Depois do fim do trabalho: em direção a uma humanidade supérflua?
Transição
É talvez a indefinição deste conceito que constitui a sua força.
Chamar “transição”, concebida como uma “mudança de fundo”, significa efectivamente colocar finalmente o verdadeiro problema de hoje: apelar a uma “transição”, concebida como uma “mudança de fundo”, significa efectivamente colocar finalmente o verdadeiro problema de hoje: como sair do capitalismo enquanto sistema global, enquanto “civilização” (ainda que seja absurdo chamar ao capitalismo uma “civilização”). A transição necessária não se reduzirá a uma simples redistribuição e a uma justiça social maior, nem a uma defesa dos salários e das reformas face às reestruturações neo-liberais, nem a uma crítica da finança, dos bancos, da especulação, nem à proposta de medidas ecológicas mais incisivas, mas que permanecem no quadro da sociedade capitalista tal como o “desenvolvimento sustentável”, as “energias alternativas” ou a economia “verde”.
Trata-se antes de ter em conta que é necessário “transitar” para um outro modelo de vida em sociedade e sair da ideologia do “progresso” e do “crescimento” que formava o terreno comum da Esquerda e da Direita, do movimento operário e da burguesia.
Desde há algumas décadas que o domínio do homem sobre a natureza através da ciência e da tecnologia já não passa por uma conquista sempre positiva.
Critica-se cada vez mais o reinado dos experts, põe-se em causa o consumo levado ao extremo e a criação de necessidades artificiais, expõe-se ao desprezo público as marcas, sublinha-se a necessidade de nos libertarmos da tirania da velocidade, da performance, da afirmação individual a qualquer preço.
A “mercadorização”, a transformação em mercadoria de cada aspecto da vida, é hoje mal vista. Portanto, muitas coisas que eram aceites um pouco por todo o lado como evidentes, sem entraves, ou como necessariamente positivas, já não o são desde há alguns anos. Talvez esta inversão de valores não tenha ainda conquistado a maioria da população – mas avançou de maneira notável nos dez ou quinze últimos anos.
Uma transição deve, pois, incluir a transformação ou o abandono de numerosos valores que até recentemente foram universalmente admitidos. Mas o trabalho estará entre esses valores a abandonar? Será possível imaginar uma sociedade sem trabalho?
Não é em nome do trabalho e dos trabalhadores que se protesta contra o capital, contra a especulação, contra as políticas neo-liberais? E, sobretudo: como é que uma sociedade poderia existir sem o trabalho?
Não é o trabalho um dado eterno da vida humana, por vezes dura necessidade, outras vezes factor de desenvolvimento pessoal, mas sempre inevitável – de maneira que só podemos reduzi-lo graças às tecnologias, mas nunca aboli-lo?
Evidentemente que se identificamos abusivamente o termo trabalho como o facto de que o homem deve agir sobre a natureza para obter dela os meios de subsistência, o trabalho é um dado trans-histórico, uma condição de toda a vida humana. Mas, assim compreendido, este termo é de tal modo vago que ele não tem um maior valor analítico do que a afirmação de que o homem deve respirar para viver. É verdade, mas isso não quer dizer nada.
Com efeito, aquilo a que chamamos “trabalho” nem sempre existiu. Provam-no as etimologias. A palavra “trabalho” vem de um instrumento de tortura (o tripalium), utilizado na Antiguidade para punir os escravos que não queriam “trabalhar”, isto é, penar. As palavras labor, em latim (labour, em inglês), arbeit, em alemão, rabot, em russo, indicam todas a actividade penosa, infligida ao escravo ou ao órfão.
Antes da modernidade, não existia em nenhum lugar o hábito de resumir todas as diferentes actividades, sem ter em conta o seu conteúdo, sob o termo único de “trabalho”. Havia,é certo, actividades produtivas: mas elas especificavam sempre a realização do seu fim. Tocar a lira, combater na guerra, limpar uma rua e extrair o ouro numa mina não entravam na mesma categoria. De igual modo, o laço social não se constituía através do trabalho, e o papel social do indivíduo não dependia do trabalho que ele executava, ou do qual se apropriava, para o trocar em seguida em mercados anónimos,.
Era sobretudo o seu lugar na ordem social, assente noutras bases que não o trabalho, que determinava as actividades que o indivíduo devia executar.
Todas as sociedades pré-capitalistas consideraram o trabalho como uma maldição a evitar e não uma virtude.
O senhor era senhor porque não trabalhava, e os servos tentavam, à mínima oportunidade, fugir ao trabalho, como mostra uma rica tradição popular (por exemplo, “Os Doze Criados Preguiçosos”, nos contos dos irmãos Grimm).
Um autor francês da época das Luzes, por volta de meados do século XVIII, Nicolas de Chamfort, anotou em “Maximes et pensées” esta anedota que se refere à época em que a França já estava conquistada pela mentalidade do trabalho, mas não a Espanha:
“Um francês tinha sido autorizado a ver o escritório do rei de Espanha. Uma vez diante do seu sofá e da sua secretária, disse: ‘É pois aqui que esse grande rei trabalha.
– Como! Trabalha, diz o guia: que insolência! Trabalhar, esse grande rei! Vós vindes para insultar Sua Majestade!’. Iniciou-se uma querela em que o francês teve muita
dificuldade em fazer entender ao Espanhol que não tinha tido a intenção de ofender a majestade do seu mestre”.
Mesmo hoje, a palavra “trabalho” não indica o conjunto das actividades úteis, mas apenas aquelas que se podem transformar, no final de contas, numa soma de dinheiro.
Um exemplo: é possível ouvir alguém dizer: “Trabalho todo o dia no serviço de
relações públicas de uma central nuclear, e depois, no meu tempo livre, faço
jardinagem no meu quintal”. Uma actividade inútil, ou nociva, pode ser considerada como um trabalho, e a actividade verdadeiramente útil, e agradável ao mesmo tempo, faz-se fora do trabalho. Aliás, a mesma actividade de jardinagem seria considerada como trabalho se ela fosse executada com o objectivo de vender os produtos. Não é pois o conteúdo da actividade que conta.
Outro exemplo: é corrente ouvir frases como “O marido trabalha numa fábrica de armamentos. A sua mulher não trabalha, ocupa-se do seu sogro e dos filhos”.
O que se chama aqui trabalho é portanto idêntico ao gasto de energia humana que entra num circuito de mercado e acaba, ou pode acabar, por se representar numa soma de dinheiro, seja ele o salário ou o lucro.
Vê-se aliás neste exemplo que a clivagem entre o que é considerado socialmente como “trabalho” e as outras actividades corresponde largamente à clivagem histórica – que, evidentemente, é tudo excepto “natural” – entre as actividades socialmente atribuídas ao macho – e que se desenrolam geralmente fora do lar e na esfera pública, promovendo assim a participação na vida social – e, por outro lado, as actividades atribuídas às mulheres, as quais, mesmo sendo tão ou mais necessárias do que as actividades tipicamente masculinas, se desenrolam normalmente numa esfera privada, pré-social, doméstica, que comporta a exclusão das mulheres da vida social.
Quando falamos de “trabalho”, não consideramos de todo o conteúdo do trabalho.
O valor de uma mercadoria no mercado – e portanto o seu preço – não depende da sua utilidade ou do desejo que suscita, mas do tempo de trabalho que foi gasto na sua fabricação (incluindo a fabricação dos seus componentes, das máquinas e dos recursos, etc.).
Esse tempo mede o puro dispêndio de energia humana. O primeiro a fazer esta
análise, há 150 anos, foi Karl Marx. Na sua obra maior, O Capital, ele não começou a sua análise do capitalismo com a luta de classes, ou com o trabalho vivo e o trabalho morto, mas com a “dupla natureza” da mercadoria e do trabalho que a cria.
No capitalismo, cada mercadoria tem uma dupla natureza: tem um lado abstracto e um lado concreto, e todo o trabalho que cria mercadorias é igualmente, ao mesmo tempo, concreto e abstracto: concreto, porque se produz sempre alguma coisa, um bem ou um serviço; abstracto, porque tem sempre uma duração temporal.
Do lado concreto, cada mercadoria é diferente de qualquer outra mercadoria; e cada trabalho é diferente de qualquer outro trabalho. Mas o mesmo trabalho constitui igualmente um gasto de energia humana, de “músculo, nervo e cérebro”, como diz Marx, que só conhece diferenças puramente quantitativas: por exemplo, esta mesa e este microfone podem representar respectivamente três horas e doze horas de trabalho, o que se exprime no facto de que a mesa custa cinquenta euros e o microfone duzentos euros. Não se tem em conta a diferença qualitativa entre essas duas mercadorias, faz-se abstracção de toda essa diferença, e por conseguinte, de toda a diferença entre os trabalhos que as criaram. Eis porque Marx fala do “trabalho abstracto”. A partir do momento em que os produtos são trocados segundo o seu valor criado pelo trabalho, o trabalho é abstracto, e a vida social baseia-se numa abstracção de todo o conteúdo verdadeiro, reduzindo as actividades a uma quantidade maior ou menor da mesma substância vazia de conteúdo e de sentido.
É preciso sublinhar que a distinção entre trabalho concreto e trabalho abstracto não tem nada que ver com o facto de que esse trabalho seja material ou imaterial. No capitalismo, cada trabalho é duplo: mesmo o trabalho do camponês, ou da enfermeira, tem um lado abstracto, porque tem uma duração que está na origem do valor mercantil e, em suma, do preço em dinheiro. E mesmo o trabalho do informático, ou do contabilista, tem um lado concreto, porque se produz aí sempre alguma coisa, no sentido de uma modificação da realidade, utilizando o cérebro e os nervos.
É preciso portanto distinguir entre duas formas de riqueza, que dizem respeito aos mesmos objectos: a riqueza concreta e a riqueza abstracta. A riqueza abstracta só é dada pelo tempo de trabalho gasto, e assume a forma visível de uma soma de dinheiro.
Lembremo-nos que para o capitalismo só se produz para o lucro.
Isso não se deve à avidez particular dos capitalistas, mas constitui a lei da concorrência anónima.
O lucro deriva da mais-valia, do valor que o capitalista obtém para além do valor inicialmente investido e que resulta do sobretrabalho não remunerado.
O objectivo, o único objectivo da produção capitalista é o de transformar cem euros em cento e vinte euros, e depois os cento e vinte euros em cento e cinquenta, etc.
A produção de objectos e serviços – aquilo a que se pode chamar “riqueza concreta”, sem que este termos signifique, aliás, uma riqueza do ponto de vista da vida humana (uma bomba enquanto objecto que explode e mata é formalmente uma “riqueza concreta” em relação ao seu valor expresso em dinheiro) –não é senão uma espécie de mal necessário, um preço a pagar tendo em vista o único objectivo que conta numa perspectiva capitalista: a multiplicação do valor sob a forma da multiplicação do dinheiro.
E esta multiplicação só é possível através da multiplicação do trabalho, que é a única fonte de valor. O lado abstracto do trabalho, da mercadoria e da riqueza não é um “resumo mental” da realidade concreta do trabalho, da mercadoria e da riqueza, como a categoria da “árvore” é uma abstracção mental em relação às diferentes espécies de árvores reais. A abstracção no domínio do trabalho, etc., é pelo contrário terrivelmente real.
A riqueza concreta já não existe, não tem direito à existência social senão como “portador”, suporte, da riqueza abstracta. Para a lógica do mercado, a única coisa que distingue uma bomba de um brinquedo é a quantidade de trabalho e de sobretrabalho que eles contêm, e abandona-se a produção de brinquedos em favor da produção das bombas se esta é mais rentável em termos de valor (e, portanto, de lucro). A dimensão social das mercadorias reside precisamente no seu lado abstracto, e não no seu lado concreto.
O trabalho abstracto – repito, no capitalismo todo o trabalho tem um lado abstracto– tem portanto um carácter destrutivo. Mas o trabalho abstracto, o lado abstracto do trabalho, não é “natural”, nem está presente em qualquer sociedade desenvolvida. Ele constitui, pelo contrário, uma particularidade exclusiva da sociedade moderna, burguesa, capitalista. É também mérito de Marx ter claramente posto em relevo o carácter negativo e ao mesmo tempo historicamente determinado do trabalho abstracto, do valor, da mercadoria e do dinheiro.
Ele chamou “fetichismo da mercadoria” a esse traço básico da sociedade mercantil: o fetichismo não indica simplesmente uma mistificação da realidade, mas constitui uma inversão bem real, em que as coisas concretas parecem dotadas de uma vida própria, mas na verdade não são senão portadoras da lógica do trabalho abstracto e formam um sistema automático, anónimo, impessoal, em que os humanos devem apenas executar as leis do mercado. O papel social de cada um depende essencialmente da quantidade de trabalho que ele representa, quer seja o seu, quer seja o dos outros de que ele se apropriou. Isto diz respeito a todos os membros da sociedade capitalista, muito antes de se colocar a questão da exploração ou da classe social.
O capitalismo é pois, fundamentalmente, uma sociedade do trabalho, em que o trabalho forma o laço social e constitui a “mediação social”. O trabalho não é o contrário do capital, mas é a sua forma acumulada.
Para transformar dinheiro em mais dinheiro, é preciso aumentar o trabalho, trabalhar para trabalhar. Historicamente, a sociedade capitalista corresponde a uma explosão do trabalho, à sua multiplicação e intensificação permanentes. Eis porque o capitalismo, desde os seus famosos inícios com a ética protestante de que falava Max Weber, se baseava numa apreciação positiva do trabalho, que se tornaria em seguida um verdadeiro culto.
Só para dar um exemplo, um dos primeiros actos da Revolução Francesa, que selou o triunfo da burguesia, foi a forte redução dos dias feriados. Os proletários “livres” do século XIX trabalham mais do que os escravos mais desgraçados da Antiguidade, e mesmo hoje trabalhamos em geral mais, e sobretudo mais intensivamente, do que nas sociedades pré-modernas (sem contar que o trabalho tende hoje a extravasar em permanência dos quadros temporais: se não se quer arriscar a perder o trabalho, é preciso fazer com que a vida gire em torno do trabalho, mesmo quando se regressa a casa: seguir uma formação, manter-se informado, fazer desporto para estar sempre em forma para o trabalho, etc.) Os próprios capitalistas já não exercem o seu domínio para gozar a vida, como era o caso dos senhores feudais, mas reduziram-se a funcionários ao serviço da acumulação de valor. O culto do trabalho tinha igualmente contaminado, no século XIX, o movimento operário, como o próprio nome indica.
Mais do que combaterem a redução dos indivíduos a simples portadores da sua força de trabalho, como o faziam certos movimentos sociais no início do capitalismo, o movimento operário clássico, incluindo as correntes maiores do socialismo, do comunismo e do anarquismo, identificavam-se com o papel do trabalhador e dele faziam derivar a pretensão de governar a sociedade.
Mais do que criticar os conteúdos e as modalidades desse trabalho, pediam-se condições melhores para os trabalhadores. Para eles, o problema não era já o trabalho como relação social, mas a propriedade jurídica dos meios de produção e as injustiças na distribuição dos frutos que daí resultavam: a exploração. A critica dirigida aos capitalistas, como hoje aos especuladores, reduz-se então à acusação de que estes não trabalham e são “parasitas”. O facto de que uma grande parte do trabalho executado na sociedade capitalista ser inútil ou nocivo, porque estruturalmente indiferente a todo o conteúdo, acaba por ser esquecido.
Subordinar exclusivamente toda a consideração relativa às modalidades e aos objectivos do trabalho à pseudo-necessidade do seu crescimento é uma característica central de uma sociedade – a nossa – que não domina o seu processo económico, mas é cegamente governada por ele. A economia emancipou-se da sociedade, no seio da qual nasceu como sua criada, pondo, pelo contrario, toda a sociedade ao seu serviço. O antropólogo Karl Polanyi chamou a este processo a “desincorporação”/ ”desincrustração”(disembedding) da economia.
O que vemos actualmente —os Estados e as populações vigiando ansiosamente as “reacções dos mercados financeiros” como os sinais de cólera de uma divindade caprichosa e exigente – não é o resultado de uma conspiração de banqueiros ávidos que agem em coligação com políticos corruptos, mas constitui o estádio mais ou menos final dessa desincorporação da economia mercantil. Uma desincorporação que é, no entanto, consubstancial, co-extensiva à própria economia mercantil e não pode ser oposta a um improvável “regresso à política” que seria capaz de impor “mais regulação”. A política é impotente se não tiver meios financeiros à sua disposição.
Pode-se imaginar uma ruptura com a própria economia mercantil, mas não se pode imaginar que é possível dar-lhe uma forma muito diferente da sua forma actual. As modificações possíveis na repartição da mais-valia, na partilha entre salário e lucro, a existência do Estado-providência, a intervenção do Estado na economia, etc., não mudam em nada a estrutura de base dada pelo trabalho abstracto.
Mas a dominação do trabalho abstracto não é apenas destrutiva nas suas consequências, ela está também em crise permanente. A sociedade de trabalho obriga cada um a subordinar a sua vida às necessidades do trabalho, ela faz da venda da força de trabalho uma condição prévia para aceder à satisfação das necessidades – mesmo quando a mercadoria “força de trabalho” já só é procurada no mercado em pequenas quantidades e se revela muitas vezes invendável, sobretudo se o preço exigido é adequado. Com efeito, num movimento aparentemente paradoxal, a sociedade capitalista abole o trabalho ao mesmo tempo que obriga toda a gente a trabalhar – e isso desde os seus inícios, há mais de duzentos anos. As vitórias históricas do trabalho coincidem com a sua auto-abolição gradual. Passo a explicar.
Só o trabalho vivo – isto é, o trabalho no momento da sua execução – cria valor. As máquinas mais não fazem do que transmitir o seu valor, determinado pelo tempo que foi necessário para a sua fabricação. Mas quanto mais se utilizam máquinas, mais o trabalho é produtivo e os seus produtos podem ser vendidos a baixo preço, batendo assim a concorrência nos mercados. A concorrência entre os proprietários de capital –factor irrecusável do capitalismo – leva estes a empregar o máximo de tecnologias possível. Se, graças a uma máquina nova, um operário pode produzir três camisas numa hora em vez de uma, com o mesmo salário, ele permite ao seu empregador obter uma vantagem, produzindo mais barato. Mas a concorrência vai rapidamente generalizar este novo standard produtivo. Toda a tecnologia serve para economizar trabalho, para produzir mais com menos trabalho.
O papel do trabalho vivo na produção tem, pois, tendência a diminuir – pelo menos em cada mercadoria particular.
Mas enquanto cada capitalista tem todo o interesse em ser o primeiro a utilizar novas tecnologias para obter um extra-lucro, é o sistema na sua totalidade que sofre.
Se apenas o trabalho vivo cria o valor, uma diminuição do trabalho utilizado significa portanto uma diminuição da massa de valor, e finalmente da mais-valia.
A substituição do trabalho vivo pelas tecnologias, que é um motor maior do desenvolvimento capitalista e do seu dinamismo, é portanto também um factor da sua crise. E ele actuou desde o início. O que permitiu historicamente ao capitalismo adiar esta crise – sem jamais poder eliminar-lhe as causas – foi o aumento gigantesco do volume da produção. Se numa hora se podem produzir dez camisas, em vez de uma, como fazia o artesão, e se portanto o valor criado por uma hora de trabalho industrial se distribui por dez camisas, reduzindo a um décimo o valor de cada camisa, é então necessário produzir – e vender – pelo menos dez para salvar o valor. Esta necessidade de aumentar a produção de mercadorias, como contrapartida da queda do valor contido em cada mercadoria, está na origem da pulsão económica para “crescer” sempre, com todo o consumo de recursos e as consequências ecológicas que conhecemos.
Ela é igualmente a causa da transformação tendencial de todos os domínios da vida em mercadoria e de todas as actividades em trabalho, para abrir sempre novos campos de valorização. A actual conversão maciça dos “cuidados prestados à pessoa”, do care, em actividades mercantis, em trabalho, é disso um exemplo. O capitalismo transformou a sociedade inteira numa workhouse, numa casa de trabalho forçado. O seu protótipo era a fábrica de Henry Ford, com a sua cadeia de montagem e a sua “gestão científica do trabalho”, inventada pelo engenheiro Taylor, que tinha demonstrado que assim se podia fazer com que os operários trabalhassem mais em oito horas do que antes em dez. Absorver cada vez mais trabalho é a única maneira de fazer viver o capital, e os seres humanos vêem-se forçados a trabalhar incessantemente, para além de todas as necessidades e desejos reais.
Mas cada avanço das tecnologias relança a corrida. O fordismo global, durante o qual o mundo foi preenchido de automóveis, era a última grande época de uma utilização maciça de força de trabalho, e portanto de pleno emprego. Mas com a revolução micro-electrónica, iniciada nos anos 70, a substituição do trabalho vivo por tecnologias conheceu uma aceleração muito importante; em numerosas mercadorias, como os softwares reproduzíveis quase sem esforço num número quase ilimitado de exemplares, a qualidade de trabalho “integrado” desceu para doses “homeopáticas”. Nenhum mecanismo de compensação através do alargamento da produção pode continuar a ser suficiente.
Desde então vivemos numa situação de desemprego estrutural, que não tem nenhum remédio, e de uma queda drástica da produção de valor “real”, isto é, o fruto de um trabalho que reproduz o capital investido. Esta diminuição da massa de valor é a causa profunda da crise do capitalismo actual. Ela foi durante muito tempo escondida pelo desenvolvimento enorme do sector financeiro, do “capital fictício”, como Marx lhe chamava, em que, através de créditos se consomem ganhos futuros, mesmo que eles nunca cheguem. Tinha-se afirmado durante muito tempo que os postos de trabalho perdidos na indústria seriam reconstituídos nos “serviços”: era a teoria da “terceira onda”, da ”sociedade do terciário”, da “sociedade de informação”. Vê-se agora que a
grande maioria dos “serviços”, independentemente da sua utilidade real, não são produtivos do ponto de vista do capital, mas alimentados por lucros obtidos noutros sectores, nomeadamente industriais.
A crise destes comporta afinal uma redução drástica também dos postos de trabalho nos serviços.
Chegámos portanto a um estado de coisas que não pode ser mais paradoxal: a produção funciona largamente sem trabalho humano. Cria-se tudo o que é necessário, e mesmo muito mais, com uma quantidade mínima de trabalho. Mas como já o tinha dito um dos apologistas do liberalismo inglês do século XIX, John Stuart Mill: nenhuma invenção para economizar trabalho permitiu alguma vez a alguém trabalhar menos, mas apenas produzir mais na mesma unidade de tempo. As nossas vidas continuam a girar em torno do trabalho, e o trabalho a ser uma fonte de sofrimento: tanto para aqueles que o têm como para aqueles que não o têm. Mesmo se o mercado não quer a nossa força de trabalho, e se objectivamente ele não necessita dela, somos excluídos da participação na sociedade se não trabalhamos.
Se nos passam ainda um prato de sopa (sob a forma de subsídios de desemprego, etc.), isso não é generoso, mas antes vergonhoso face a toda a riqueza à nossa volta, mas que não é utilizada ou é destruída. Ao mesmo tempo, lembram-nos em cada instante que podem muito bem retirar-nos até essa sopa no próximo “saneamento orçamental”.
O resultado final do capitalismo parece este: o problema mais grave já não é (ou não é apenas) a exploração, mas o supérfluo: o facto de sermos supérfluos, o facto de sermos supérfluos a mais.
O capital já não tem necessidade de muitos homens como trabalhadores, e se eles não trabalham e não ganham, não podem sequer ser consumidores.
Já não servem para nada. Explorá-los já não é rentável. A contradição de base – aquela entre absorção do trabalho vivo e substituição do trabalho vivo – parece chegada ao seu ponto de explosão. É enquanto sociedade do trabalho que o capitalismo falhou.
A uma boa parte da humanidade – no Sul do mundo, mas também no interior das sociedades “ricas” – já não é permitido nem trabalhar nem sustentar-se de uma outra maneira. Os numerosos circuitos da miséria e as pessoas que remexem nos caixotes de lixo são os seus elementos mais visíveis.
O fim da sociedade do trabalho poderia ser uma boa notícia. Mas nas condições actuais, ela torna-se uma catástrofe e resulta na situação que consiste em morrer de fome no meio da abundância.
A alternativa à sociedade do trabalho não deve ser procurada – é pelo menos a minha opinião – num paraíso tecnológico em que as máquinas trabalham em vez de nós. Isso significaria ainda e sempre entregar-nos a uma mega-máquina impossível de controlar, em vez de reconquistar a autonomia necessária.
Não nos podemos simplesmente “apropriar” do mundo capitalista-industrial, como alguns pretendem: esse mundo tem de ser, em larga medida, demolido. Além disso, a crítica do trabalho não é necessariamente idêntica a um “elogio da preguiça”. Não é o esforço e o compromisso que devem ser proscritos, mas a sua autonomização em relação a toda a finalidade concreta.
Não se sairá da crise ecológica sem ultrapassar o trabalho abstracto: enquanto o “valor” de um produto depender da quantidade de trabalho utilizado, embora os produtos contenham cada vez menos trabalho, é inevitável que a única maneira de limitar a diminuição do valor consiste na expansão da produção, com um consumo acrescido de recursos. Não pode haver um “capitalismo ecológico”; para sair do produtivismo cego é necessário romper com o facto de a produção estar subordinada ao valor e ao trabalho abstracto que cria esse valor.
Também não se trata de celebrar a vinda de novos conteúdos do trabalho e de ver no trabalho imaterial ou “cognitivo” uma forma livre, desalienada do trabalho, e nos seus portadores uma nova força de trabalho que só tem que se libertar da dominação daqueles que têm a propriedade jurídica dos meios de produção. O verdadeiro problema é a forma social do trabalho e a redução de toda a actividade à sua única dimensão abstracta, ao gasto de energia medido em tempo que se representa num valor cuja forma visível é o dinheiro. Já não é possível hoje imaginar uma rebelião do ponto de vista do trabalho vivo e dos seus portadores, mesmo substituindo o proletariado clássico pelo trabalhador informático ou imaterial.
Na verdade, foi sempre paradoxal fazer uma critica do capitalismo do ponto de vista do trabalho, porque o trabalho é uma parte integrante desse sistema e não existe senão onde existem o valor e a mercadoria.
Evidentemente, seria tão impossível quanto pouco desejável voltar ao “pleno emprego”, como prometem os políticos de todas as áreas.
É necessário antes permitir o acesso de todos aos recursos produtivos e ultrapassar o laço entre o papel social e a quantidade de trabalho que se representa. Isso exige ser realizado a um nível global e implica igualmente sair da mercadoria, do valor e do dinheiro. Vasto programa! Mas escamoteando-o com o pretexto de que ele seria “utópico”, corremos o risco de ficar no quadro da sociedade do trabalho, do crescimento, do dinheiro, etc., simplesmente “gerindo” os que se encontram à margem e ajudando-os a sobreviver sem dinheiro e sem trabalho numa sociedade que se continua a basear nessas categorias. Cair na co-gestão da pobreza é, apesar das melhores intenções, um risco real que correm as economias alternativas, o decrescimento, o “sector terciário”…
Eis a questão que se levanta hoje em dia:
Devemos continuar a tentar sobreviver no cerne de um sistema que se desmorona, ou devemos tentar fazer a “transição” para uma sociedade que se libertará do valor, da mercadoria, do dinheiro, do trabalho e do Estado?
Conferências de Lisboa, Anselm Jappe, Antígona, 2013