Lusofonia, identidade e diversidade na sociedade em rede
A lusofonia, enquanto comunidade imaginada, configura uma ideia que pode ser abordada sob vários pontos vista. Tratando-se de um projecto com um passado de cinco séculos - assente no denominador comum que a língua portuguesa constitui - a lusofonia é, simultaneamente, um projecto disperso por vários espaços em todos os continentes do globo, nos quais habitam cidadãos de diversas etnias e com diferentes culturas. Interessa, por isso, fazer uma reflexão que nos permita compreender a complexa construção da lusofonia na contemporaneidade, para podermos perspectivá-la no futuro.
Em primeiro lugar, deveremos ter em conta que o passado recente foi marcado pela História de um espaço lusófono pós-colonial, estilhaçado e reconfigurado num conjunto de nações independentes e geograficamente distantes entre si. Talvez por isso mesmo, a relação entre os países de língua portuguesa se encontre, ainda hoje, sujeita a um conjunto de contradições e de dilemas que vão adiando a desejada aproximação capaz de formar e de consolidar a consciência colectiva de uma comunidade lusófona.
Ao mesmo tempo, a lusofonia tem sido, tradicionalmente, entendida à luz de um conjunto de dimensões que se afiguram cada vez mais redutoras: a dimensão geográfica, que reúne os oito países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP); a dimensão política, que se confina ao conjunto das comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo; e, finalmente, a dimensão histórico-cultural relacionada com o legado português em vários pontos do globo durante a expansão marítima e o império colonial. Como não perceber em cada uma destas dimensões, e citando Moisés de Lemos Martins[1], «um espaço de refúgio imaginário» e de «nostalgia imperial»?
É deste modo que a lusofonia se arrisca a cair num equívoco conceptual que devemos evitar: constituir-se como uma maneira cómoda de designar os países resultantes da colonização portuguesa.
Em segundo lugar, as políticas da língua levadas a cabo nos países lusófonos - que nos apresentam a proposta de um novo acordo ortográfico, com o propósito bem intencionado de preservar o principal factor identitário desta comunidade imaginada - têm sido acolhidas e integradas de forma diversa, representando hoje uma das mais acaloradas discussões no espaço da lusofonia. Aliás, há quem considere que este acordo representa uma ameaça às variantes do português oral e escrito utilizado em cada um dos países lusófonos, estando estas simbolicamente associadas à afirmação da diversidade e à preservação das identidades locais.
Todavia, a globalização e o novo paradigma comunicacional baseado na convergência e na ampla utilização de infotecnologias – a sociedade em rede – tem vindo a convocar um novo lugar para a lusofonia, no qual se estabelecem redes virtuais de comunicação entre cidadãos que pensam, sentem e falam em português: o ciberespaço.
Conforme nos recorda Frank Webster[2], todos assistimos, nos últimos anos, à acentuada redução dos preços do material electrónico e informático, ao mesmo tempo que nos íamos rendendo às suas indiscutíveis capacidades de processamento, armazenamento e transmissão de informação. Paralelamente, a convergência de redes informáticas e de telecomunicações permitiu o desenvolvimento de meios de gestão da informação e a sua distribuição extensiva, bem como a possibilidade de estabelecer ligação, em tempo real, entre espaços físicos longínquos.
Se relacionarmos esta nova realidade comunicacional com o poderoso factor identitário que uma língua em comum pode constituir, estaremos em condições de reflectir sobre o contributo do ciberespaço para a aproximação entre cidadãos falantes de um mesmo idioma. E se pensarmos numa língua falada por muitos milhões de cidadãos, dispersos por todos os cantos do mundo, pertencentes às mais diversas etnias e culturas, esta reflexão afigura-se ainda mais pertinente. Trata-se do caso da língua portuguesa.
Em poucos anos, milhares de sites, de blogues e de fóruns em português inundaram a internet, tendo-se tornado a língua de Camões uma das mais influentes na World Wide Web. Segundo a Internet World Stats, em Junho de 2010, este dispositivo era utilizado por 1 966 514 816 de pessoas em todo o mundo. Os utilizadores lusófonos eram, aproximadamente, 82 548 200, representando a quinta comunidade linguística com maior representatividade no ciberespaço, como é possível verificar no gráfico que a seguir se apresenta. Estamos, assim, em condições de propor de uma dimensão virtual da lusofonia.
No entendimento de Pierre Lévy[4], a propagação do ciberespaço à escala planetária criou um terreno propício para o desenvolvimento de uma inteligência colectiva, capaz de englobar a diversidade, e um território configurador do espaço público necessário à intervenção de uma sociedade civil com consciência global.
Admitindo esta visão optimista sobre o potencial contido na sociedade em rede, poderemos perspectivar uma dimensão virtual da lusofonia que englobe e preserve a diversidade de práticas culturais presentes nos lugares onde se fala o português, garantindo a tolerância e o respeito pelas diferenças? Que contributo poderá oferecer o ciberespaço à consolidação da consciência colectiva de uma comunidade lusófona?
De momento, não é possível responder a estas questões, uma vez que é ainda claramente insuficiente o número de estudos dedicados aos efeitos produzidos pela sociedade em rede no espaço lusófono. Todavia, é com satisfação que verifico que, em várias universidades portuguesas e brasileiras, investigadores da mais reputada qualificação e das mais diversas áreas científicas (Língua Portuguesa, Ciências da Comunicação, Estudos Culturais, etc.) se têm vindo a dedicar ao estudo destas questões.
Na era da Internet, não deveremos perder de vista a tensão entre identidade e diversidade lusófonas até porque, e convocando o pensamento de Helena Sousa[5], a lusofonia é «uma construção extraordinariamente difícil». Aliás, a retórica tradicional da lusofonia tem persistido, não raras vezes, numa espécie de nostalgia do império, subvalorizando a diversidade cultural que cinco séculos de aventuras associaram à experiência de todos os cidadãos que pensam, sentem e falam em língua portuguesa.
Será, por isso, importante - e talvez também urgente – que todo um conjunto de políticos, intelectuais e académicos, que têm trazido à luz numerosas pistas sobre a complexa construção da identidade lusófona, reflicta sobre o contributo que o ciberespaço oferece à reconfiguração de uma lusofonia mais englobante e mais plural.
artigo publicado originalmente na revista PESSOA
[1] Professor Catedrático de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho (Portugal).
[2] Diretor do Departamento de Sociologia na City University London (Inglaterra).
[3] Fonte: Internet World Stats (www.internetworldstats.com/stats7.htm).
[4] Professor de Sociologia da Comunicação na Universidade de Otava (Canadá).
[5] Professora de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho (Portugal).