A sociedade autofágica - PRÉ-PUBLICAÇÃO
PRÓLOGO De um rei que a si mesmo se devorou -
Do fundo dos tempos, continuam a chegar até nós antigos mitos que em curtas narrativas condensam uma imagem precisa daquilo que estamos a viver. É o que acontece com um sucinto mito pouco conhecido, o mito de Erisícton. Foi-nos transmitido, com algumas variantes, pelo poeta helenístico Calímaco e pelo poeta romano Ovídio. Erisícton era filho de Tríopas, que se tornou rei da Tessália após ter expulsado dali os habitantes autóctones, os pelásgios. Estes haviam consagrado a Deméter, a deusa das colheitas, um bosque magnífico. No centro desse bosque erguia-se uma árvore gigantesca, à sombra de cujos ramos dançavam as dríades, as ninfas das florestas. Erisícton, desejando transformar essa árvore em soalhos para a construção do seu palácio, foi até lá um dia, com servos munidos de machados, e começou a abatê-la. Apareceu-lhe então a própria Deméter, sob as feições de uma das suas sacerdotisas, para o exortar a que renunciasse. Erisícton respondeu-lhe com desprezo, mas os seus servos tiveram medo e quiseram evitar o sacrilégio. Erisícton, então, empunhando um machado, cortou cerce a cabeça de um deles e a seguir derrubou a árvore, apesar do sangue que dela jorrava e da voz que dela provinha anunciando-lhe uma punição.
Esta não se fez esperar, enviando-lhe Deméter a Fome personificada, que através do sopro penetrou no corpo do culpado, vendo-se este então presa de uma fome que nada podia saciar: quanto mais comia, mais fome tinha. Tragou todas as suas provisões, os seus rebanhos e cavalos de corrida; mas as suas entranhas continuavam vazias, e ele, pouco a pouco, definhava. Consumiu, como um fogo que tudo devora, o que teria bastado para alimentar uma cidade, um povo inteiro. Segundo Calímaco, teve de se esconder em casa, de renunciar a sair e a participar nos banquetes, acabando por mendigar na rua comida para a boca, após ter arruinado a casa paterna. Segundo Ovídio, chegou até a vender a filha, Mestra, para comprar comida, conseguindo ela fugir graças ao dom da metamorfose que Posídon lhe concedera. Mas, tornando depois a casa de seu pai, Mestra foi por ele de novo vendida várias vezes. Nada, porém, acalmava a fome de Erisícton, e «[…] quando a violência do seu mal esgotou todos os alimentos / e à sua penosa moléstia deu novo pasto / ele mesmo dilacerou os seus próprios membros e se pôs a arrancá-los / mordendo-se o desgraçado para de seu próprio corpo se nutrir, mutilando-o». Assim termina o relato de Ovídio.
Só o desaparecimento, em vias de consumar-se, da familiaridade com a Antiguidade clássica pode explicar que o valor metafísico deste sucinto mito tenha até agora escapado aos porta-vozes do pensamento ecológico. Com efeito, está lá tudo: a violação da natureza no que esta tem de mais belo – e de mais sagrado para os originários habitantes daquelas terras –, para dela se extraírem materiais de construção destinados à edificação dos lugares do poder. Os prazeres bucólicos das dríades são sacrificados aos «festins» a que o arrogante príncipe prevê explicitamente consagrar o seu palácio. O homem poderoso mostra-se surdo às mais prementes exortações de renúncia àquela profanação, ao passo que os dominados não querem cooperar em tal coisa (no texto de Ovídio, os servos encaram o delito com má vontade antes mesmo da intervenção da deusa). A sua resistência, expressa em nome do respeito pela tradição, fica-lhes cara, porque a raiva cega do poder contestado é desencadeada contra os que o criticam e não querem participar nos seus crimes. Por fim, os servos têm de submeter-se e de ajudar o amo a realizar o seu desígnio. Mas não é sobre eles, que se limitaram a «obedecer às ordens» (di-lo Calímaco explicitamente), que Deméter lança o fogo da sua vingança. Ela pune unicamente Erisícton, da forma adequada ao seu delito: não podendo alimentar-se, o rei vive como se toda a natureza se tivesse transformado – para ele – num deserto que recusa dar a sua habitual contribuição à vida humana. Irá falhar, inclusive, a sua tentativa de obrigar uma mulher a reparar os danos causados pela loucura dos homens, e ele morre abandonado por todos e privado dos frutos da natureza.
Trata-se de um dos mitos tipicamente gregos que evocam a húbris – a desmesura resultante da cegueira e do orgulho ímpio –, a qual acaba por provocar a némesis, o castigo divino a que se viram sujeitos, entre outros, Prometeu, Ícaro, Belerofonte, Tântalo, Sísifo, Níobe. Não pode deixar de nos surpreender a actualidade deste mito. As pessoas, em particular, que gostam de apresentar, com inflexões mais ou menos religiosas, a destruição do meio ambiente natural como a transgressão de uma ordem também ela natural podem ver neste mito uma antecipação arquetípica das suas inquietações. Não respeitar a natureza desencadeia necessariamente a cólera dos deuses, ou da própria natureza…
Mas há mais: não é uma catástrofe natural que se abate sobre este antepassado dos insanos indivíduos que hoje destroem a floresta amazónica. O seu castigo é a fome. Uma fome que aumenta quando se come e que nada sacia. Mas fome de quê? Nenhum alimento a pode aquietar. Nada de concreto, de real, responde à necessidade que Erisícton sente. A sua fome nada tem de natural, e é por isso que nada de natural a pode acalmar. É uma fome abstracta e quantitativa que nunca pode ser saciada. No entanto, a desesperada tentativa de a acalmar leva-o a consumir em vão alimentos, e bem concretos, destruindo-os e privando desse modo quem deles necessita. O mito antecipa assim, de forma extraordinária, a lógica do valor, da mercadoria e do dinheiro: ao passo que toda e qualquer produção que vise a satisfação de necessidades concretas tem os seus limites na própria natureza destas necessidades e recomeça o seu ciclo essencialmente ao mesmo nível, a produção de valor mercantil, que o dinheiro representa, é ilimitada. A sede de dinheiro nunca pode extinguir-se porque o dinheiro não tem como função satisfazer uma necessidade precisa. A acumulação do valor e, portanto, do dinheiro não se esgota quando a «fome» é saciada, parte de novo e imediatamente para um novo ciclo alargado. A fome de dinheiro é abstracta, é vazia de conteúdo. A fruição é para ela um meio, não é um fim. Mas esta fome abstracta nem por isso ocorre apenas no reino das abstracções. Como a fome de Erisícton, ela destrói os «alimentos» concretos que, para alimentar o seu fogo, encontra pelo caminho, e fá-lo, como no caso de Erisícton, numa escala cada vez maior. E sempre em vão. A sua particularidade não é a avidez enquanto tal – coisa que nada tem de novo debaixo do sol –, é uma avidez que a priori jamais pode obter o que a satisfaça: «Rodeado de iguarias, procura outras iguarias», diz Ovídio. Não é simplesmente a malvadez do rico que aqui está em jogo, é um enfeitiçamento que cria uma cortina entre os recursos disponíveis e a possibilidade de deles usufruir. Deste modo, o mito de Erisícton apresenta evidentes paralelos com o bem conhecido mito do rei Midas, que morre de fome porque tudo aquilo em que toca se transforma em ouro, inclusive os seus alimentos.
O aspecto mais notável da história de Erisícton é talvez a sua conclusão: a raiva abstracta, que nem sequer a devastação do mundo pode acalmar, acaba na autodestruição, no autoconsumo. Este mito não nos fala apenas da devastação da natureza e da injustiça social, fala-nos também do carácter abstracto e fetichista da lógica mercantil e dos seus efeitos destruidores e autodestruidores. Ele surge-nos assim como uma ilustração da crítica contemporânea do fetichismo da mercadoria, segundo a qual «o capitalismo é como um bruxo, forçado a deitar todo o mundo concreto no grande caldeirão da mercantilização, para evitar que tudo pare. A crise ecológica não pode encontrar a sua solução no quadro do sistema capitalista, que tem necessidade de crescer permanentemente, de consumir cada vez mais matérias-primas, apenas para compensar a diminuição da massa de valor», ou quando esta crítica compara a situação do capitalismo contemporâneo com um barco a vapor que só continua ainda a navegar queimando pouco a pouco as tábuas do convés, do casco, etc. Morrer de fome no meio da abundância – é esta, de facto, a situação a que o capitalismo nos conduz.
Todavia, vão ainda mais longe as perturbadoras semelhanças entre o arrogante rei da Tessália e a nossa situação. Os seus comportamentos não evocam somente a lógica deste mundo às avessas que é o fetichismo da mercadoria, evocam também, mais directamente, os comportamentos dos sujeitos que vivem sob o seu reinado. A pulsão feroz que aumenta a cada tentativa de a saciar e que conduz à desintegração física do indivíduo, o qual, antes disso, gastou todos os seus recursos e espezinhou as afeições mais elementares, obrigando inclusivamente as mulheres do seu meio a prostituírem-se, lembra o percurso do drogado a quem falta a droga. E alguns destes drogados lembram a lógica do capitalismo, de que são uma espécie de figura metafórica. De um modo mais geral, Erisícton tem claramente as características do narcísico, em sentido clínico. Só sabe de si, não consegue estabelecer verdadeiras relações, nem com os objectos naturais, nem com os outros seres humanos, nem com as instâncias simbólicas e com os princípios morais tidos como reguladores da vida humana. Nega a objectividade do mundo exterior, e o mundo exterior nega-se-lhe a ele, recusando prestar-lhe os auxílios materiais mais elementares, como a comida. A húbris, pela qual Erisícton se vê punido, era para os Gregos o desafio lançado aos deuses, a pretensão de serem seus iguais. Para além do aspecto estritamente religioso, podemos ver nesta condenação grega da húbris um aviso contra o desejo do todo-poderio, contra os fantasmas de omnipotência que constituem a base do narcisismo.
Fetichismo e narcisismo – é em torno destes dois conceitos, e das suas consequências nas sociedades actuais, que este livro vai articular-se. A húbris de Erisícton leva à destruição e acaba, por fim, na autodestruição, que nos lembra esta a que agora assistimos e que a categoria do «interesse» dos «actores» não pode de todo ajudar-nos a compreender. Desde há algum tempo, predomina a impressão de que a sociedade capitalista está a ser arrastada para uma deriva suicida que ninguém conscientemente deseja, mas para a qual toda a gente contribui. Destruição das estruturas económicas que asseguram a reprodução dos membros da sociedade, destruição dos elos sociais, destruição da diversidade cultural, das tradições e das línguas, destruição dos fundamentos naturais da vida: aquilo que por toda a parte se constata não é somente o fim de certos modos de vida para entrarmos noutros – «destruições criadoras» de que a história da humanidade estaria repleta –, é antes uma série de catástrofes a todos os níveis e à escala planetária que parecem ameaçar a própria sobrevivência da humanidade, ou, pelo menos, a continuação de grandíssima parte daquilo que deu sentido à «aventura humana», para submergir os humanos no estado de «anfíbios».
Este livro, contudo, não tem como objectivo principal lembrar as inúmeras razões para nos indignarmos perante o estado do mundo em que vivemos, nem pretende acrescentar a isso novas razões. Em vez de juntar novas peças ao dossiê de acusação, o seu objectivo é contribuir para a compreensão do que está a acontecer-nos, das suas origens, da sua forma e das suas perspectivas de evolução, bem como para tentar aclarar a profunda unidade das desgraças descritas e para remontar àquilo que as mantém juntas – primeira condição para nisso tentarmos intervir com alguma possibilidade de êxito.
Este livro prolonga as análises apresentadas n’As Aventuras da Mercadoria, onde exponho o essencial da «crítica do valor». A sua leitura preliminar não é indispensável para se ler este último, tendo em conta que os seus conceitos mais importantes são retomados na parte inicial e em diversos passos. No entanto, o conhecimento d’As Aventuras da Mercadoria permitirá, sem dúvida, apreender melhor tudo o que está em jogo n’A Sociedade Autofágica, que segue um percurso parcialmente diferente. Um apêndice, no fim deste livro, resume as teses essenciais da crítica do valor; recomendamos a sua leitura preliminar a quem ainda não as conheça, podendo os outros leitores começar de imediato pelo primeiro capítulo.
Em vez de começar por estabelecer uma base teórica colhida nas obras de Marx e de avançar em seguida para considerações mais históricas, detalhadas e «concretas», iremos ocupar-nos aqui da temática do sujeito através de abordagens diversas, algumas das quais são conceptuais e outras «empíricas». O procedimento é pois menos dedutivo, e a focalização pode mudar de um capítulo para o outro; trata-se, por vezes, de resumir vastas problemáticas a partir de conceitos bastante gerais e, outras vezes, de examinar em pormenor um argumento, um autor ou um fenómeno. Não é um tratado sistemático, é uma tentativa de lançar uma nova luz sobre a moderna forma-sujeito. A crítica do valor constitui a base deste livro, mas mobilizam-se nele outras abordagens surgidas recentemente nas ciências humanas e enceta-se um diálogo com autores por vezes muito afastados da crítica do valor.
As Aventuras da Mercadoria propunham-se expor o essencial sobre um tema circunscrito: a crítica do valor e a sua leitura de Marx. Em contrapartida, A Sociedade Autofágica trata de questões muito mais vastas, que não pode pretender esgotar. Agindo como os primeiros arqueólogos, neste livro fui fazendo escavações aqui e ali, em vez de extrair pacientemente camadas inteiras de terreno. Trata-se pois de um programa de investigação cujo avanço futuro só poderá efectuar-se como um trabalho colectivo, já encetado aqui e ali.
Por conseguinte, são variadas as luzes projectadas sobre a questão da subjectividade mercantil. No primeiro capítulo, a abordagem é filosófica e histórica, alicerçando-se na crítica do valor; no segundo, enceta-se uma discussão com a psicanálise, com a Escola de Frankfurt e com Christopher Lasch; no terceiro, utilizo a sociologia contemporânea; o quarto capítulo concentra-se na questão da violência e dos homicidas em meio escolar; o epílogo, por último, retoma os conceitos de «dominação» e de «democracia», examinando a aterradora perspectiva de uma possível regressão antropológica.
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Mais informações sobre o livro.
Lançamento no sábado, dia 1, pelas 18h na Ferin.