O design da identidade nacional através do vestuário: o pánu di téra de Cabo Verde
Proponho-me neste artigo analisar a forma como o pánu di téra participou no processo de construção da identidade de Cabo Verde. O panú di téra é um tecido feito de algodão que começou a ser produzido no arquipélago em meados do séc. XV, tendo a técnica da tecelagem e os teares sido introduzidos pelos escravos tecelões que eram então trazidos da Guiné. Posteriormente, serviu como moeda no comércio esclavagista da Costa Oeste de África. Estes escravos eram depois vendidos no Brasil, para onde migraram, também, os pánu di téra. Mais tarde, após a independência em 1975, o pánu di téra vai ser valorizado como testemunha da herança africana, tornando-se um símbolo da identidade cabo-verdiana.
Assim, no contexto da reafricanização, levada a cabo pelo PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, no pós-independência, inicia-se um processo de valorização que, mais tarde, culmina na sua indexação como marca distintiva da cabo-verdianidade, em articulação com o crescimento do mercado e do turismo. Refletindo sobre este processo, questiono os efeitos da globalização no contexto insular e seus modos de resiliência.
Questões metodológicas preliminares
O pánu di téra distingue-se de todos os outros panos dos países africanos da região devido à sua insólita e complexa padronagem, que combina a influência muçulmana ou hispano-mourisca, com a técnica de tecelagem de origem africana, sendo praticamente semelhante à dos manjaco-papel (Carreira, 1983, p. 139). Os padrões resultam da tessitura dos fios de algodão de diferentes cores: as cores predominantes são, tradicionalmente, o azul-escuro, resultante da tintagem a anil - ou, menos frequentemente, a indigo - e o branco.
Estes panos moldaram a história de Cabo Verde, sobretudo durante os séculos XV, XVI e XVII, tendo a sua produção decaído no séc. XVIII. Sendo muito cobiçados pelos chefes dos clãs da costa ocidental africana, faziam obrigatoriamente parte das transacções comerciais de trocas de bens e escravos que marcaram o despoletar de um longo processo de globalização.
O uso deste tecido tinha um significado simbólico para a população, sendo utilizado sobretudo em cerimónias, e também como signo de estatuto social. Para além deste uso, o pano ganhou uma significação política que foi mudando através dos tempos, desde o domínio colonial até à atualidade.
Atualmente, um renovado olhar sobre o pánu di téra torna-o símbolo de uma identidade própria - nem tanto europeia, nem tanto africana - mas cabo-verdiana. Inversamente à tendência para uma massificação descaracterizada com a consequente perda de identidade e valores tradicionais, este novo olhar – fundindo novas influências, juntando técnicas tradicionais a designers inovadores – poderá abrir perspetivas de reinvenção e de desenvolvimento sustentado.
Foi esta a minha motivação para a investigação. No início, deparei-me com dois dilemas relativamente à metodologia. Em primeiro lugar, ao adotar o prisma da disciplina dos estudos insulares na análise da cultura material e imaterial, parto do pressuposto de que existe uma relação entre a geografia, a paisagem e a cultura e que a especificidade das geografias e lugares insulares se refrata nessa miríade de objetos materiais e imateriais que fazem parte da cultura. Essa premissa levanta a seguinte questão: qual a especificidade geral (a existir) desses lugares insulares (aqui, no sentido lato, incluindo a memória da interação do Homem com a paisagem) e, admitindo o conceito, Cabo Verde seria uma manifestação particular e irrepetível da insularidade?
O segundo dilema é: quem pode falar? Um dos pilares da libertação cultural e descolonização epistemológica da mente, que Amílcar Cabral defendia, é “a escrita da sua própria história” (1976, 225) e a libertação do etnocentrismo ocidental, repto também defendido nas outras ex-colónias portuguesas em África, nomeadamente, pelo filósofo moçambicano Ngoenha (1992). No entanto, esse projeto não foi totalmente cumprido: a escritora Inocência Matta, originária de São Tomé e Príncipe - arquipélago anteriormente sob domínio português - chama a atenção para o predomínio da estrutura imperialista que ainda espreita no meio académico e para o perigo de se nivelar a diferença com base no conceito de “lusofonia” (2014). Na mesma linha, o escritor cabo-verdiano Odair Varela (2009) denuncia o predomínio do modelo científico europeu, herdado do colonialismo, no meio académico cabo-verdiano em vias de consolidação.
No contexto dos estudos insulares, o repto da descolonização epistémica, lançado por Nadarajah e Grydehøj em 2016, tornou-se a linha orientadora desta disciplina, apesar da controvérsia gerada, por vezes, pelas diferentes conceções de descolonização e pelas diferentes visões sobre a forma de a alcançar (Grydehøj, 2018; Androus, 2018). No entanto, se a disciplina foi lançada com o objetivo de “study of islands on their own terms’ (McCall, 1994), como definiu um dos seus fundadores, ou seja, não apenas “com” ou “ para” os ilhéus, mas “pelos” ilhéus (Baldacchino, 2008, p. 37), ao longo do seu desenvolvimento, vários autores sublinharam o carácter relacional da ilha, quer seja “with the sea, other islands, mainlands, and the activities that span them” (Grydehøj, 2018). Apesar de esta questão ser controversa, também pela porosidade da definição de “ilhéu” (Baldacchino, 2008, p. 37), muitos autores defendem o debate a múltiplas vozes desde que ciente das armadilhas que o colonialismo estende (Baldacchino, 2008; Grydehøj, 2018). O importante, neste contexto, é situar o lugar da fala no seio das relações de poder que o tecem (Grydehøj, 2018).
De que modo e onde? Estarei eu, vinda de um continente e ex-metrópole, habilitada a “revelar” as relações entre o modo de sentir de uma vivência insular, que permanece sempre privado, íntimo, e as suas manifestações e imbricamentos na história coletiva?
De facto, no início das minhas leituras, o fosso entre a visão idealizada das ilhas pelos continentais e a visão “agridoce” dos próprios insulares, dilacerados entre as limitações físicas e o bater das asas da imaginação para outros mundos para além do horizonte, deixou-me perplexa. As ilhas são, no imaginário coletivo dos continentais, geralmente uma ilha virgem, imaculada, sem os traços do Homem, onde se pode renascer, começar de novo. É, no fundo, a ideia de Deleuze em “Ilhas Desertas” (Deleuze, 2012). Este é o arquétipo das ilhas enquanto origem prístina que se plasma de forma paradigmática nas descrições das Ilhas Afortunadas, desde Hesíodo e Homero.
Não pretendo aqui revelar a essência da cultura imaterial cabo-verdiana como se estivesse escondida, à minha espera, para vir à luz: os percursos que me conduziram à elaboração deste texto resultaram, por vezes, de fatores aleatórios. Procurei - na linha da estratégia de Trin’s “speak nearby” (Minh-ha, 1992) - criar empatia com o meu objeto de estudo a fim de diminuir a distância e assumir essa subjetividade e incorporar – tanto quanto possível - a voz das pessoas, incluindo-as, através de entrevistas, no texto.
Neste contexto, assumo o meu próprio olhar subjetivo sobre as ilhas enquanto errância “apaixonada”, ao mesmo tempo que tento evitar cair na armadilha de considerar os ilhéus como passivos e involuntários “objects of the gaze” (Minh-ha, 1992, p. 39).
O entrelaçamento dos fios da história e do pánu di téra
Procurei neste artigo fazer um resumo da história do pánu di téra (pano da terra, em crioulo), mostrando como este se entrelaça com a própria história de Cabo Verde, tendo tido um papel importante no triângulo do comércio de escravos entre África, Europa e Brasil. Desempenhando o papel de moeda, favorecido pela posição estratégica de Cabo Verde, próximo do continente africano e na rota para o Brasil, acelerou o fluxo, não só de pessoas mas, também com elas, modos de vestir, estar, cultos religiosos, música, etc., tem sido um propulsor de trocas de bens materiais e imateriais.
Cabo Verde situa-se no Atlântico Norte e, apesar de estar isolado da costa oeste africana, está suficientemente perto - cerca de 450 km (Amarante, 2012, p. 21) - para se considerar como fazendo parte do clima saheliano. Possui uma exígua superfície territorial (INE, 2015) e cerca de meio milhão de habitantes. Considerado desabitado quando descoberto pelos portugueses, em 1460, alguns autores cabo-verdianos (Veiga, 1997, p. 23), consideram provável que já aí habitasse um grupo de naufragados wolof, ou lebus e felupes, provenientes da próxima península de Cabo Verde, no Senegal (origem do nome do arquipélago), sendo as ilhas já conhecidas pelos geógrafos árabes desde o séc. XI (ibid.). O arquipélago foi desde então colonizado por donatários e colonos portugueses e sustentado por mão-de-obra escrava africana de diversas etnias, oriunda sobretudo da Guiné (ibid. p. 21), tendo-se tornado num importante entreposto do comércio negreiro para a América Central e Brasil. Os escravos eram, geralmente, reunidos de forma que não se juntassem africanos da mesma etnia, facto que originou o crioulo como língua franca.
De forma análoga a outras ilhas que foram colonizadas, como São Tomé e Príncipe, as ilhas Maurícias ou as Antilhas, para apenas citar alguns exemplos, a crioulização surgiu de um processo de subalternização, de violência e de interiorização dos mecanismos de reprodução da hierarquia social europeia. Estabelecia-se assim um habitus social, a nível linguístico, uma relação diglóssica, i. é, uma relação de desigualdade de estatuto entre uma ou mais variedades da mesma língua (Pyndiah, 2016, p. 488).
Assim, a estratificação da sociedade foi-se sedimentando segundo uma lógica racial herdada do colonialismo: enquanto no séc. XV e XVI as elites mais elevadas eram constituídas por colonos brancos da baixa nobreza, no século seguinte, surgiu a segunda elite - os “filhos da terra”- constituída por brancos e mestiços que exerciam o comércio com a Guiné. Os elementos adversos da insularidade, o clima árido e as características do solo cabo-verdiano, pouco fértil, fizeram com que o povoamento pelos brancos fosse escasso não suprindo as necessidades administrativas. Em meados do séc. XIX surgiu uma terceira elite, os brankus di terra, mestiços e negros, assim chamados por terem ocupado o lugar dos brancos nos cargos administrativos locais (Shabaka, 2013, p. 12).
Neste contexto, torna-se importante trazer à luz o modo como os escravos não foram agentes passivos de uma dominação, de forma a tronar visível o modo como contribuíram para a história. De início, entre 1460 e os princípios do séc. XVI, apenas era explorada a produção do algodão em bruto para exportação para Espanha, Portugal e a Costa Africana (Carreira, 1983, p. 23). Foi com a chegada dos escravos tecelões, ca 1517, que trouxeram consigo os teares e a técnica da tecelagem, que se iniciou a tecelagem dos panos (ibid., p 47). Apesar de ter sido o anil “com o algodão, a base fundamental da confecção da panaria cabo-verdiana e mesmo africana em geral” (Carreira, 1983, p. 56), o índigo também era utilizado. Tendo sido trazido da Índia pelos portugueses, foi levado de Moçambique para as ilhas de Cabo Verde no final do séc. XVI, e é provável que esta introdução tenha implicado a vinda de escravos que já teriam aprendido a processar esta tintagem (Pereira, 2015, p. 66).
Segundo Carreira, um estudioso cabo-verdiano incontornável no estudo da panaria do arquipélago, os padrões geométricos de influência hispano-mourisca, introduzidos pelos portugueses (Carreira, 1983, p. 23), criaram uma padronagem de uma complexidade muito mais elaborada quando comparada à existente, na altura, na área entre o Senegal e o Golfo da Guiné. Sendo, como este autor indica, a tintagem a anil a técnica mais predominante utilizada nesta região, os mais semelhantes aos panos cabo-verdianos são - para além dos cobertores de lã de Mopti, os de Niafunké e de Goudan - os panos de algodão da Costa do Marfim, embora mais simples. Esta opinião foi contrariada, mais recentemente, por Alberto da Costa e Silva (2011), segundo o qual estes padrões geométricos já eram conhecidos na África Ocidental por influência berbere – muito antes de os portugueses chegarem a Cabo Verde – o que comprovam as descobertas arqueológicas de tecidos Telem, do séc. XI, nas falésias de Bandiagara, no Mali (Silva, 2011, p. 17).
Certo é que os panos de Cabo Verde rapidamente se tornaram os preferidos dos chefes dos clãs que chegaram a estipular a obrigatoriedade da inclusão de “panos de obra” nas transações comerciais pelo que “muitas vezes quem não tivesse “panos das ilhas de Cabo Verde” dificilmente adquiria escravos” (ibid., p. 29). Assim, intermediários que frequentemente operavam “nas regiões entre o Senegal e a Libéria, onde traficavam têxteis locais, nozes de cola, marfim e escravos” (Pereira, 2015, p. 64), impunham aos traficantes de escravos europeus a compra de panos de Cabo Verde como parte da negociação. A procura era tanta que provocou um aumento de mão-de-obra escrava para lidar com o intenso trabalho do algodão. Em 1582, a população de escravos na Ilha do Fogo era quase nove vezes superior à dos brancos, existindo 13.700 escravos, 1.608 brancos e 400 africanos livres (Barry, 1998, p. 40), o que favorecia a criação de uma população crioula (Pereira, 2015, p. 66). Como implicação de todo este processo, e segundo vários autores entre os quais Carreira (ibid., p. 52), verifica-se que a qualidade dos panos contribuiu decisivamente para o incremento da escravatura com profundas consequências para os próprios cabo-verdianos.
Em 1613, a falta de cunhagem da moeda gerou uma crise económica de tais proporções que o uso de panos como moeda corrente servia não só para as transações comerciais de Cabo Verde mas também para o pagamento de funcionários (ibid., p. 102). Existindo vários tipos de pánus di téra - cuja tipologia ainda se mantem − consideram-se “panos simples ou singelos” os panos de tecelagem linear e de “limitados lavores” (Carreira, 1983, p. 107), entre os quais os barafulas, faixas de pano tingidas que depois eram cosidas entre si, alternando o índigo e o branco. Os “panos de agulha”, assim denominados por os acabamentos serem feitos a agulha, eram constituídos por bandas de tecido branco tingidas posteriormente a azul-claro ou a vermelho (ibid., 114); os “panos de obra”, designação que abrangia todos os panos mais elaborados (“obra” em português significa trabalho), “usando só linha de algodão, preto e branco e de seda de diversas cores formando desenhos geométricos ou figuras, objectos, casas” (ibid., 119) e que compreendia o “pano d´obra bicho”, assim designado atualmente devido à semelhança com alguma pele de bicho (jiboia, crocodilo).
É importante realçar também que os escravos contribuíram para o fluxo de bens materiais e imateriais não apenas do continente para as ilhas, mas também das ilhas para o continente. Os panos de Cabo Verde não só vestiram as elegantes elites da Guiné, como as da Costa Dourada (Gana) e do delta do Níger (ibid.), passando a ser objeto de intensa procura − tanto por nacionais como por estrangeiros− expulsando os seus rivais indianos e africanos (Peixeira, 2003, p. 72). A valorização dos pánu di téra pelos habitantes da costa é testemunhada pelo mapa de África de John Sudbury, de 1626 (Pereira, 2015, p. 68) que representa senegalenses vestindo os panos. Existem testemunhos que demonstram como também os pánu di téra chegaram ao Brasil, provavelmente trazidos pelos escravos: duas pinturas de Albert Eckout, realizadas durante a ocupação holandesa do noroeste do Brasil (1630-1654), mostram uma mulher africana utilizando o pánu di téra como saia, atado à cintura com um pano vermelho e um homem africano utilizando o pano como tanga (Pereira, 2015, p. 70). Segundo este autor (ibid., p. 75), o impacto do seu uso em África ainda hoje se faz sentir na “fashionabilidade do branco e do preto”: o povo do Delta do Níger confeciona um tecido, o “pelete bite”, que é frequentemente preto e branco e cujo padrão se assemelha aos padrões do pánu di téra; nos rituais fúnebres no sudeste da Nigéria são também utilizados tecidos tingidos a preto e branco (ibid. 76). Em Cabo Verde, o pánu di téra sempre foi utilizado pela população e tinha um valor simbólico. Tradicionalmente oferecido como presente à noiva por ocasião do pedido de casamento, era geralmente utilizado para amortalhamento de cadáveres e em sinal de luto (ibid.). Servia também de sinal exterior de distinção social devido ao seu elevado preço, indicando o uso em torno da cabeça nos funerais o elevado estatuto do portador (Mendes, 2009, p. 84).
No séc. XVIII, a cultura do algodoeiro e a tecelagem começaram a entrar em decadência. Vários foram os fatores que contribuíram para esta situação: a política de monopólio que a Coroa Portuguesa empreendeu e a instalação, em Cabo Verde, da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, a qual detinha, não apenas o direito exclusivo da venda dos pánu di téra, mas também o da extração de urzela em Cabo Verde, Açores e Madeira, bem como o monopólio do comércio de escravos do arquipélago e da Guiné, na Amazónia e no Maranhão (ibid.). Outros fatores contribuíram, direta ou indiretamente, para a decadência da produção dos panos: a Companhia, possuindo o monopólio dos escravos, vendia-os pelo dobro do preço, tendo por consequência o abandono da cultura do algodão por falta de mão-de-obra; as numerosas secas que levaram a devastadoras crises de fome; o ruinoso Tratado de Methuen, em 1703, entre Portugal e a Inglaterra, que garantia a proteção dos têxteis ingleses em troca da proteção alfandegária dos vinhos portugueses. “At last but not the least”, a Revolução Industrial e a difusão, a partir de 1850, do pano de algodão branco cru, de produção americana, conhecido por “paulino”.
O papel do pánu di téra na construção da identidade cabo-verdiana
Enquanto manifestação da herança cultural africana, o uso do pánu di téra como vestimenta pelos ilhéus era reprimido pelo poder colonial português, sobretudo durante o início e meados do séc. XX (Almeida, 2003, p. 61). Pela mesma razão, com a independência de Cabo Verde em 1975, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) − o partido que liderou simultaneamente Guiné-Bissau e Cabo Verde entre 1975 e 1980 – incrementou a valorização do pánu di téra no âmbito da reafricanização, enquanto símbolo da resistência do cabo-verdiano face ao colono.
Neste período, a cultura material popular foi o depositário das esperanças do florescimento de uma criatividade reprimida na época colonial. Este incentivo ao reflorescimento do artesanato surgiu no rescaldo de um comentário do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, no seu livro Aventura e Rotina (1953), por ocasião de uma visita realizada a Cabo Verde a convite do então ministro do Ultramar (nome dado por Salazar, the dictator of Portugal from 1932 untill 1968, às colónias a partir de 1951) no qual realçava “a inexistência de artes populares no arquipélago” (Venâncio e Silva, 2010). É de salientar que o antropólogo brasileiro tinha sido o autor da teoria luso-tropicalista, desenvolvida em Casa-Grande & Senzala (1933), segundo a qual os portugueses teriam, devido a fatores genéticos, climáticos e históricos, uma propensão natural para a miscigenação. Esta teoria foi posteriormente apropriada por Salazar nos anos 50, em face da crescente pressão internacional para a descolonização, de forma a legitimar a exploração das colónias, estando na base da ideologia da assimilação.
Com este pano de fundo, de 1975 a 1991, o artesanato constituiu um “elemento integrante da construção nacional da I República, efetuada sob a égide do africanismo” (Rovisco, 2017, p. 10). Com o objetivo de preservar a tecelagem cabo-verdiana, os artistas plásticos Bela Duarte, Luísa Queirós e Manuel Figueira criaram, em 1976, a Cooperativa de Produção Artesanal Resistência, no Mindelo que, no ano seguinte, se converteria no Centro Nacional de Artesanato (CNA), o qual se propunha preservar e dinamizar o artesanato cabo-verdiano, promovendo atividades no âmbito tecelagem e da tapeçaria (ibid., p. 8). Durante o período liderado por Manuel Figueira, de 1978 a 1983, o CNA caracterizou-se pela experimentação, tendo tido entre os elementos da sua equipa experientes tecelões (ibid., p. 10). Algumas peças realizadas na altura, existentes Museu de Arte Tradicional, testemunham a aplicação do panú di téra em diferentes objetos como candeeiros, cadeiras estofadas e peças de vestuário o que, na época, constituiu uma inovação.
A partir deste período, começou a surgir, entre os intelectuais, os artistas e a classe política, o uso de camisas com aplicações da pánu di téra como forma de assumir publicamente a identidade cabo-verdiana. Geralmente, a aquisição do que é “especial” - quer seja pelo seu preço, quer seja pela história a que está ligado– é inerente ao prazer da aquisição de peças raras ou únicas, resultantes de uma escolha. O facto de ter sido fruto de uma procura e de um esforço de ajuizar e triar, investe o objeto da memória desse momento de escolha particular, atribuindo-lhe o que Kurlinkus, based on the book Emotional Design, from Donald Norman (2004), i. é, o objeto conta uma estória que está ligada ao seu aqui e agora, em determinado espaço e tempo - enquanto duração da sua feitura e momento da sua aquisição.
O facto dos contornos entre os opostos serem tão agudos nas ilhas - dentro/fora, encerramento/abertura, vida/morte - a vivência reveste-se aí de um sentimento de realness que acompanha o sentimento de isolamento (Brinklow, 2011, p. 1). Este tem o poder de destilar nos ilhéus (ou residentes nas ilhas) um forte sentido de pertença às próprias ilhas, um sentimento de “casa” (MacKinnon, 2016, p. 41).
Através do uso do pánu di téra pretende-se, geralmente, afirmar a pertença ou o gosto pela cultura cabo-verdiana e, também, valorizar a autenticidade corporizada no índex artesanal. Assim, para além do apelo sensorial das texturas e cortes, a sua aquisição é fruto de uma decisão afetiva de autoconstrução que justifica o seu valor. Sendo a identidade algo em perpétua construção que se negoceia entre as projeções que o outro faz de nós e a apresentação que queremos dar de nós ao outro, o vestuário é especialmente significativo pois está na interface entre a autoapresentação pública e a forma íntima, através da qual a pessoa experiencia sensorialmente essa mesma autoapresentação, definida por Turner como “pele social” (1980).
O pánu di téra tornou-se um meio de comunicação, um “branding” “Cabo Verde”. A secção seguinte throws light upon a mudança do olhar sobre o panú di téra trazida pelos novos fluxos de circulação de bens, informação e pessoas, agora, sobretudo impulsionados pelo turismo e sobre o modo como aqui se entrelaçam o global e o local.
O pánu di téra e a globalização
Na sociedade cabo-verdiana, as correntes identitárias oscilam entre as tendências influenciadas pelos “claridosos”– movimento intelectual e literário surgido em 1936 em Mindelo ligado à revista literária Claridade − que procuram a sua raiz numa crioulidade que consideram a essência da cabo-verdianidade e na qual a componente africana é diluída na europeia, ignorando o conflito racial existente em Cabo Verde − e o movimento africanista que considera como raiz a cultura de matriz africana.
A partir das primeiras eleições pluripartidárias, em 1991, acentuou-se gradualmente a corrente que, segundo Odair Varela (2012) utiliza o discurso da crioulidade como forma de ascensão social de uma elite, articulada com o aumento do turismo e a expansão dos mercados. A partir daqui, o artesanato e o pánu di téra em particular passaram, no contexto da expansão dos mercados, a ser uma marca de distinção e um símbolo da nação, indexada por alguns à crioulidade (Filinto, 2005, s/p). Assim, a partir desta data, a evolução do artesanato decorrerá em articulação com um movimento de construção da identidade nacional que, segundo a antropóloga Eduarda Rovisco, se caracteriza por uma “amplificação dos procedimentos desafricanizantes” e pelo “progressivo crescimento do turismo e da imigração” (Rovisco, 2017, p. 10). O turismo tem-se tornado na principal fonte de receitas do país, tendo contribuído, já em 2008, para 19,4% do PIB, correspondente a 60% do total das receitas dos serviços (Amarante, 2012, p. 39).
No entanto, em Cabo Verde, a articulação entre o global e o local varia consoante as ilhas. As ilhas do Sal e da Boavista têm apostado mais no turismo balnear e são também as que têm sofrido os efeitos nocivos do turismo massificado. Para dar o exemplo da Boavista, 90% dos quartos existentes em 2015 pertenciam a 4 hotéis pertencentes a empresários ou grupos económicos estrangeiros, funcionando em regra com “tudo incluindo” (Rovisco, 2017, p. 12). Esta situação conduziu à condição desastrosa dos emigrantes que trabalharam na construção civil e a uma reprodução da estrutura social colonial, como notou a antropóloga Eduarda Rovisco: “o crescimento do turismo e da imigração proveniente da CEDEAO-Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental constitui uma nova moldura para a afirmação da cabo-verdianidade [cujas] componentes se assemelham de forma confrangedora às componentes que estiveram na origem do longo processo que a urdiu: escravos negros e senhores brancos” (ibid., p. 20).
Na ilha de Santiago, o aumento do turismo, apesar de ser em menor escala, favoreceu o aumento dos souvenirs que procuram corresponder à ideia estereotipada de “Cabo Verde” ou “África”, nomeadamente com a difusão da aplicação do pánu di téra em peças de vestuário como t-shirts, e, sobretudo, em acessórios − jóias, carteiras - tendo como grupo alvo sobretudo os turistas. Por outro lado, como muitos turistas não conhecem a história do pánu di téra, por vezes, não sabem distinguir entre o autêntico panú di téra, a sua imitação realizada industrialmente, ou um pano estampado do Senegal, sendo tudo subsumido sob o label de “africanidade”. Visitámos uma loja pertencente à Associação de Artesãos de Santiago, situada numa rua pedonal do centro da Cidade da Praia, capital de Cabo Verde, onde, uma grande diversidade de pequenas peças (agendas, carteiras, colares, brincos, sandálias, t-shirts) com aplicação do pánu di téra, genuínos ou imitações, constituíam o maior fluxo de vendas.
Toda esta produção é, genericamente, concomitante com a perda progressiva do sentimento de pertença e de enraizamento num lugar, o qual gera a fetichização do outro como projeção nostálgica de um paraíso perdido, sendo que provoca a reprodução de sucedâneos comercializáveis. Assim, a etnicidade está a tornar-se, em alguns contextos africanos, numa estratégia de marketing de forma a acrescentar valor aos produtos, indexando-os com o significado de uma autenticidade ligada a uma tradição local (Comaroff, 2009). É sobretudo nas ilhas que essa operação de mercantilização da tradição é mais notória, sobretudo as pequenas ilhas que são atualmente, como Baldacchino notou “unwittingly, the objects of what may be the most lavish, global and consistent branding exercise in human history” (2012, p. 55). Deste modo, um elemento exclusivo local é associado à identidade das ilhas: “Fair Isle sweaters, Guernsey cows, Shetland ponies, Texel sheep, Barbados rum, Gozo cheese, Islay whisky, and Trinidad hot sauce” (ibid., p. 55).
Autores como Appadurai (1996), entre outros, salientaram a importância do consumo na construção da identidade nas sociedades contemporâneas. Neste grande hipermercado cultural global, a própria construção da identidade está cada vez mais ligada à escolha do consumo que se faz: o que se veste, o que se come, onde se compra, tornaram-se numa marca de identidade com a qual construímos a nossa imagem pela via do reflexo que nos devolvem os outros.
Neste contexto, a política converge com o consumo como construção da identidade nacional tornando-a numa marca registada. No entanto, a perda de substância da autenticidade trazida pela mercadorização da cultura não é linear, dependendo dos locais: a corporização da etnicidade pode ter efeitos ambíguos, podendo também ajudar a fortalecer pequenas economias.
Assim, os tecelões beneficiaram do escoamento das suas produções. Visitámos, na zona do Tarrafal, no norte desta ilha, o Centro de Artes e Ofícios de Trás di Munti (CAO): quatro jovens tecelãs trabalham aí todo o dia durante a época seca produzindo, através da utilização das técnicas ancestrais, as faixas estreitas tradicionais, com padrões a preto e branco.
Falámos com uma delas, Rosilda, que aprendeu a técnica com um tecelão muito experiente, aos vinte anos. O seu tear, assim como o das outras artesãs, foi construído pela própria com materiais naturais: madeira, paus atados com cordas e pedra. Os acessórios do tear mantiveram-se também os tradicionais: o pente, lisas, lançadeiras ou canela, o pedal, a roldana, os pós de dobra, caruru (acessório que serve para assegurar a linha), listro e tábua bicho. Segundo Rosilda, os turistas constituem um dos seus principais clientes.
Na Calheta, também na ilha de Santiago, falei com um tecelão, Vito, que fazia panos com padrões diferentes em várias cores vivas, azul, verde e vermelho e com faixas mais largas. Trabalha em casa, nas horas que não dedica à agricultura e o seu local de venda são as feiras onde vende diretamente ao público cabo-verdiano e a turistas. Quando fui a sua casa, instalou o tear em cinco minutos no quintal, onde passeavam cabras e galinhas domésticas, prova da vantagem deste tear ancestral, criado pelos povos africanos nómadas. Segundo nos relatou, começou a tecer com seis anos, quando não tinha trabalho, tendo sido ensinado pelo tio tecelão. Vito corresponde ao perfil de tecelão mais típico, pois geralmente são homens e trabalham em casa, não tendo uma oficina independente, sendo que o tipo de pano que geralmente produzem é o mais simples, o “pano bicho”, dado que é o mais comercializável. O facto de atualmente existir uma geração de mulheres jovens a exercer a atividade de tecelagem constitui mais uma das alterações que o pánu di téra sofreu, assim como as suas diferentes dimensões, cores e aplicações, demonstrando que a tradição não é fixa mas que é algo vivo.
O pánu di téra e o design colaborativo
O isolamento das ilhas relativamente ao continente concorre, naturalmente, para a preservação das tradições artesanais. No entanto, exigindo muito tempo de mão-de-obra, and, thereby, the low profit obtained, encontram-se, por isso, frequentemente em extinção. Uma das formas possíveis de combater a perda das tradições artesanais é a colaboração entre designers e artesãos de forma a criar uma mais-valia que torne a sua produção sustentável. Tal é o caso, por exemplo, da tradicional renda das ilhas do Pico e do Faial, Açores, a quem foi atribuído o prémio internacional de “Criatividade para Mulheres em Meio Rural” pela Wome’s World Summit Foundation, em 2008. Para contrariar a tendência para a diminuição de rendeiras, o Centro Regional de Apoio ao Artesanato (C.R.A.A), sob a direção de Sofia Medeiros, tem lançado várias iniciativas, promovendo residências artísticas entre designers e artesãos. Outro caso semelhante é o da técnica de knitting da Fair Isle, pequena ilha que faz parte das Shetland Islands, que tem uma origem tão antiga como o pánu di téra e que, curiosamente, apresenta uma semelhança nos seus padrões geométricos. Apesar de algumas artesãs/designers, como Susan Crawford, combaterem essa tendência, o relatório realizado pela Weave Consult a pedido do Shettland Island Council aponta como um dos principais pontos fracos “a lack of investment in, and focus on design” (Scott, K. & Marr, M. 2012, p. 24). Tal não sucede, por exemplo, com outro caso de têxteis que se tornaram icónicos, o Harris Tweed, da Ilha de Harris, atualizado por estilistas como Chanel, ou, entre outros, Vivienne Westwood que, desde a sua famosa colecção “Harris Tweed”, de 1987-88, na qual ironizou o uso aristocrático do tweed, tem vindo a renová-lo nas suas coleções.
Como exemplo da renovação do panú di téra em Cabo Verde, citarei Fátima Almeida. Encontrei-me com a estilista no atelier que tinha encerrado muito recentemente, no início de 2017, com a intenção de dedicar-se apenas à realização esporádica de peças, ao seu próprio ritmo. A designer iniciou tardiamente a sua carreira de estilista, após ter deixado a atividade profissional, para reatar o seu sonho de juventude. Fátima Almeida trabalha sempre em colaboração com o mesmo artesão, o tecelão Henriques, de St.ª Catarina, a quem pede para fazer algumas inovações. Foi assim que se iniciou, segundo a estilista, a produção de bandas mais largas e de outras cores, pois, como nos relatou, na época só existiam o preto e o azul.
Esta colaboração, no design de moda, entre designers e artesãos, é uma prática emergente a nível internacional. Dando apenas alguns exemplos, Carlos Miele, ao mesmo tempo que trabalha no mundo global da moda, colabora com a Coopa Roca (Cooperativa de Trabalho Artesanal e de Costura da Rocinha Ltda), desde 2000, recorrendo a técnicas artesanais locais como o fuxico, o nozinho, ou o crochet do sul do Brasil (Clark, 2008, p. 431); Natalie Chanin, designer americana e cofundadora do projeto Alabama, recorre às técnicas de coser e de acolchoamento do período da depressão realizadas com materiais reciclados por artesões de Florence (ibid., p. 432), sua terra natal. Esta prática insere-se na linha da “slow fashion”, termo cunhado pela crítica de moda Angela Murills (ibid., p. 428), movimento que se caracteriza pela defesa do recurso a fontes locais e à produção transparente, favorecendo o contacto face a face e a responsabilidade social, criando artigos com um valor acrescido e um longo ciclo de vida (ibid., p. 429).
Decorrentemente, estas peças são dispendiosas, assim como as peças de Fátima Almeida, pois o facto do pánu di téra e das próprias peças serem elaboradas artesanalmente eleva inevitavelmente o seu preço, o que as torna numa marca de distinção social. No vestido vermelho à direita, por exemplo, cada lantejoula foi cosida à mão, sendo destinado a ocasiões especiais. Outro fator que, em Cabo Verde, encarece as peças e dificulta a sua realização é a inexistência de matéria-prima que tem que ser importada, até mesmo o algodão − geralmente de Dakar − e a falta de disponibilidade do artesão que, paralelamente, se ocupa de uma atividade agrícola. No entanto, a meu ver, a associação com um design de qualidade será a única forma de ser possível pagar a mão-de-obra implicada na preservação da técnica da tecelagem do pánu di téra.
Uma das suas coleções pela qual Fátima Almeida se apaixonou e que se tornou numa marca registada, foi a das camisas de homem com diferentes “detalhes finos”, como se pode ver aqui:
As suas peças de vestuário evocam tanto os trajes africanos como os trajes europeus. Outro vestido inspira-se no caftan que se usa na costa africana: o tecido, bazin fabric 100% algodão, é branco e as suas formas são mais sóbrias. Enquanto tradicionalmente o caftan é utilizado juntamente com um lenço em torno da cabeça, aqui é proposto o uso de uma boina de contornos retilíneos, com aplicação de uma faixa fina de pánu di téra a vermelho. Pelo contrário, as camisas de homem, que atualizam modelos de camisas antigas, assim como os vestidos de gala vermelhos, recordam sobretudo o traje europeu, apesar de apresentarem aplicações artesanais de Cabo Verde.
Considerações finais
De contornos porosos e flexíveis, as ilhas são mais abertas às influências externas e, por isso híbridas. Por outro lado, e em particular o Arquipélago de Cabo Verde, são também agentes de mudança no continente: os pánu di téra, para além de testemunharem a influência de África no Arquipélago, incrementada pelo fluxo de escravos, também testemunham a influência das ilhas no Brasil e no continente africano.
A existência e o tráfico dos panú di téra na costa ocidental africana é indiscutível sendo testemunhada em vários documentos da época, como relatos de comerciantes, registos em arquivos históricos, correspondência da etc., muitos deles analisados na obra que é uma marco de referência, Panaria cabo-verdiano-guineense, 1983, de António Carreira, mas também passíveis de encontrar em outras análises mais recentes como, entre outras, Shabaka, (2013), Silva (2011), Duplessis (2015 e 2010).
Quanto à presença dos pánu di téra no Brasil, há várias razões que nos levam a considerar muito provável terem feito parte dos “panos da costa”, nome que se dava no Brasil aos panos importados da costa ocidental africana (Torres, 2008): 1) o elevado fluxo de comércio intercontinental de tecido em algodão é corroborado, entre outros, por Duplessis (2010; 21); 2) os retratos de Eckhout, atrás referidos, de meados do séc. XVII, de uma mulher e um homem africanos no Brasil trajando, respetivamente, uma saia e uma tanga de tecido identificado como sendo panú di téra (Pereira; 70); 3) a descrição dos “panos da costa” feita, em 1852, pelo cônsul britânico na Baia, James Wetherell, ali residente durante quinze anos, correspondente, na cor e dimensões às faixas dos pánu di téra, sendo estes panos baianos caracterizados, num estudo recente, por serem “todos de cor azul […] obtido pelo índigo, mostrando uma tendência para o cinzento” (Torres 2008; 6-7). Embora estas características não sejam exclusivas do pánu di téra de Cabo Verde, encontrando-se estas cores também nos tecidos do Sudão ao Golfo da Guiné, George Roberts, um comerciante de escravos inglês, nos relatos de viagens a Cabo Verde, refere o comércio destes panos entre Cabo Verde e o Brasil e, reportando-se à ilha de São Nicolau, afirma: “they make the best cloth and cotton quilts of all islands but they are to good for the Guinea trade, but to well for that of Brasil, for wich the Portuguese were wont to touch there (Roberts 1726; 437). Mesmo tendo em conta que os retratos de Eckhout apresentam elementos alegóricos ao serviço do discurso colonial da época (Oliveira 2006; 115-138), poderá, pois, considerar-se plausível, através do cruzamento destes dados, que os “panos da costa” incluíssem os panú di téra.
De início, coloquei a questão de saber se haveria alguma especificidade no lugar insular e, caso positivo, qual seria a especificidade desse lugar, tendo-lhe atribuído o sentido da criação de um lugar através da memória dos gestos e das inter-relações entre as pessoas e a paisagem geofísica.
Parece-me que o entrancelamento entre a história do panú di téra e a História de Cabo Verde – desde o incremento do tráfico de escravos e bens entre África, Europa e o Brasil, à sua recuperação pelo PAIGC no movimento pós-independentista africanista e à sua apropriação como emblema da identidade cabo-verdiana − mostra como o lugar insular é sempre constantemente reimaginado, constituindo uma “paisagem” cultural “where imagination takes forms of reality” (Suwa, 2017, p. 6). Apesar disso puder ser dito sobre continnentes é ainda mais verde para ilhas subjugadas na projecção do escapismo, por um lado, e aspirando, por outro, ao que está para lá do horizonte desconhecido. Aqui manifesta-se por si o dito efeito ABC (amplificação por compressão) uma das cinco característocas da insularidade apontadas por Baldacchino (2017, p. 2016).
A identidade volátil e fugaz cabo-verdiana é sempre, assim, novamente reconstruida. Como refere Manuel Veiga a propósito do poema “Povo” de Jorge Barbosa, “o que o poeta quer dizer-nos é que a cabo-verdianidade existe, mas ela não é estática, ela é um devir contínuo” (Barbosa, 1989, p. 31). Esse devir tem um caráter pendular que oscila entre dois apelos: “apelo telúrico e um apelo evasionista” (Baptista, 1993, p. 179). Este sentimento está diretamente ligado à condição de insularidade, mas, por sua vez, a representação que se faz desse sentimento, através da cultura imaterial ou material – como a poesia ou o pánu di téra − altera, literal e metaforicamente, a própria paisagem como um espelho defronte de outro, de modo que a geografia e a imaginação confluem nas ilhas: “In this sense, the ‘island’ is a work of imagination derived from lived experience and memory in which the island landscape is a product of natural and human environments interacting with each other” (ibid).
Do mesmo modo que reinventamos a nossa infância individual, criando uma narrativa – uma dentro das várias possíveis − com a qual escolhemos identificar-nos, podemos afirmar que as identidades nacionais vão sendo criadas, retrospetivamente, através de discursos nos quais os próprios cidadãos são agentes ativos. Nesse sentido, são “comunidades imaginadas” (Anderson, 1983; Hosbawm, E. & Ranger, T., 1983) onde é atribuído ênfase às tradições, capazes de dar um sentido de continuidade à história, através de uma ponte entre passado e futuro. In this context wester fetishism of the African other can lead to a resurrection and re-invention of tradition, by fomenting pride in national culture and even raising the sustainability of often decaying activities. The process of consumer/producer, physical or immaterial goods, is a complex one that doesn´t exclude reversibility: as Comaroff noted “(…) for those tourists, […] the native “other” in this drama might serve as a fetish, […] But, if we believe the likes of Kruiper or the Xavante dancers or the Hainan islanders, it also appears to (re)fashion identity, to (re)animate cultural subjectivity (…) How so? Because the producers of culture are also its consumers, seeing and sensing and listening to themselves enact their identity—and, in the process, objectifying their own subjectivity, thus to (re)cognize its existence”, (2009, pp. 25-26). Do mesmo modo, o panú di téra tornou-se numa forma de distinguir e representar a identidade cabo-verdiana.
No entanto, no contexto do pánu di téra, caso não forem dados incentivos e não for controlado o incremento do turismo massificado, a inflação de produtos com aplicações do pánu di téra de baixa qualidade, provocada pela procura turística, poderá conduzir, a médio prazo, à vulgarização e ao esvaziamento cultural: citando, ainda, Comaroff “This is why “ethnic tourism” is frequently said to “destroy […] that which it seeks,” (2009, p. 20). Para que o pánu di téra possa ter uma mais-valia que justifique o seu elevado preço e para que a atividade tenha continuidade, será necessário desenvolver uma colaboração entre designers e artesãos que o torne inovador, mantendo a qualidade. Isto é, a valorização do pánu di téra pode contribuir para a reafirmação da cultura e da identidade cabo-verdianas e para o fortalecimento dos laços de pertença ao lugar. As peças de vestuário e acessórios de Fátima Almeida são o exemplo dessa colaboração. Indexam ao produto uma especificidade cultural ao mesmo tempo que operam um retorno à sua materialidade. Enquanto objetos únicos, não são o item descartável de um modelo que torna a cópia − enquanto representante de uma ideia ou estereótipo - negligenciável. Esta atitude situa-se na mesma linha da “slow fashion”, na medida em que mobiliza a cultura material local, tem um sistema de produção transparente, poucos intermediários entre o produtor e o consumidor, além de criar produtos sensoriais com um longo ciclo de vida pelo facto de serem considerados “especiais”.
Outra questão que me coloquei no início deste estudo foi se, enquanto continental estaria habilitada a realizar uma incursão pelos estudos insulares, ou, sequer, a falar sobre a cultura imaterial cabo-verdiana, sobretudo, enquanto portuguesa, e, portanto, ex-colonizadora e tendo em conta o desafio fundador desta disciplina, lançado por Grant McCall, como o estudo das ilhas “own their own terms”. Parece-me que a melhor forma de não distorcer a voz do outro é identificar claramente a voz de quem fala. Foi o que procurei fazer, explicando, no início do texto, as minhas motivações e o meu posicionamento e convidando, assim, o leitor a fazer uma leitura crítica do texto e a completar as suas lacunas. A estratégia de “nearby speaken” (Minh-ha, 1992) implica o respeito pelo outro e pela diversidade e o direito à imperfeição. Está em linha com uma abordagem fenomenológica do mundo, aberta ao que aparece. Na mesma linha, considero que, no contexto do efeito homogeneizador da globalização e do turismo - que tendem a tornar tudo convertível, sendo apagado dos produtos o processo da sua feitura e a sua existência no tempo - uma política de identidade derivada da tradição fenomenológica poderá constituir-se numa forma de defesa de uma verdadeira e criativa diversidade cultural.
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Artigo publicado originalmente em Nolasco, A. (2018). Designing national identity through cloth: the pánu di téra of Cape Verde. Island Studies Journal, doi.org/10.24043/isj.65.