Faz escuro: saudades do tejo
sinto-a chegar – a saudade de estar perdido sem saber de que lado veio a brisa, feita segredo, dizer-me que o fim do dia está perto
ainda há luz de brilho para olhar a tarde deitada sobre o rio, o seu corpo extenso a praticar pássaros feridos entre as barcas, travessias de gente triste que faz da vida ponte e pressa para o lado desconhecido da chegada inadiável – voz colectiva de um rumor à espera dos olhos da multidão que se agita, se agride mas já não olha este rio também meu,
o seu nome é tejo – e há mil sotaques no corpo do seu dizer
invoco os pássaros que hão-de passar sem pousar e as gentes que hão-de chorar em segredo – é ténue a brisa e nada esconde este nevoeiro de brando inverno que os velhos trazem nas suas mãos nuas
a tarde é um espelho do meu vazio em silêncio – grito por dentro, espero o último raio de sol sobre o teu dorso pacato, aguardo o rumor de todos os olhos que hão-de cegar,
Lisboa fica tão perto, tão deitada, tão quieta, tão pura, tão bela
e eu que nada sei do que vejo ou sinto, experimento esta saudade perdida entre os meus dedos frios e o cachecol destas águas envoltas em mistério e correnteza
invoco os pássaros que hão-de chegar sem nunca serem vindos tão perto
é esta a melodia do teu corpo?, é esta a voz das tuas chagas?, é este o medo leve a que convidas e assim me libertas para que o meu corpo lento seja o teu voo? é a esta oscilação que me trazes – para que o meu assobio seja a tua voz…?
redondas, as nuvens adormecem para sul; para lá do pão e do vinho, para lá do sonho.
…
não há mais palavras.
isto são apenas restos das recordações aquáticas que o vento pensou roubar-me no momento em que o roubei – e as retive em mim…
adeus pássaros, adeus gente triste.
…
dentro de mil sotaques, súbito, o meu desejo: Lisboa fica tão perto, tão bela…; não há mais palavras no corpo desta saudade: o teu nome é tejo.
Publicado no pnet literatura