Matana Roberts: tecer o tempo do agora

Caminhar através dos séculos

através do tempo

dos vivos e dos mortos

 *

Caminhar uma estrada

de onde partiremos amanhã

para chegar ontem

(Anise Kolz)

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Tomada de saudades de Filomela, sua irmã mais nova, Procne, casada com Tereu, rei da Trácia, pediu ao marido que a fosse buscar a Atenas. Tereu anuiu e dirigiu-se para o palácio de Pandião I, rei de Atenas e pai de Filomela e Procne, e que lhe havia oferecido esta última em troca de um favor de guerra, que lhe confiasse a guarda de Filomela. Pandião hesitou mas acabou por aceder, exigindo a Tereu que a protegesse como se fosse sua filha. Pelo caminho, porém, Tereu não resistiu à beleza de Filomela e violou-a, abandonando-a de seguida não sem antes lhe cortar a língua para que não o denunciasse. Privada da sua voz e impedida de se encontrar com a irmã, Filomela teceu, com fios vermelhos sobre tecido branco, uma tapeçaria com o relato do terrível episódio e fê-la chegar a Procne que, enraivecida, matou Ítis, seu filho com Tereu, assou a sua carne e deu-a a comer ao marido, exibindo-lhe depois a cabeça da criança. Procne e Filomela, entretanto reunidas, pediram aos deuses que as transformassem em pássaros, para escaparem à vingança de Tereu. Procne foi então transformada numa andorinha e Filomela num rouxinol.

Este episódio mitológico, como sempre sucede, foi sobrevivendo à passagem dos séculos sujeito a muitas versões dos seus detalhes, incluindo o que se refere aos pássaros em que foram transformadas as irmãs. Mas tomemos como boa a versão de que Filomela virou rouxinol, não só por se tratar de uma das mais comuns como por ser a mais coerente com o reconhecimento de um paradigma. Como sabemos, nós e, melhor do que nós, os deuses, nos rouxinóis só o macho canta, e fá-lo com recurso a uma grande variedade de técnicas, cabendo à silenciosa fêmea deixar-se seduzir pelo apelo do macho. Apesar de salva pelos deuses, a Filomela não foi permitido, mesmo assim, recuperar a sua voz. Mas o que nos mostra o mito é que Filomela pôde dispensar a voz para contar a sua história. Que o tenha feito tecendo revela-se decisivo, não para, uma e outra vez, reafirmar a suposta astúcia particular das mulheres, mas para identificar na subversão dos dispositivos da narração uma potência de resistir. Numa técnica de composição que vive da possibilidade infinita do fazer e do desfazer, do tecer e do destecer, pode a fala múltipla e fragmentária da figura do oprimido opor-se à violência declarativa do poder, um fio vermelho que, na sua entrançadura, produz o imprevisível contra a totalidade branca do tecido.

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Francesco Salviati, Il Tempo come Opportunità, c. 1545Francesco Salviati, Il Tempo come Opportunità, c. 1545Um outro aspecto relevante no mito de Filomela é a opção de Procne: matar o filho e dá-lo a comer a Tereu. Também aqui importa menos o juízo moral que de pronto se abaterá sobre uma mulher que comete a infâmia maior de matar o próprio filho, mais a mais para do seu corpo fazer uma refeição de carne assada, mas sim o simbolismo da força que Procne toma nas suas mãos. Ao arrepio do papel destinado às mulheres de geradoras de vida e cuidadoras dos homens, as que trarão ao mundo ou os novos guerreiros ou as que deles cuidarão, Procne resgata para si uma função exclusiva dos homens, a de gerar a morte. Procne entra, desse modo, na guerra.

Por outro lado, ao dar a comer a Tereu o corpo do filho de ambos, exibindo-lhe depois a cabeça da criança, como um troféu, Procne ensaia um duplo golpe. Confronta-o com o fracasso da projecção de si (de Tereu) no filho, o herdeiro das armas e da força da guerra, ao mesmo tempo que o condena a transportar nas suas entranhas um pedaço de si (de Procne), como se o seu corpo, daí em diante, não fosse já apenas o seu corpo mas o lugar, o útero fecundado, onde habita o monstro que manterá para sempre viva a sua derrota. Ainda que em sentido inverso, um pouco como o corpo dos índios caetés passou a ser outro corpo no momento em que comeram Pero Fernandes Sardinha, o famoso Bispo Sardinha, em 1556, na sequência do naufrágio junto à foz do rio Coruripe da nau que o transportava. Para Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropófago (1928), e para os restantes entusiastas do movimento antropofágico, a deglutição do Bispo Sardinha pelos índios inaugurou um novo corpo, mas também uma nova linguagem. Muito embora ainda sujeitos a uma certa quimera identitária, uma obsessão pela redução a um nome, o corpo informe e monstruoso e a linguagem múltipla e imperceptível que a intuição daquele grupo de modernistas brasileiros nos sugere são a carne de todas as lutas e a fala que se tece para lá da voz silenciada do oprimido. Um corpo e uma linguagem incompreensíveis pela abstracção cronológica da narrativa do poder, que não começam nem terminam, que se estilhaçam e fragmentam.

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Seja o Brasil ou Marie Thérèse, parece tantas vezes ser o nome, mais do que um ponto de partida, um fim a atingir. Coincoin, escrava no Louisiana, nascida em 1742, foi libertada em 1778, casando com um comerciante francês e tornando-se, ela própria, plantadora e proprietária de escravos, ainda que, ao que se sabe, como expediente para assegurar a mais escravos as condições para a sua libertação. Outra das mudanças que lhe trouxe a libertação foi a aquisição de um nome. Passou a chamar-se Marie Thérèse ditte Coincoin, não assumindo, como seria habitual, o sobrenome do marido. O mais interessante, porém, é a introdução do adjectivo ditte, uma espécie de modificador que coloca um nome entre aspas, um nome que não é bem um nome ou, melhor, um nome composto por nomes por direito próprio mais um nome que não se sabe bem o que é. Ao manter no seu nome, depois de libertada, a designação por que era conhecida (dita, ditte) enquanto escrava, Coincoin1, tal como Marcos era gay em São Francisco e todas aquelas coisas em todos aqueles lugares, também passou a ser Filomela tecendo, o índio comendo o bispo ou Militão Ribeiro preso, moribundo, escrevendo com o seu próprio sangue cartas aos seus camaradas. Um nome que não é um nome mas uma ressonância. Palavras que resistem a ser palavras.

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Matana Roberts, por Anna NiedermeierMatana Roberts, por Anna Niedermeier

Coincoin era também a alcunha pela qual Matana Roberts era tratada pelos pais em criança. Compositora e improvisadora, saxofonista e clarinetista, produtora e performer, Matana Roberts é uma das figuras fulgurantes da cena da música jazz e experimental norte-americana das últimas quase duas décadas. Um dos pilares importantes do seu percurso é justamente Coin Coin, um projecto monumental de doze álbuns que pretende contar uma história dos afro-americanos, dez gravados com um grupo e dois a solo. O primeiro capítulo, Gens de Couleur Libres, de 2011 e o quinto, In The Garden…, acaba de sair, em Setembro passado, sempre através da chancela canadiana Constellation Records. Pelo meio, Mississippi Moonchile, de 2013, river run thee, o primeiro a solo, de 2015, e Memphis, de 20192.

Os cinco álbuns até agora publicados são muito diferentes entre si, mas têm uma marca impressiva que os atravessa, uma técnica de composição que Matana designa por «panoramic sound quilting». O verbo «to quilt» é de difícil tradução para português. Talvez possamos assumi-lo aqui como uma forma particular de tecer que junta fragmentos de diferentes proveniências, compondo uma espécie de mosaico de retalhos, um «patchwork», outra palavra sem equivalente em português, um objecto que tanto se mostra pela soma das suas componentes como se desdobra pela imprevisibilidade desse encontro e das ligações que entre elas se estabelecem. Trata-se sempre de uma obra inacabada, porque aberta ao acrescento infinito de novos retalhos, mas que nunca verdadeiramente começa. É sempre um recomeço, uma reactivação e uma ressignificação dos fragmentos previamente existentes.

Aplicada à produção sonora, a técnica do quilting é particularmente frutuosa. Nas faixas que integram os vários capítulos de Coin Coin cruzam-se, sem hierarquia, uma infinitude de camadas de muitas naturezas, quer sonoras quer narrativas, ruídos, cantos, a vida de Coincoin, leituras, mantras, gravações de campo, as memórias da avó de Matana, as que podem ser contadas e as que permanecem silenciadas, saxofones, uma jovem cujos pais foram mortos pelo Ku Klux Klan, uma familiar ancestral de Matana que sucumbiu a complicações decorrentes de um aborto ilegal, sussurros, ecos, as árvores do Sul, Malcolm X, gritos. Tudo entretecendo tudo, tudo deglutindo tudo, tudo em relação com tudo.

As técnicas inovadoras de composição e de notação3 usadas por Matana não deixam certamente de corresponder a escolhas estéticas e artísticas. Mas é relevante que a própria se veja mais como uma artesã do que como uma artista, por incluir o fazer artesão uma dimensão artística mas não se esgotando nela. Numa entrevista de 2015 ao site The Quietus afirma que adora «as tradições artísticas populares. Americanas ou outras. A arte era parte do artesanato, mas o foco não era a arte, o foco era o uso e, de um modo geral, o uso comunitário. Entusiasmam-me as possibilidades dessa perspectiva». Por outro lado, tal como para Filomela privada de voz, poderíamos perguntar que outra hipótese haveria para uma história dos oprimidos que não esse movimento sem fim de tecer e destecer? Matana Roberts, que frequentemente se refere a si própria no plural, pode ser um nome desse movimento. Uma vez mais, um nome que não é bem um nome, mas um artifício. Tal como a história que escutamos nas faixas de Coin Coin não é bem uma história. É talvez uma manifestação do tempo do agora, o Jetztzeit de Benjamin, o instante que baralha a cronologia, aberto à escuta da experiência, e que pode, eventualmente, abrir uma hipótese de ruptura.

  • 1. Não se conhece a origem do termo Coincoin, pelo que talvez possamos ensaiar uma leitura que pegue no duplo significado da palavra coin, o substantivo moeda e o verbo transitivo (aquele que sempre espera algo que o prossiga) que sugere o gesto de criar, inventar, e o faça coincidir com a dupla natureza das mercadorias, abstracção e concretude, valor e utilidade.
  • 2. Pode-se ouvir tudo aqui.
  • 3. A notação de Matana, inspirada nos trabalhos do maestro Lawrence D. “Butch” Morris, que desenvolveu a Conduction, um conjunto de técnicas de condução para a improvisação livre (www.conduction.us/), é composta por colagens que, mais do que indicações, lançam pistas aos músicos para que, a partir daí, improvisem. Alguns exemplos das suas partituras podem ser consultados no seu site, em www.matanaroberts.com/archive/graphic-score-excerpts.

por Fernando Ramalho
A ler | 28 Dezembro 2023 | Coin Coin, jazz, Matana Roberts, mito, tempo, Walter Benjamin