Entrevista com Irineu Destourelles
‘Verifebura: Prática Colonial e Consciência Pós-colonial’
Esta entrevista procura refletir sobre a imagem na obra de Irineu Destourelles e o modo como pode constituir uma estratégia crítica ao regime de distribuição do poder vigente. A própria indeterminação, as falhas técnicas (Review, 2014), as hesitações dos gestos (Visitor, 2014), surgem aqui como possíveis espaços de partilha de consentimentos. A migração cria uma distância física ao mesmo tempo que permite um olhar crítico. Como podem, neste contexto, a ironia e a arte serem modos alternativos de vivência? Dada a falência das narrativas, poderá a imagem fomentar a identidade?
Irineu Destourelles nasceu em Cabo Verde e cresceu em Lisboa a partir dos 4 anos, estudou na Willem de Kooning Akademie, em Roterdão e na Central St. Martins College of Art and Design, em Londres. Tem participado em exposições e exibido os seus vídeos, entre outras, na Casa África, em Las Palmas, na Fondazione Giorgio Cini, em Veneza, Hangar Bicocca, em Milão, no festival Transmediale, em Berlim. Entre 2002 e 2009 trabalhou no Museu Nacional Marítimo, em Londres, uma instituição com uma ampla coleção de material colonial e que, na altura, mantinha um programa de artes contemporâneas. Posteriormente, foi diretor e professor no M_EIA, a primeira instituição de ensino superior em Cabo Verde, dedicada ao ensino das artes e design. Em 2014, adotou o apelido Destourelles, proveniente de uma personagem crioula da ilha de Martinica, que teve uma relação paradoxal com narrativas coloniais, simbolicamente aproximado às relações ambíguas que o crioulo cabo-verdiano desenvolveu com o colonialismo português, centrais na sua obra artística. Irineu recorre a diversos media, desde o vídeo à pintura, refletindo sobre as questões da identidade e da linguagem e do seu imbricamento nas narrativas pós-coloniais. Alguns dos seus trabalhos, como, por exemplo, New Words for Mindelo’s Urban Creole, 2014, abordam o processo de formação de identidade no contexto do tecido urbano de Mindelo, Cabo Verde, e o entrelaçamento de ícones de África e do Ocidente na cidadania em Cabo Verde.
No contexto ibérico, Cabo Verde, arquipélago desabitado, foi colonizado por donatários e colonos portugueses a partir de 1462, e, desde cedo, sustentado por mão-de-obra escrava, oriunda da costa africana. No séc. XVI, tornou-se um importante entreposto do comércio negreiro para a América Central e Brasil. Para além da sanção da missão evangelizadora, esta situação era agravada, nas ilhas atlânticas, pela distância da metrópole e pelo isolamento das ilhas que tornavam impunes os maiores atos de abuso e de crueldade. A violência do comércio do corpo negro pelo homem branco, da imigração forçada e do consequente desenraizamento, constituiu para as ilhas atlânticas colonizadas um trauma original.
A entrevista com Destourelles oferece um ponto de reflexão sobre as ambiguidades da dialética entre o eu e o outro, o dentro e o fora, o colonizador e o colonizado e sobre a sua atividade artística através de um olhar oscilante proporcionado pela diáspora. Neste contexto, Destourelles comenta o modo como os processos de domínio, assentes nos estereótipos dicotómicos, tendem a perpetuar-se assumindo novas matizes e o modo como estes são interrogados através do seu trabalho artístico. O poder da linguagem e a linguagem do poder, e o seu papel na perpetuação dessas narrativas estão presentes, por exemplo, em Review (2014), New words for Mindelo’s Urban Creole (2014), ou 25 Profiles (2015), abordados também nesta entrevista. Mas, em lugar de se colocar numa posição de crítica unilateral, Destourelles opta pelos interstícios dessas dicotomias para tornar visíveis, os gestos, as fissuras que permitem levantar o véu sobre a riqueza que existe no não dito, no manancial pré-reflexivo. Aí, emergem as diferenças subtis através das quais as narrativas se reinventam (embora herdando estruturas clássicas), como nos gestos das mãos hesitantes das personagens e nas pausas hesitantes da narradora, em Visitor, por exemplo, que, isoladas como fragmento, nos sublinham o corpo.
A sua língua é o crioulo, o qual, enquanto língua matriz, se encontra mais perto do orgânico e do gesto vital. O crioulo emergiu do hibridismo cultural e do desejo de criar pontes entre o colonizador e as populações colonizadas e entre estas, dado que provinham, frequentemente, de origens diversas. Sedimenta uma hierarquia social, baseada em dicotomias puro/impuro, estrangeiro (dominador) /da terra, na qual o branco dominava, constituindo-se em objeto de desejo e fascínio. No entanto, o crioulo assumiu nuances diferentes no contexto insular atlântico. O crioulo cabo-verdiano tem em comum com o crioulo hispânico das Caraíbas o facto de assentarem em categorias étnicas e sociais que estruturam a sociedade e o pensamento, mas diferem pelo facto do crioulo nas Caraíbas surgir de uma economia de plantação, enquanto em Cabo Verde esteve desde logo ligada à formação do território. Por sua vez, no contexto atlântico hispano, por exemplo, o crioulo é associado ao branco nascido nas Índias e a uma classe privilegiada que assumiu o discurso da crioulização como forma de se legitimar. Destourelles aborda aqui, assim, a especificidade de um fenómeno comum às ilhas atlânticas, partilhando com estas uma história marcada pela colonização, pela mão-de-obra escrava, pelo crioulo, a miscigenação, a diáspora e a diversidade das suas reinvenções.
Sendo as ilhas atlânticas marcadas, historicamente, pelo eixo da rota dos escravos e pela exploração de mão-de-obra humana e de plantação do açúcar, como é passado resgatado no sentido de reescrever a história, através da arte?
Após a morte do Rei Henrique IV de Castela em 1474, a coroa espanhola foi contestada entre a sua meia irmã Isabel I de Castela, casada com o Rei Fernando II de Aragão e a filha do Rei, Joana de Trastâmara, mulher do Rei Afonso V de Portugal que procurou defender, por via das armas, o direito desta o trono. Por esta altura, as explorações portuguesas na costa da Guiné com o comércio de outro e escravos dava imensos lucros a Coroa Portuguesa, e, para além da guerra de sucessão, ambos os reinos estavam também envolvidos numa guerra marítima pelo controlo do Atlântico que a Coroa Portuguesa acabou por ganhar. O Tratado de Alcáçovas, que estabelece o controlo das Ilhas Canárias pelo Reino de Castela, garante à Coroa Portuguesa o controlo do que doravante seria descoberto e conquistado abaixo destas, no Atlântico. Este tratado, que se circunscreve ao domínio do Atlântico, precede o Tratado de Tordesilhas de 1494. Mais tarde, na Conferência de Berlim, de 1884, por motivos de poder, prestígio e lucro, a África foi dividida por entre as potências industriais e coloniais europeias e países coloniais ‘subalternos’, como Portugal. Estas partilhas foram legitimadas por narrativas centrais na mente ‘logocêntrica’ europeia, onde o europeu acaba por ser o humano em presença: segundo Descartes, o animal não tem alma; os africanos segundo o pensamento católico de então, só adquiriam a alma depois de batizados; segundo John Stuart Mill, a responsabilidade ‘teórica’ do civilizado era a de liderar e civilizar, por via da força, aquele que não era considerado civilizado.
A ilha de Santiago é a primeira ilha do arquipélago de Cabo Verde a ser povoada pelos portugueses e emerge da ambição de desenvolver um espaço ‘civilizado’ controlado pela Coroa, convenientemente próximo da volátil costa africana, que fosse um ponto de estabilidade para tráfico de escravos. Esta ilha, tal como as ilhas das Canárias, possibilitou a agricultura e a germinação do conceito de plantação colonial. Na ilha de Santiago emerge uma sociedade com base escravocrata em que o homem ocidental e a mulher da África Ocidental se relacionam e se reproduzem. O crioulo, língua ou dialeto conforme os diferentes pontos de vista, emerge da necessidade de gentes com línguas diferentes – africanos e europeus - que se encontram num espaço circunscrito e em relações de dependência, de comunicarem entre si. O crioulo enquanto ser, sujeito (e objeto material), emerge do desejo carnal do homem branco, na ausência da mulher branca (justificam os relatos), sobre a mulher africana escrava… Naturalmente, por vezes esse desejo deve ter sido mútuo, devido ao poder que o homem branco exercia e as narrativas coloniais que retratam o europeu como superior.
O Atlântico possibilitou ao descobridor português empregar as práticas cruéis vigentes nas sociedades europeias – sendo a Inquisição o símbolo disso no contexto ibérico. Se a prática da tortura física e mental do indivíduo não tinha limites em Portugal, então eram bárbaras quando aplicadas a um ser sem alma, sem civilização, num contexto distante. O processo colonial nas diversas ilhas atlânticas foi diferente mas similar no modo brutal de domínio e na forma como estabeleceu hierarquias raciais, linguísticas e religiosas. São pertinentes os conceitos de memória coletiva e de trauma coletivo. As sociedades escravocratas, pela sua própria natureza brutal, carregam traumas. O passado nunca poderá ser factual ou verdadeiro, porque pela natureza do poder em si, ele é o resultado da coexistência de discursos institucionais e populares que competem pela verdade. O passado é mutável consoante os interesses de poder presentes, com as suas ânsias e ambições projetadas para o futuro. Embora o possa fazer, mais do que resgatar o passado, fascinam-me as manifestações no presente ( pós-colonial, democrático e multicultural) de discursos que no passado possibilitaram hierarquias e crueldade. Interessa-me, também, explorar os espaços entre os diferentes discursos que competem pela verdade no presente de modo a sublinhar a forma como os discursos são interdependentes. Isto em si torna-se mais interessante quando aquele que reproduz o discurso no presente é, precisamente, aquele que, no passado foi vitimado pelo discurso que agora reproduz; ou quando o discurso é reproduzido por aquele que ideológica e eticamente se justifica acima do discurso que reproduz. A minha alusão inicial ao tratado de Alcáçovas sublinha que a costa africana e os espaços insulares do Atlântico que foram habitados pelos europeus e escravos possuem um passado comum traumático que assombra… Que faz com os sujeitos das ilhas atlânticas (como eu) talvez partilhem um medo irracional (sedimentado ao longo de séculos de narrativas dialéticas) de tornar-se e ser animal, de tornar-se e ser objeto face aos sistemas de poder institucionalizados, por aquele que tem vindo a construiu-se como Sujeito por definição, em oposição ao animal e ao objeto.
Como te inseres, enquanto artista cabo-verdiano, no contexto da cena artística atlântica? Que pontes gostarias de estabelecer?
A cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, que é o pano de fundo temático de alguns do meus vídeos, é uma ilha que deve o seu desenvolvimento a interesses económicos ingleses que a utilizaram como ponto de reabastecimento de carvão para veleiros, entre meados do século XIX a inícios do século XX. Com a influência inglesa e habitantes maioritariamente crioulos ou mestiços, a ilha foi considerada racial e culturalmente mais ocidental, menos africana do que a ilha de Santiago e por isso as autoridades portugueses tentaram sem sucesso mudar a capital do arquipélago para o Mindelo. O Regime do Estado Novo instituiu uma ditadura em Portugal cujo processo começou em 1928 e culminou com a Revolução de 25 de Abril de 1974. O regime defendia uma política colonial de salvaguarda dos territórios coloniais a todo custo que culminou com a guerra colonial em Angola, Guiné-Bissau, e Moçambique durante os anos 60 até a revolução. O colonialismo do Estado Novo reforçava nas colónias africanas as diferenças entre o africano, o crioulo ou mestiço e o europeu, patente na sociedade mindelense. O Ato Colonial de 1930 sublinha uma preocupação em legalizar distinções raciais e culturais. Exemplo disso é a posterior diferenciação entre o africano colonizado assimilado e não assimilado, entre aquele que tinha adotado os costumes, língua portuguesa e religião católica e aquele que, alegadamente, por não poder ou por não querer, assim não o fez. No contexto colonial, o indivíduo de pele mais clara gozava de privilégios, como o de ser mais cobiçado como objeto romântico e sexual. Para uma mulher de pele considerada não branca o facto de ter um filho ou filha de pele mais clara, legítimo/a ou ilegítimo/a, com um homem branco casado ou não, podia trazer maior status social. Ilustrativo de hierarquias ‘raciais’ patentes no contexto crioulo cabo-verdiano era o facto de qualquer detalhe físico que pudesse aludir a parentagem europeia ser valorizado, e o oposto desvalorizado. As relações complexas entre o colonizado e colonizador, que se expressam através do desejo, da repulsa e do medo, desafiam a racionalidade, daí que Homi K. Bhabha não tenha resistido a utilizar o modelo psicanalítico freudiano e lacaniano para tentar encontrar sentido do modo de relações colonizado/colonizador.
Cresci em Lisboa durante os anos 80 e 90, que desde o Ultimato Britânico de 1890 (segundo o qual os ingleses recolonizaram os territórios coloniais portugueses que ligavam Angola a Moçambique) veio a tornar-se cada vez mais um contexto nas margens. As minhas memórias são vagas, mas lembro-me dos slogans de esquerda, das manifestações, das greves, da marginalização progressiva dos capitães de Abril que lideraram a Revolução de 1974, da entrada para a Comunidade Europeia, da ‘inauguração’ das torres das Amoreiras, dos vídeos explícitos do Tomas Taveira que utilizava a sua posição privilegiada numa sociedade patriarcal para seduzir ou coagir, do Agostinho da Silva que defendia que Portugal deveria virar as costas à Europa e que o futuro do país estava no desenvolvimento da comunidade dos países de Língua Portuguesa… Lembro-me de detalhes num contexto em que eu era definido como ‘o outro’, como africano, como cabo-verdiano, como preto, e por vezes como ‘escarumba’… E portanto aprendi, também, a desgostar daquilo que alegadamente representava. Pelas minhas andanças pelo norte da Europa, entre 1995 e 1998 e entre 2000 e 2009, revisitei que a representação negativa do indivíduo externo alimenta as lutas entre diferentes elites do grupo dominante pelo acesso ao poder. Em 2009, surgiu a oportunidade de ir trabalhar para Cabo Verde como professor na primeira escola superior de artes e design das ilhas. Isso despoleta em mim o processo de analisar várias oposições que carregava comigo desde sempre, e que tinham um impacto na forma como sentia contextos. Dicotomias (branco/preto, europeu/africano, civilizado/selvagem, rico/pobre, masculino/feminino, etc.) que pesavam em mim sem as seguir… Mas que estavam sempre a segredar-me. I. é., percebi que o meu discurso racional era muitas vezes corrompido por um discurso subconsciente que eu tinha assimilado desde a infância na sociedade portuguesa e também, até certo ponto, através dos meus pais que cresceram sob o colonialismo português que respeitava a pele mais clara e a língua portuguesa (da elite) da metrópole. Apesar de falar o crioulo local, por ter crescido nos subúrbios de Lisboa, era e sou também no Mindelo visto como algo exterior. Possivelmente, essa exterioridade permitiu-me perceber que a elite que passa a liderar a ex-colónia acaba por reproduzir narrativas e processos de poder coloniais, como Fanon refere. Cabo Verde é um país modelo no contexto africano no que respeita ao índice democrático, crescimento económico, e acessos a educação e saúde e isso faz com que a reprodução de narrativas coloniais seja por vezes subtil, muito por debaixo da superfície de práticas institucionais e relações sociais. A justaposição de narrativas coloniais com narrativas nacionalistas no espaço de Cabo Verde é um exemplo do processo dissociativo patente no espaço ex-colonial, em contraste com a paranoia presente na ex-metrópole - os medos da invasão e do ter que responder pelos excessos e ganancia do passado colonial… Quando abordo o Atlântico, faço-o com o intuito de explorar as vozes que segredam na consciência cabo-verdiana crioula, que acomoda imensos paradoxos inscritos num passado colonial complexo em que as relações oprimido/opressor e colonizado/colonizador (em que por vezes o ‘mestre’, com o filho crioulo pelo meio, deve ter dependido mais do ‘escravo’ do que vice-versa) nunca foram lineares. Um desvio, talvez irrelevante, lembro-me de Fanon, quando escreve em ‘Peau Noire, Masques Blancs’ (1952) que os seus conterrâneos crioulos de Martinica (talvez respondendo duplamente a trauma e a fantasia coletivas), assim que chegavam por via marítima a França, a um porto, pela primeira vez, um ritual inevitável era pagar por sexo a uma prostituta branca e francesa.
Em vários territórios do Atlântico que foram colonizados pelos europeus criou-se uma sociedade marcada por duas línguas: a falada pelos colonizadores, a língua superestrato - como referes no teu texto “Perímetro < diámetro. geometrización, criollo, cuerpo y aglutinación” - e o crioulo, considerada, segundo o critério dos primeiros, com um ruído ou uma língua defeituosa, gramaticalmente incorreta. Nesse texto falas do crioulo como uma língua corpórea: “Em crioulo, o corpo também é linguagem viva. Em crioulo, o corpo é, definitivamente, onde se escreve e quem escreve […] A coexistência entre crioulo e Língua Formal explora os limites do Dentro e Fora. O Ato de Falar, num contexto em que existe uma Língua substrato e uma outra Língua superestrato, iminentemente pressupõem um potencial criativo de transgressão inerente no uso de ambas as Línguas dependentemente do contexto de interação social.” Na Fenomenologia da Perceção, 1945, Merleau-Ponty valoriza a experiência pré-reflexiva como um fenómeno em que o sujeito e o objeto se fundem. Essa visão mais corporizada da experiência estética parece-te, potencialmente, ter um caráter redentório na afirmação da identidade cabo-verdiana no sentido em que abre uma fissura nesse “Fora”?
O texto a que te referes emerge precisamente no momento em que percebi, que narrativas coloniais estavam a ser reproduzidas em determinados contextos públicos, na política e na academia cabo-verdiana… Onde grupos com interesses diferentes, por exemplo, recorrem a peritos europeus para legitimar as suas conclusões académicas e viabilidade de projetos com fins políticos, e fazem discursos e desenvolvem projetos em prol de uma modernização de matriz ocidental que por vezes não responde às necessidades e recursos locais. A língua é um elemento importante nestes jogos de poder e é utilizada pelas diferentes elites no processo de legitimar privilégios. Um dia, por uma razão ou por outra, inexplicavelmente desmaiei (talvez pelo consumo socialmente coagido de grogue de baixa-qualidade feito com açúcar refinado, de vegetais com alto teor de pesticidas, de bactérias na água desalinhada…) e levaram-me a um serviço médico de urgência. Assim que cheguei ao serviço, fui atendido atenciosamente por um médico que falou comigo em crioulo, e naturalmente, respondi-lhe em crioulo. Uns dias depois de receber alta voltei para fazer o seguimento com o mesmo médico e ao entrar no consultório dele, deparo-me com o seu diploma atribuído por uma prestigiada universidade de Lisboa pendurado em lugar de destaque. Dirigi-me ao médico em crioulo, e este ignora-me como se eu não tivesse dito nada e começa a interação do zero, em português formal. Um episódio que exemplifica a forma como o crioulo e o português na sociedade são utilizados por determinada classe como meio para atingir objetivos e estabelecer relações de poder. A intenção ao escrever o texto, foi a de fazer uma crítica à forma como o cabo-verdiano de elite decidiu não apropriar a língua portuguesa, mantendo uma diferença clara entre o português e o crioulo de modo a que a relação entre estas continuasse a alimentar processos de poder, como foi o caso durante o colonialismo.
Segundo Anna Wierzbicka, línguas diferentes estão ligadas a modos diferentes de pensar e de sentir. Para além disso, a Língua não é somente o veículo para expressar sentimentos mas determina o que se sente, e, como tal, o indivíduo bilingue está sujeito ao processo de ‘code-switching’, onde ele pensa e sente consoante a língua que fala. No contexto cabo-verdiano o crioulo é a língua materna e o português, a língua superestrato, é uma Língua que o cabo-verdiano geralmente adquire após o crioulo. É a Língua da lei, da instrução, e do governo. É a Língua que comanda a autoridade e dá acesso e legitima o exercício do poder. Esta Língua superestrato que policia e ordena, entretanto, para o cidadão pós-colonial de elite minimiza o terror de ser-se representado como objeto, como animal… Por um outro… Porque reproduz esse outro. A Língua substrato, neste caso o crioulo, condiciona a reflexividade. Porque fornece os parâmetros segundo os quais a reflexividade se processa. Para aquele que é fluente em ambas, superestrato e substrato, decorre permanentemente uma negociação interna entre a pré-reflexividade, alimentada pelo substrato, e a realidade do superestrato. O ‘fora’ poderia ser um dinâmica para além desta, onde a pré-reflexividade do substrato apropria e manipula sem pudor o superestrato, o que as comunidades rurais por exemplo fazem, com o acesso que tem da Língua portuguesa através de programas de televisão portugueses e brasileiros. O superestrato é corrompido e adaptado continuamente ao crioulo pelas classes mais baixas… Mas com pudor porque aceitam que tal é transgressor e não uma necessidade… O oposto, o substrato ser adaptado ao superestrato é problemático… Como o movimento Cabo-verdiano modernista dos anos 1930 e 1940 demonstrou com a tentativa de forjar um ‘português crioulo’ na literatura com a introdução de palavras, expressões, e de um modo de pensar crioulo por entre o texto em português. Isto durante o regime colonial do Estado Novo que tinha a pureza da língua portuguesa, a língua de Bocage e de Camões, como a essência da nação.
A imbricação entre a imagem e a linguagem surge frequentemente no teu trabalho. As questões da linguagem são abordadas de forma explícita em Review, New words for Mindelo´s Urban Creole, ou 25 Profiles. Nesses trabalhos questionas, parece-me, as questões da linguagem nas relações de poder, estabelecidas por quem exerce o poder sobre a imagem e sobre os discursos que a legitimam.
Segundo Peirce, que estudou os sistema de signos em geral, nos quais se insere a imagem, esta representa, através de um sistema de triangulação cujos vértices são formados pelo significante - a face manifesta do signo -, pelo recetor e pelo contexto cultural, o conjunto de códigos que permite a partilha da decifração e a geração dos discursos a partir da imagem (ou vice-versa). É esta partilha de valores, crenças, gestos e costumes que forma a identidade cultural de um povo. Atualmente, não há consenso sobre estes valores, até porque, em particular, nas nações ainda jovens, depois de terem sofrido a colonização, a crítica veio a desconstruir os processos identitários que tinham sido inculcados, ideologicamente, pelo povo dominador. Em que medida é que inseres o teu trabalho neste linha de desconstrução?
No caso das ilhas de Cabo Verde, pelo facto de ser um arquipélago em que o mar isola exacerbando diferenças a nível de costumes, o crioulo, apesar de variar de ilha para ilha, é considerado por núcleos influentes de intelectuais e políticos locais como um denominador identitário comum por excelência. Estes trabalham para fazer com que o crioulo possa ser institucionalizado como uma variante que sirva de modelo, tal como o que acontece com a língua superestrato. Esta tentativa de criar um modelo, de institucionalizar, é uma outra violência, é uma outra forma de criar hierarquias. Neste momento existem tantos crioulos quantas ilhas habitadas que diferem entre si ao ponto de por vezes a comunicação entre habitantes de duas ilhas diferentes com sotaques locais característicos ser feita com dificuldade. As narrativas coloniais têm vindo a ser desconstruídas, um processo que, por exemplo, começou com Antero de Quental durante a monarquia, com o Partido Comunista Português durante a ditadura, e com Amílcar Cabral durante a Guerra Colonial. O meu ponto é que, apesar das críticas e refutações, uma narrativa, uma vez posta a circular, torna-se um ser possivelmente eterno… Acredito na posição ‘derridiana’ que não existem quebras epistemológicas, as narrativas continuam com outras vestimentas: os padrões, as cores, os cortes das novas vestimentas… Interessam-me.
Os três vídeos que referes questionam, segundo premissas diferentes, precisamente a linguagem enquanto reflexão de uma per-reflexividade contaminada por hierarquias raciais e linguísticas coloniais. New Words for Mindelo´s Urban Creole (2014), um vídeo só com texto num fundo branco que reflete o meu namoro com a tradição minimalista, é um vídeo que tem como base definições de palavras ‘imaginárias’ no vocabulário crioulo da ilha de São Vicente… Uma ilha que desde 1990 com a queda do partido de regime único de raízes marxistas, tal como as outras ilhas do arquipélago, tem vindo a adaptar-se à globalização e à democracia. As palavras que inventei, traduzem as consequências desse processo e estão de certa forma relacionadas com o passado colonial da ilha… Isto mostra a forma como num contexto presente, o colonial ainda se manifesta por vezes sem a língua crioula ter uma expressão para definir determinados padrões de comportamentos sociais. Review (2014) tem como imagem de fundo um plano que filmei a partir de uma varanda de hotel na cidade de Acra, no Gana, depois de ter passado por Dacar e de ter visitado a Bienal de Dacar no Museu IFAN de Artes Africanas. Na altura, houve a possibilidade de eu escrever um artigo para o website de revista europeia sobre a cidade de Dacar e sobre a bienal…que depois nunca se materializou. Mas fiz aquilo que seria esboço emocional do artigo… Onde tento fazer referência à questão da legitimidade da arte contemporânea africana em apropriar a tradição modernista ocidental e à forma como a arte africana é ‘traduzida’ e `interpretada’ no ocidente… O som que acompanha o texto em inglês é precisamente a leitura desse texto feita através de um software digital que ao ler o texto não consegue pronunciar as palavras de origem africana acabando por articular sons incompreensíveis. 25 Profiles (2015) foi realizado para uma exposição em Berlim sobre o tema sexo…E durante o período de pesquisa deparei-me com um website pornográfico americano que tinha como especialidade o sexo inter-racial entre homens negros e mulheres brancas… E ao ler o ‘marketing’ dos produtos, como por exemplo filmes, notei que a linguagem utilizada tinha como base estereótipos raciais e projetavam um desejo latente de violência física do homem negro sobre o que a fisicamente frágil e bonita mulher branca poderia representar. O vídeo é o resultado da apropriação dos textos que provém das descrições profissionais das atrizes, em que eu deixo espaços em branco por entre as frases apropriadas para serem completados pela audiência de forma a levar a audiência a questionar as suas relações com os estereótipos reproduzidos.
No desenvolver da tua exposição Autoestrangeirismo, em 2014, qual o papel de Maueue, enquanto representação do negro fiel ao colonizador, apropriada, em primeiro lugar, pelo realizador do filme Imitante, 1953, Jorge Brum de Castro, e, posteriormente, reapropriada por ti?
O filme Chaimite foi produzido para promover o projeto colonial do Estado Novo e aliciar as comunidades rurais a considerar uma vida em África como um serviço à pátria e para o bem da terra africana. O enredo do filme desenvolve-se em redor de acontecimentos reais, as Guerras de Pacificação entre o exército português e o povo Vatua, liderado pelo Régulo ou Rei Gungunhana, nos finais do século XIX, em Moçambique. O filme inicia-se com um ataque por parte dos indígenas a uma comunidade pacífica de agricultores, colonos portugueses. A mãe do Gungunhana, ao saber que o ataque estava iminente incumbe um indígena, Maueu de ir avisar os colonos. Este avisa o português José, que fala a língua indígena local. José, por sua vez avisa Rosa e Maria, tia e sobrinha que vivem sozinhas numa quinta. Ambas fogem com a empregada indígena, Fátima, para a cidade. Na cidade, ficam hospedadas numa pensão e aí encontramos um dos personagens principais do filme, Daniel, cujo sonho é o ideal da cultura portuguesa popular de então, o de encontrar uma mulher fiel e trabalhadora, que será Maria, e ter uma família e uma casa no mato à beira de um riacho. O Capitão Mouzinho de Albuquerque chega à cidade de Maputo ao comando de tropas com o objetivo de por termo à rebelião dos indígenas e vassalos de Gungunhana. O Gungunhana é construído como a antítese do herói do filme, o promovido Major Mouzinho de Albuquerque que, eventualmente, o captura. Para além de Gungunhana existem quatro personagens colonizados que se destacam, Maueue, fiel ao colonizador, Fixe, ao serviço do aparelho colonial mas que é desonesto e trai o colonizador, Matanga, que conspira ativamente para a queda do sistema colonial e que mata Maueue, e Fátima que está ‘sempre’ presente no pano de fundo, sem nunca falar. Tanto Maueue com os outros personagens colonizados são pontos de partida para uma reflexão sobre o posicionamento do sujeito pós-colonial face às tais narrativas velhas com novas vestimentas. Como resultado, surgem algumas pinturas e um vídeo, Vassalagem Subconsciente, só com texto como base, que reproduz o contrato de vassalagem que as autoridades coloniais portuguesas forçaram o Régulo Gungunhana a assinar, e que ‘apropriava’ os vastos recursos naturais do espaço colonial para o controle colonial português. O apropriar este texto historico leva-me a questionar a questão da vassalagem como imposta mas também, com o passar do tempo, como aceite pela vítima do ‘contrato’. (Questões coloniais fazem-me sempre lembrar desenvolvimentos psicológicos paradoxais como a síndroma de Estocolmo em que o indivíduo aprisionado, apesar da circunstância, desenvolve um laço emocional de empatia para com o captor.)
Para alguém como eu, africano, que cresceu nos subúrbios de Lisboa após a queda da Ditadura, após o fim do colonialismo português, durante um período em que Portugal passou por enormes transformações, principalmente na sua relação como as colónias, que de desprezadas, após terem conseguido a independência, passaram a recentemente valorizadas (principalmente) devido ao potencial económico que podiam oferecer depois do fim das prologadas guerras civis em Angola e Moçambique, as narrativas coloniais hierárquicas têm-se mantido presente na sociedade portuguesa, onde as minorias étnicas africanas não possuem poder político-social ou visibilidade política acentuadas e não existem esforços concertados por parte das autoridades para aumentar a sua capacidade de contribuir produtivamente para o contexto nacional político. Em Londres, tenho encontrado jovens imigrantes africanos portugueses de segunda ou terceira geração que com a crise económica que abateu Portugal imigraram para Londres… Em Londres tornam-se imigrantes num outro contexto, e aí vitimados por um sistema de transação de capital que sofisticadamente explora sem piedade aquele que está em situação vulnerável. O que me preocupa nestes jovens, porque o reconheço em mim, é o seguinte: até que ponto a tal pré-reflexividade assimilada diminui a capacidade deles de acreditar no seu potencial, e os força a circular por espaços sem ter voz audível.
Poderíamos considerar, a partir das reflexões de Deleuze em Image-temps e da sua revisitação crítica por Rancière, que a imagem-movimento, em que a montagem é predominante, é, de certa forma, autocrática, pois dirige a reconstrução mental da narrativa na mente do observador para uma imagem orgânica, isto é, fechada, enquanto a imagem-tempo, em que não predomina a montagem, a relação causal é suspensa, permitindo múltiplas leituras, deixadas em aberto à imaginação do espetador. Em Visitor, por exemplo, o vídeo é rodado em tempo real podendo ser considerado uma imagem pura do tempo. Também em Metathesiophobia, 2011, optaste por um plano sequência. Consideras que a imagem-tempo pode ter um poder emancipatório sobre o espetador? De que modo?
Durante o meu período em Londres entre 2000-2009, incluindo o Mestrado, não fiz exposições, sempre mais preocupado com processos, sem ter a necessidade de finalizar trabalhos ou de expor. Durante parte desse período trabalhei no Museu Nacional Marítimo em Londres, que realizou exposições de arte contemporânea ambiciosas por artistas, como por exemplo, Ester Shalev-Gerz, Renée Green, e Lawrence Weiner. Esses projetos deram-me a oportunidade de observar em detalhe o processo de trabalho e de relacionamento, diferentes entre artistas, e as ‘responsabilidades’ culturais e educativas da instituição. Por causa do ambiente de trabalho comecei a interessar-me pela questão da audiência, que até aí não tinha sido uma preocupação para mim devido a uma educação e posicionamento muito formalizados. A questão da audiência torna-se de facto relevante como artista plástico (e responsável de uma escola de arte) quando começo a trabalhar como professor no Mindelo pelas seguintes razões: percebi que num contexto como o contexto de Cabo Verde, em que não existe um mercado para as artes visuais, eu não poderia ensinar os mesmos princípios do ‘alto-modernismo’ que me ensinaram nas escolas de arte europeias onde eu estudei; percebi que o modelo de artista de estúdio é problemático naquele contexto e que, portanto, o artista ‘local’ teria que funcionar ‘mais’ como um agente cultural que opera também no campo das artes populares; após constatar que muitos dos meus estudantes tinham uma visão linear do que era a arte, circunscrita à pintura e ao desenho clássico e simbólico, por causa de um sistema de ensino secundário onde a educação artística e a história da arte eram subvalorizadas, eu comecei a fazer e expor localmente trabalhos em vídeo e texto, como forma de desenvolver a discussão, dentro e fora do instituto, acerca do conteúdo e objetivos da produção artística. Por essa altura a curadora Claire Tancons, que investiga o carnaval como forma artística visual, passou por Cabo Verde para pesquisar sobre o carnaval do Mindelo. Munido com um arsenal teórico pós-moderno, eu assumia que o ensino da arte contemporânea, que aborda a interdisciplinaridade e o político, pudesse ser uma ferramenta para o desenvolvimento da capacidade crítica político-social e da capacidade emancipatória do estudante. As nossas conversas fizeram-me ver que o carnaval - como prática interdisciplinar, intercultural, e por vezes socialmente crítica – poderia ser um ponto de partida para o meu trabalho pedagógico com os estudantes. Num dos seus ensaios, Rancière refere um intelectual esquecido na memória francesa que diz que o ignorante tem a capacidade de ensinar ao ignorante aquilo que ele não sabe… E eu encontrava-me precisamente nessa situação… porque estava a reencontrar aquele contexto, enquanto questionava as narrativas modernas que tinha aprendido e tentava lidar com discursos pós-coloniais, pós-modernos e pós-estruturalistas que tinha recentemente reencontrado.
Segundo Rancière, a comunidade emancipada é uma comunidade composta por contadores de histórias e tradutores. Retornando ao meu trabalho com os estudantes com o intuito de estimular a interpretação do contexto e também a apropriação de conhecimento, o aprofundar da capacidade crítica em relação a uma realidade, na minha opinião, pode criar dois polos: a vontade de mudar essa realidade ou a vontade de abandono dessa realidade. A arte de matriz política e pós-colonial salienta o passado e o presente em direção um futuro diferente do que parece inevitável em contraste com uma outra arte que persegue a experiencial estética, que vira as costas a essa realidade material oferecendo momentos de digressão, de escape… E depois, possivelmente, existem muitos outros posicionamentos entre estes dois polos. O meu predicado é a constante negociação entre estes dois polos.
Com Metathesiophobia, um vídeo com mais de uma hora de duração, onde (simplesmente) presenciam-se três indivíduos a dividir o conteúdo de um “taperuer”, um pó branco em saquetas de plástico transparente. O intuito foi o desejo de sublinhar, para a audiência, uma imutabilidade de vários aspetos de uma realidade com o passar do tempo. A imagem-movimento tentou fixar o indivíduo dentro de um mundo sequencial onde os significados queriam-se fechados respeitando a versão aristotélica do drama teatral… A exposição do problema, a conquista das dificuldades e a resolução (preferencialmente feliz), enquanto a imagem-tempo, descartando este modelo criou, não creio que múltiplas leituras com o mesmo produto mas sim, modos diferentes de articular imagens, de escrever com o mesmo alfabeto. Isto forçou situações de leitura diferentes, em que a forma de ler da audiência, e não a intenção do autor, provoca múltiplas leituras. Este vídeo, que exibe o que poderia ser considerado uma sequência de um filme qualquer, se existe algum vestígio de querer potenciar o emancipatório, está ligado ao explorar representações e ao assumir auto-retratos problemáticos. E existe um elemento de auto-retratação… De algo em mim que penso ter em comum com determinado grupo. O plano que constitui o vídeo faz alusões a uma série de elementos, principalmente a questão do tráfico de estupefacientes e do criminoso… Preocupa-me aqui a questão do comportamento virtuoso em relação à dicotomia ‘descartiana’ alma/corpo. Se entenderes que Metatesiophobia alude a muitas histórias com uma história que questiona determinadas histórias, possivelmente poderá ter algum potencial emancipatório? Não sei.
Nestes dois vídeos, a imagem revela as nossas expetativas sobre a representação, precisamente na medida em são deixadas em vazio: em lugar dos enquadramentos convencionados (plano americano, close-up, panorâmica), a câmara foca o tronco dos corpos, deixando fora de campo os rostos. Estes corpos não são colocados ao centro da imagem, substituindo o lugar que ocupariam os rostos, mas são deixados na parte inferior da imagem, sendo o fora de campo marcado por uma margem preta que ocupa a maior parte do ecrã, obrigando o olhar a baixar e a percecionar diferentemente do habitual. Deste modo, é focada particularmente a atenção nos gestos involuntários das mãos, nas hesitações dos corpos. Podemos considerar que há uma disjunção entre a causa (o sujeito cuja essência é o rosto, lugar e espelho da razão) e o efeito (os gestos e ações do corpo), do mesmo modo que o texto, em voz-off, de Metathesiophobia - uma colagem aleatória de fragmentos das Meditations on First Philosophy de Descartes (1641) onde foram acrescentadas conjunções, como “e” e “para” de modo a tornar o discurso aparentemente lógico - separa a causa, o texto, do seu sentido racional de forma que, em ambos os casos, contemplamos um puro efeito estético. Em que medida este puro corpo, sem rosto, esta língua-corpo, sem mente, se posiciona, para ti, eticamente.
A dicotomia descartiana alma/corpo em que o material é subalterno… Tem-me preocupado – cresci numa sociedade católica. Os vídeos que referes evitam a face… O espaço da alma? Propõem que o indivíduo seja interpretado através de outros elementos… Por outro lado, interessa-me a forma como o detalhe condiciona a compreensão de uma totalidade. Deixo-me levar por vezes, com é o caso em Visitor e Metathesiphobia, por detalhes de modo a aludir a uma totalidade (… estando perfeitamente consciente de que uma totalidade é em si, é sempre um detalhe de uma outra totalidade qualquer). Prossigo com esta resposta, focando-me na palavra puro, que utilizas. Como crioulo formo uma crítica ao puro como conceito superior. O detalhe tem precisamente o poder de chamar a atenção para aquilo que compromete a unidade e homogeneidade da narrativa; o foco no detalhe tem o poder de forçar a reinterpretação de uma totalidade, das estruturas que classificam algo como puro, impuro, etc.; o corromper um detalhe tem o potencial de destabilizar toda a estrutura de relações dentro de uma totalidade. Se assumir Metathesiphobia como uma totalidade representativa de imutabilidades entre colonial e pós-colonial, nutrida pela reprodução de discursos, como, por exemplo, o discurso racionalista de Descartes em que o corpo e a alma são entidades diferentes e hierarquicamente desniveladas, em que o animal não tem alma etc., o corromper o texto que acompanha a imagem vem do desejo de desestabilizar essa narrativa que contribui para imutabilidade ideológica, independentemente de movimentos socioeconómicos inevitáveis e constantes. Em Visitor, os detalhes que sublinho são os instantes de ansiedade revelados pelas hesitações no falar da narradora que descreve a sua relação como mulher branca com o continente africano, refletida nos movimentos das mãos dos personagens, enquanto esperamos que ela responda a uma imposição que lhe foi feita anteriormente. Esteticamente, o focar no detalhe possibilita o despreocupar-me com a linguagem estrutural do ‘médium’ e o focar no potencial evocativo das unidades singulares que poderiam formar uma estrutura.