão da crise do ebola de 2014 sobre a mobilidade humana, Ventura (2016) também afirma que a associação entre o estrangeiro e a doença acompanha a história das epidemias e faz parte da construção das identidades nacionais no Ocidente. A autora lembra, por exemplo, como a epidemia de HIV que irrompeu nos anos 1980 atingia prioritariamente as populações mais estigmatizadas – incluindo os estrangeiros. Nos Estados Unidos, os haitianos eram acusados como responsáveis pela origem e pela extensão da epidemia.
- 2. Glissant é um dos signatários do Manifesto de 1960, que aludia ao direito de insubordinação dos colonizados argelinos então em guerra contra a França.
- 3. No site oficial “Édouard Glissant, une pensée archipélique”, há variados mate riais sobre o autor, como fotos, vídeos, manuscritos, poemas, romances, ensaios, roteiros de teatro, pronunciamentos e um interessante glossário, que se forma em relação, por meio de setas. Nele encontra-se a articulação dos seus principais con ceitos: “créolisation”, “digenèse”, “errance”, “histoire”, “isila, isidan”, “mondialité”, “relation”, “rhizome”, “tourbillon”, “ToutMonde”, “trace”, “tremblement” e “utopie”. A maioria das informações citadas sobre Glissant no presente capítulo baseouse em informações ali contidas. Cf. http://www.edouardglissant.fr. Acesso em: 18 fev. 2019.
- 4. Todo-Mundo é o título de um romance de Glissant lançado em 1993 e que logo se converteu em um dos conceitos fundadores do pensamento universalista do autor. Em Paris, foi criado o Instituto TodoMundo, contando com o apoio do Conselho Regional da Ilha da França e do Ministério Ultramarino Francês. Cf. www.tout monde.com. Acesso em: 18 fev. 2019.