Diasporic Bodies. Irineu Destourelles Videoart
Através do olhar oscilante que a diáspora lhe proporciona, a obra de Irineu Destourelles oferece um ponto de reflexão sobre as ambiguidades da dialética entre o eu e o outro, o dentro e o fora, o colonizador e o colonizado e sobre a sua atividade artística. Tendo como ponto de partida a sua vídeo-instalação Subtitulizar/Subtitling, 2012 (fig. 144-148), focarei aqui o modo como o vídeo do artista procede a uma meta-reflexão sobre a diáspora, através de uma ironia poética, explorando o abismo entre as diferentes traduções do mundo, entre o eu e o outro, entre a vertigem da loucura; a persistência da remodelação da multiplicidade; o questionamento da condição humana.
Na sua abertura ao porvir e à multiplicidade, a diáspora, para além do sentimento de desterramento, de estar onde não está, constitui um espaço entre-lugares que pode ser, também, uma forma de liberdade, uma abertura para o imprevisto.
Introdução
Irineu Destourelles faz parte da diáspora cabo-verdiana. Tendo nascido em Cabo Verde, viveu em Lisboa desde os quatro anos. Posteriormente, estudou na Willem de Kooning Akademie, em Roterdão e na Central St. Martins College of Art and Design, em Londres. Foi diretor e professor no M_EIA, a primeira instituição superior em Cabo Verde dedicada ao ensino das artes e design. Durante essa experiência de docência em Mindelo adotou um olhar mais crítico sobre a condição pós-colonial que se tornou parte integrante da sua pesquisa.
A sua obra recorre a diversos media, desde o vídeo ao desenho e escrita, refletindo sobre as questões da identidade e da linguagem e do seu imbricamento nas narrativas pós-coloniais. Em 2014 adotou o apelido Destourelles, proveniente de uma personagem crioula da ilha de Martinica, Clémence Destourelles (Fort-de-France, 1816–Paris 1910), casada com Arthur Gobineau, autor de Essai sur l’inégalité des races, 1853, o qual contribuiu para legitimar as teorias racistas. Clémence Destourelles simboliza, assim, ironicamente, a ambiguidade das relações entre colonizado/colonizador que o crioulo cabo-verdiano vivenciou com o colonialismo português. Esta ambiguidade é central na sua obra e subjaz à exploração artística do hiato entre texto/imagem, interior/exterior, realidade e perceção.
Neste contexto, a reflexão sobre o poder da linguagem e a linguagem do poder, e sobre o seu papel na perpetuação das narrativas coloniais é uma constante que atravessa o trabalho do artista: em Review (2014), por exemplo, explora as falhas técnicas de um software que erra repetidamente na tradução de termos africanos; em New Words for Mindelo´s Urban Creole (2014), sob a forma de um dicionário fictício, espécie de “Dictionnaire des ideés reçues”, inventa neologismos compostos frequentemente por termos da mitologia grega e da administração colonial portuguesa, conferindo uma pseudo-cientificidade à violência da colonização mental internalizada a qual persiste sob a lógica da exploração capitalismo global, após a abertura dos mercados com as primeiras eleições democráticas em Cabo Verde, em 1991. Assim, por exemplo, “Arminisme”, é definido como “ to want to have a child with a person with lighter skin, preferably a Caucasoid”, “Koalemos” (derivado do deus grego da estupidez) é definido como “to privatize stated owned patrimony at symbolic value; to conceive and lead a public interest project that does not benefit the majority” e “Martinismo” como “to exploit manual workers; to lobby against the rights of the poor and uneducated people”, remetendo para Joaquim Martins, um cientista português do final do séc. XIX, pioneiro do darwinismo social, ou, ainda Metathesiophobia (2011), (fig. 1) onde um grupo de três pessoas sentadas à mesa no que poderia ser uma reunião familiar, são filmadas num plano sequência com um enquadramento que oculta os rostos, enquanto se ocupam a distribuir um pó branco em pequenos sacos de plástico, remetendo para o tráfico de substâncias tóxicas num país que, devido à sua posição geográfica, funciona como “cocaine highway”.
A posição de Irineu Destourelles, enquanto parte da diáspora cabo-verdiana, permite-lhe situar-se num espaço de interstício, evitando uma crítica unilateral, tornando visíveis as fissuras e levantando o véu sobre a riqueza que existe no não-dito, no manancial pré-reflexivo. Aí, emergem as diferenças subtis através das quais as narrativas se reinventam. Mas é na sua inicitação Subtitulizar/Subtitling, constituída por um conjunto de trabalhos realizados em 2019 - Several Ways of Falling Ordered Differently (fig. 1), One Hundred and Two Houses on Fire (fig. 3), Ex-colonial landscape with Different Filters (fig. 4); e Forces Mental Health and Detail from Indoors (fig. 5 e 6), exposta na sala de projetos do Museu Calouste Gulbenkian, 2019, e que pode ser considerada o seu trabalho mais autobiográfico, que Irineu Destourelles foca o próprio processo identitário como um exercício de diferimento. Este exercício é, simultaneamente, potencial de subversão e de queda, de “violência discursiva interior” e de reiteração de uma resistência que se insinua, renovando-se no tempo.
Neste contexto e a partir desta obra, procurarei aprofundar o espaço da diáspora como metáfora poética da experiência de exílio interior, por um lado, e por outro, de exploração do espaço aberto entre domínios intraduzíveis – o texto e a imagem, a perceção e o real, o eu e o outro – como um espaço profícuo para o questionamento de narrativas hegemónicas dominantes.
Diferença e repetição
A existência implica duração, repetição e diferença se entendermos que esta última se dá apenas relativamente ao semelhante do qual difere, marcando, através deste diferimento, uma distribuição das dimensões temporais. Assim, a vida é uma constante repetição com variações: os dias e as noites, as coisas, as pessoas e até o nosso corpo, repetem-se e o mundo renasce a cada momento.
Tomando como ponto de partida Several Ways of Falling Ordered Differently e One Hundred (fig. 2) and Two Houses on Fire, (fig. 3) focarei nesta seção as potencialidades transformadoras da repetição. Em ambos estes trabalhos existe a repetição de uma narrativa – seja uma queda, seja a evocação de uma casa a arder – a qual cria uma sequência temporal em circuito fechado.
Several Ways of Falling Ordered Differently (fig. 2) é constituído por um mosaico de 35 imagens em simultâneo no mesmo écran, onde se vê a performance da queda de um corpo – o do próprio artista. A performance, dá a sensação de um impacto causado por um tiro provocando o início da queda, remetendo para a Execução do Imperador Maximiliano, de Manet, 1868, pela existência de um muro ao fundo, pela posição que este ocupa no campo visual e pela horizontalidade dos eixos da composição, assim como pelo enquadramento.
As quedas são filmadas num plano sequência fixo, em câmara lenta e apresentadas em loop, existindo várias séries de variações apresentadas simultaneamente de forma assincrónica. As filmagens foram realizadas na horta do pai do artista, em Portugal, palco da tentativa de replicar a sua terra natal, onde crescem inhames e cana-de-açúcar, tentativa de criar um lugar seguro, num espaço entre -lugares, deslocado.
Constitui, também, o registo de um trabalho performático de exploração da relação de um corpo com a gravidade. O artista renuncia a qualquer tentativa de controlo da queda, abandonando-se à gravidade, tornando manifesto o peso do seu corpo-massa, metáfora para a perda de sentido e do reconhecimento de si do sujeito.
Em One Hundred and Two Houses on Fire (fig. 3), como o título indica, são projetados 102 desenhos a preto e branco, realizados a régua, com esferográfica e marcadores representando, de forma minimalista, casas num espaço indefinido a arder por dentro. A aleatoriedade do seu número aponta para uma espécie de catálogo infinito de tipologias das diferentes formas pelas quais uma casa pode arder por dentro. Com as suas perspetivas intencionalmente distorcidas, os desenhos evocam os desenhos de crianças que tentam apropriar-se mentalmente do espaço, procurando dar-lhe um sentido através de uma cartografia que descreve mais o que sabem do que o que vêm. As janelas são poucas e muito pequenas de modo que as casas parecem blocos maciços de cimento que se desmoronam do interior, recordando, pela sua forma, as casas de cimento que fazem parte da paisagem urbana em Cabo Verde.
Cada uma das repetições – seja as simultâneas variações de quedas assincrónicas, seja as sucessivas variações de desenhos de uma casa a arder - cria uma expetativa pela parte do espetador, levando-o a analisar com maior atenção as diferenças entre as repetições. Em Several Ways of Falling Ordered Differently, o abandono do corpo à gravidade opera uma coreografia do acaso, cada uma das quedas desenhando diferentes traços no espaço. Em One Hundred and Two Houses on Fire (fig. 3), a casa a arder – metáfora de uma mente que se desintegra - vai desenhando no tempo uma trajetória através da sucessão dos desenhos. Ambos os trabalhos criam uma sequência temporal a qual, através da repetição, materializa a impossibilidade de representar o conceito de “queda” e o conceito de “casa a arder”. A sua apresentação em circuito fechado disrompe a cronologia teológica, reordenando o tempo a partir de uma singularidade – a imagem simbólica da queda e da casa que arde –, de uma crise ou traumatismo que opera uma fissura no tempo: é a singularidade deste momento que permite criar uma sequência temporal criando um antes e um depois.
Como Deleuze analisou, em Diferença e repetição, 1968, apenas existe um presente com várias dimensões: o passado-presente, o presente-presente e o futuro-presente. O presente apenas passa quando nos lembramos dele fazendo, assim, diferir o presente-presente do presente-passado. Deste modo, o presente contém necessariamente a lembrança do passado e a representação do sujeito lembrando-se, no presente, do presente-passado. Esta dupla passado/presente é como Orfeu e Eurídice: ao voltar-se para trás, o presente torna-se presente passado e a repetição do mesmo-presente deslaça-se, diferindo antes de chegar a existir. De modo análogo, para que a ação/acontecimento possa existir no passado é necessário existir antes um modelo no futuro desse passado à qual este se assemelhe e possa haver, pela diferença ao semelhante, algo de novo. Neste sentido, não é um original mas já uma repetição do futuro”. Ao deixar de ser entendida no quadro da metafísica ocidental, a repetição deixa de ser a repetição de um eterno modelo, fixo e unitário, fora do tempo, relativamente ao qual é sempre uma falha, uma cópia desvirtuada e passa a ser um exercício de transformação onde se ensaiam - em língua francesa “repétition” significa, também, “ensaiar” - novas possibilidades ao mesmo tempo que, no reverso da repetição, se forja, através da contração dos diferentes tempos, uma identidade no sujeito que contempla.
A simultaneidade das várias dimensões temporais torna-se visível em Several Ways of Falling Ordered Differently: não existe aqui uma queda original, cada repetição difere da outra. As imagens em movimento reencenam várias repetições: a da queda do Imperador Maximiliano, a repetição da terra natal e da sua vegetação, e das imagens em si mesmas, uma vez que, na mente do observador, a sua repetição leva sempre a uma expetativa e a uma nova reavaliação.
A mesma reavaliação sucede nos desenhos da casa a arder. Assim, a diferença está na própria repetição, que muda, di-fere. Bhabha, transpõe a linha de reflexão derridiana − segundo a qual cada enunciação é uma iteração que ocorre por diferencia (différance) de um discurso dado − para o âmbito de uma cultura dominante onde existe um significado dominante. Assim, nota que qualquer ato se dá também, à partida, num dado contexto discursivo, cimentado por um conjunto de hábitos coletivizados através de uma série de dispositivos sociais, sendo necessário “haver um texto para ser traduzido” . Daí a repetição ser essencial, segundo Bhabha, para um agenciamento, na medida em que a repetição é sempre uma variação ou uma re-articulação: “the implications for politics is that agency is precisely the performance, the acting out of this repetition”.
Ao mostrar a diferença na repetição, estes trabalhos tornam visível o seu caráter transgressivo enquanto “singularidade contra as particularidades submetidas à lei”, tornando-se não a repetição do mesmo, mas o exercício metódico da transformação.
Existe a repetição material, corporal, orgânica e inconsciente, disciplinada por dispositivos sociais que modelam os hábitos coletivos. As sequências de repetições de queda e as diferentes variações de desenhos de casas a arder por dentro podem ser entendidas como um exercício para libertar esse corpo desse hábito, ensaiando uma transformação, num exercício que retoma, de cada vez do zero, não como uma repetição de um momento anterior, mas como um melhoramento, uma consolidação do anteriormente incorporado e, ao mesmo tempo, a sua superação, contendo, neste sentido, uma potencialidade de metamorfose. Neste contexto, a repetição torna-se uma prática política de transformação, opondo-se ao único, à norma. Assim, ao tornar visível a ambiguidade e pluralidade dessa repetição, reencenando-a, estes trabalhos minam o discurso dominante que oculta essa pluralidade sob a ficção de um signo fixo estabelecido como a norma de classe, género ou raça.
Lost in translation
O hiato ou diferença entre as repetições, potencial espaço de agenciamento, é complementado, em Subtitulizar/Subtitling, pela exploração criativa do espaço da tradução. O título em português “Subtitulizar” − um neologismo criado pela tradução literal do termo em inglês “Subtitling” que em português se traduz por “legendar” − situa a exposição, à partida, no espaço de interstício onde vagueiam os fantasmas perdidos na tradução, balbuciamentos da linguagem à procura de um corpo.
Ex-colonial landscape with Different Filters (fig. 4), joga na tensão entre várias indizibilidades: entre imagens legendadas e textos ilustrados, entre a alteridade da identidade da paisagem, a imagem fixa e a imagem em movimento e, por fim, entre as diferentes temporalidades e (com)textos. Ao fim de um corredor, um monitor de vídeo cúbico antigo, colocado no chão, impede a passagem para a sala principal, emitindo imagens do Vale da Ribeira de Paul em Santo Antão, Cabo Verde, captadas em contínuo por uma câmara fixa coberta por uma sucessão de filtros que transfiguram a imagem numa paisagem carregada de tempo. Trechos de letras de canções portuguesas pop dos anos 80 e 90, intercaladas com trechos de discursos dos Presidentes das duas principais facções opostas durante a guerra civil angolana (1997-2002), Jonas Savimbi e José Eduardo dos Santos, estão colocados numa faixa branca superior que ocupa um quarto do ecrã. A posição do televisor e a sua volumetria, remetem para os inícios da videoarte, nos anos 70, e para as vídeo-esculturas de Naum Jane Paik, contrastando com o caráter analógico do processamento da imagem.
Em frases como “We live in a society of immediate consumption and I love you” ou “The solution rests with work and discipline but I can not control this state of anxiety”, sobressai o conflito entre o caráter técnico e objetivo da primeira parte das frases e o caráter subjetivo e emocional do segunda parte. A ironia resulta aqui do que Freud denominou de “técnica de transposição” (“Verschiebungstechnik”), considerando-a como uma das técnicas do que designou de “trabalho do sonho”: o desenvolvimento da mesma linha de pensamento apesar da deslocação do contexto, como um comboio que continua o caminho sem carris. Este hiato, entre uma linha de pensamento e o contexto, é mitigado pelo efeito hipnótico do continuar do andamento da carruagem, conferindo ao absurdo a ilusão da aparência lógica. Neste caso, a transposição resulta numa ironia poética, pois preserva a marca da irrupção de algo latente, característica, segundo Freud, da transposição particular constituída pela ironia. Assim, o seu efeito irónico deve-se a que a parte mais subjetiva da frase aproveita o balanço da parte mais controlada da mesma para exprimir algo inesperado, rompendo a lógica causal e despertando a poesia e a ironia.
A ideia da frase ultrapassa o conjunto das relações entre as palavras/significantes e as coisas/significado: o significante deslaça-se do significado passando a significar por si mesmo, tornando-se num “objeto significante”. Deste modo, através da sua descontextualização, as frases, na sua inter-relação com a imagem que se vai transformando, funcionam como uma espécie de ready-made, adquirindo uma autonomia poética que vale por si, podendo cada uma delas ser apreciada precisamente como uma paisagem, oferecendo, assim, num segundo grau, um equivalente textual à imagem em baixo.
Forces Mental Health and Detail from Indoors (fig. 5 and 6). Este vídeo é constituído por filmagens de um ramo de flores de plástico, realizadas com uma câmara fixa, sobrepostas por uma sucessão de frases relativas às atitudes face à saúde mental em Cabo Verde. A imagem é a preto e branco, tornando-se, por vezes, gradualmente transparente, exceto por um momento em que ganha a cor da flor, pontualmente, por um infra-frame quase impercetível.
As filmagens foram realizadas no interior da casa da mãe do artista, onde passou a sua infância: as flores de plástico, constantemente arranjadas, o mobiliário, aquilo que o artista recorda que “interpretava na juventude como a obsessão (…) de tentar criar um ambiente doméstico perfeito como refúgio a um contexto social por vezes hostil” . As frases foram baseadas em dois ensaios académicos anónimos: um sobre as atitudes em relação à doença mental em Cabo Verde e outro sobre o estado da democracia no arquipélago e foram entretecidas pelo artista do ponto de vista de um sujeito desorientado que confunde Cabo Verde e Portugal, justapondo os dois contextos e introduzindo detalhes da história de Portugal. O texto está traduzido em português e em inglês, reiterando o hiato sempre existente entre as traduções – sendo a tradução em inglês “mais direta, menos emocional” – salientando a ficcionalidade da fronteira entre “tradução” e “original” – já patente em Ex-colonial landscape with Different Filters – e reiterada no título da vídeo-instalação “Subtitulizar”.
Em Cabo Verde, de forma análoga a outras ilhas que foram colonizadas, como São Tomé e Príncipe, as ilhas Maurícias ou as Antilhas, a crioulização surgiu de um processo de subalternização, de violência e de internalização dos mecanismos de reprodução da hierarquia social europeia. Estabelecia-se assim um habitus social, a nível linguístico, uma relação diglóssica, i. é, uma relação de desigualdade de estatuto entre uma ou mais variedades da mesma língua, na qual a língua materna é comparada a um padrão exterior, o português, sendo sempre, neste sentido, estranha a si mesma. Como refere o artista numa entrevista, “apesar de falar o crioulo local, por ter crescido nos subúrbios de Lisboa, era e sou também no Mindelo visto como algo exterior. Possivelmente, essa exterioridade permitiu-me perceber que a elite que passa a liderar a ex-colónia acaba por reproduzir narrativas e processos de poder coloniais” . Mas, a cisão do povo colonizado cabo-verdiano acaba por ser reduplicada numa cisão interna no modo como as pessoas que fazem parte da diáspora se tentam traduzir a si mesmas através de uma linguagem que nunca é exatamente a sua.
Geralmente, a casa funciona como uma coordenada a partir da qual nos posicionamos no mundo, sendo, segundo Agnes Helles, “uma das poucas constantes da condição humana”. O seu significado é fluído e universal carregando uma conotação simbólica e afetiva ligada à família, à cultura, à nação e ao corpo no seu sentido literal e/ou metafórico, enquanto conjunto de elementos que formam um todo. Mas, a casa existe apenas através da relação com os outros. Os objetos que nós arranjamos dentro dela estão imbuídos de memórias. É um sítio em que podemos manter a ilusão do nosso controlo sobre as coisas, reorganizando as memórias do exterior numa narrativa pessoal. Como refere Theano Terkenli,
“The idea of home is broad and profoundly symbolic, a parameter that infiltrates every relationship between humans and the environment as humans reach out to the unknown and return to the known. Every activity or experience in which people engage to some degree affects their geographical delineation of home.”
Num ambiente hostil, a casa oferece-nos um refúgio onde trazemos fragmentos do mundo exterior e construímos a nossa identidade evitando soçobrar na depressão ou na melancolia, formas de “doença mental”. A casa de Forces Mental Health and Detail from Indoors – assim como em One Hundred and Two Houses on Fire - está minada a sensação de segurança: as flores de plástico simbolizam a procura da preservação de algo que já não existe. Outra forma de “queda controlada”, metáfora do constante autocontrolo desenvolvido num ambiente em que nunca se está “em sua casa”, nem mesmo quando se volta ao local de nascimento, experimentando a sensação de claustrofobia e de desadaptação de alguém que se situa entre as paredes de duas culturas, o alheamento dum corpo sem casa onde se refugiar. Daí que, como notou Destourelles numa entrevista “o indivíduo da diáspora está muito mais sensível à questão da doença mental. Para este, a questão da casa é muito problemática”.
Enquanto figura de interstício, a doença mental é geralmente receada na comunidade por não ser de fácil classificação e gerar o desconforto do desconhecido. A antropóloga Mary Douglas (1921-2007) observou que, em diferentes culturas, os seres ambíguos, enquanto figuras da desordem, são, simultaneamente, símbolo de poder e de perigo. A antropóloga distingue dois tipos de poder: o que age sobre o psiquismo do sujeito da ação, como o mau-olhado ou a feitiçaria, ou o que age no exterior, como maldições, sortilégios, etc. . A noção de perigo está relacionada com a sua associação a um poder controlado ou a um poder incontrolado. Os que o exercem deliberadamente e que estão no âmbito de postos de autoridade, são benéficos; os que desempenham papéis ambíguos, são perigosos pois “estar à margem significa estar em ligação com o perigo, tocar numa fonte de poder”. O perigo surge, sobretudo, quando estas forças da desordem não estão nas mãos de pessoas colocadas “na parte explícita da estrutura [que] exercem poderes que conscientemente controlam” . O maior perigo é representado por figuras “numa posição intersticial” e que, simultaneamente, não têm o controle da razão, nesse caso o perigo sendo duplo: a desordem pode irromper do exterior e dos interstícios do interior da sociedade. Este é o caso das pessoas que sofrem de “cabeça cansada”, expressão crioula que significa “loucura”. Poderemos considerar que estas refletem uma situação de conflito e dominação precisamente por se encontrarem numa situação intersticial e não terem o domínio da razão.
Bhabha notou que “estar estranho ao lar” (unhomed) não é estar sem casa (homeless) nem pode ser acomodado facilmente na divisão familiar da vida social entre a esfera pública e privada” . Nesse deslocamento, “as fronteiras entre a casa e o mundo tornam-se confusas e inquietantemente o privado e o público tornam-se uma parte de si mesmos, impondo uma visão tão dividida quanto desorientadora” . A casa abre-se ao mundo e este torna-se inquietante: algo estranhamente privado e “lá-fora”. O corpo diaspórico está, assim, em casa em todo o lado e, simultaneamente, em nenhum lado.
Há, deste modo, uma certa esquizofrenia dos que vivem na diáspora, sempre “entre”, no sentido de dividir o eu interior em vários eus que poderão habitar, como estranhos, a casa – o corpo. Ao mesmo tempo, esta impossibilidade de perfeição da cópia ou da tradução torna fluídas as fronteiras entre “original” e “tradução”. Esta última, uma vez que é uma tentativa de reprodução em novas topografias, torna-se, assim, sempre um exercício de ressignificação, como notou Boris Groys,
“..no espaço profano, diaspórico, estamos envolvidos num jogo infinito de diferenças que, pelo menos à primeira vista, desconstrói a oposição entre o original e a cópia, oferecendo a oportunidade de produzir originais através da cópia. (…) Uma cópia perfeita é uma impossibilidade, de modo que sempre existe a possibilidade de ressignificar o processo de reprodução como um processo de produção.”
No fluxo incessante de traduções de traduções, a língua materna torna-se numa tradução sem “original”, espelhada na língua do país de adoção. O hiato existente entre as diferentes traduções dá lugar a um terceiro espaço, constituído não por um composto de elementos puros, mas como um entrelaçamento, ao nível da cultura, de elementos que estão disponíveis para a reinterpretação, recriando uma cultura distinta numa situação de dominação e conflito, onde podem, contudo, surgir novas recombinações do existente.
Em Forces Mental Health and Detail from Indoors, apesar de se tratar de vídeo, a imagem é estática mudando apenas a tonalidade, tornando-se ténue através da aplicação de um filtro branco. A nostalgia associada à imagem a preto e branco é interrompida subitamente através da inserção de um infra-frame que origina uma imagem-erro, ou seja uma imagem que foca o que escapa à nossa consciência. Como notou David Rambo,
“uma estética pós-cinemática tende a interrogar a múltipla criação mediada de sensações humanamente percecionáveis através do foco nas técnicas que escapam à consciência fenomenológico”.
Se a imagem-tempo, como a analisou Deleuze, ao desarticular o movimento do tempo, abre a memória ao pensamento, a imagem-erro, “explora um espaço intermédio alternativo no próprio movimento do pensamento que procura o seu terreno virtual anterior à subordinação do tempo à relação material, com o fim de apagar a consciência temporal da conversão técnica e cronológica – e, deste modo, operando a ocultação – do “tempo no seu estado puro”. Assim, cria um curto-circuito pois o pensamento não consegue diluir a memória amorfa, não trabalhada pelo consciente. O pensamento procura a sua “casa”, a memória de onde proveio, e não a consegue alcançar. Vendo-se, assim, impedido de apagar a sua submissão ao tempo cronológico, inicia um percurso errático, tornando-se numa imagem erro, uma imagem nómada. Torna-se patente, deste modo, a impossibilidade do retorno da ilusão de uma coincidência entre o mundo percecionado e o universo consciente.
Considerações finais
A partir da sua experiência da diáspora, na vídeo-instalação Subtitulizar, 2019, Destourelles aborda questões como a reversibilidade entre a tradução e o texto, a perceção e a realidade, o presente e o passado, o eu e o outro, assim como a impossibilidade da reconstrução da origem do corpo diaspórico, explorando o hiato poético criado pela contígua transladação de uma linha de pensamento para diferentes contextos – muitas vezes contraditórios – compelindo o observador a reconstruir o seu sentido no reverso do texto e da imagem.
Irineu Destourelles, dá corpo ao próprio sentimento da diáspora, ao estar-entre, ao discurso dialógico que foi criado pelo colonialismo, à ambiguidade inerente no estar sempre onde não se está, condição dos sem-abrigo pós-modernos, um corpo que faz do mundo a sua casa, habitando a estranheza trazida pela lucidez de um olhar de fora. Deste modo, realça como, na diáspora, a existência entre culturas diferentes cria um desdobramento na psique do indivíduo mas também o enriquece. A condição de viver entre-lugares é, assim, simultaneamente uma abertura ao mundo e uma separação deste enquanto ser marcado pela diferença.
Publicado originalmente em Nolasco, A. (2023). ‘Diasporic Bodies. Irineu Destourelles Videoart’,
Nka: Journal of Contemporary African Art, 52, 84-95. DOI: 10.1215/10757163-10435022