"O outro pé da sereia": o diálogo entre história e ficção na representação da África contemporânea

Nós também não sabemos de onde viemos… Mia Couto

A África foi, por muito tempo, representada no imaginário do homem ocidental como um continente misterioso, mítico, vasto e bárbaro. Essa imagem, construída a partir de uma ótica eurocêntrica, tem sido perpetuada não apenas na literatura, e na mídia em geral, como também nos bancos escolares. A hegemonia do sujeito branco e ocidental formulou imagens de um “outro” africano que se opõe à imagem que tem de si mesmo:

“Ao lermos os textos europeus que retratam o africano (o mesmo sucede, aliás, se interpretarmos ícones), mesmo os mais descritivos, temos de partir sempre do princípio de que estamos perante representações, o que é dizer, perante (re)construções do real. […] Essa construção faz-se de acordo com as categorias culturais e mentais de quem viu, ou (e) de quem escreve […]. A representação é, aqui, a tradução mental de uma realidade exterior que se percepcionou e que vai ser evocada — oralmente, por escrito, por um ícone — estando ausente.” (HORTA: 1995, 189).

Obviamente, esse não foi um processo de mão única. Os africanos evidentemente também elaboraram suas interpretações e significações para o que vivenciavam ao entrar em contato com os europeus. A antinomia identidade/alteridade está, portanto, pautada em representações recíprocas, conforme afirma Horta (1995,191):

“Em suma: as representações recíprocas são uma dimensão essencial do encontro de europeus e africanos, de uma história em comum. Práticas e representações constituem um binômio indissociável. As últimas têm, portanto, um papel coadjuvante na explicação da natureza do relacionamento entabulado entre duas partes que se observam e que interagem. […] Trata-se de uma convergência natural e necessária em todos os fenômenos resultantes do encontro ou confronto de culturas […].”

Marlene Dumas, Losing (Her Meaning), 1988, colecção privada. Marlene Dumas, Losing (Her Meaning), 1988, colecção privada.

Conseqüentemente, a troca de olhares sobre o outro e sobre a própria identidade é um instrumento dinâmico, em constante ressignificação e com múltiplas variáveis.

A mudança de perspectiva em relação ao continente africano teve início um pouco antes das lutas pelas independências, nos anos 1950 e 1960, estendendo-se até o final da década de 1970. A segunda metade do século XX assistiu a uma espécie de revolução nos estudos sobre a África, em parte pela necessidade de construir “histórias nacionais” para cada região “inventada” pelos europeus e reinventada pelos africanos, em parte porque foram os intelectuais a perceberem a importância da elaboração das identidades africanas dentro do continente e perante o mundo. O retorno ao passado em busca de legitimação, de mitos fundadores e heróis passou a ser uma forma de engendrar essas novas identidades e a literatura pós-colonial provou ser profícua nesse aspecto.

Este ensaio busca analisar a via escolhida por Mia Couto em O outro pé da sereia (2006), romance que entrelaça história e ficção, remete à tradição e, ao mesmo tempo, lança à África, e a Moçambique, em particular, um olhar absolutamente contemporâneo.

Em sua obra, Mia Couto, jornalista, biólogo, ex-militante político e descendente de portugueses, opta por abrir mão de um discurso centrado numa abordagem política em prol de uma retórica híbrida e sutil, permeada dos recursos estilísticos e intertextos que, embora atendendo ao gosto do leitor pós-moderno, não se priva de questionamentos acerca dos estereótipos que envolvem a África. Em sua obra, o autor vai além de questões político-sociais contemporâneas, partindo da premissa de que é preciso que o africano reencontre suas origens, suas tradições, seus cultos, suas crenças.

Em O outro pé da sereia, não apenas o choque entre culturas é representado, mas também, e talvez primordialmente, os arquétipos sobre o homem africano. Para tanto, o autor entretece duas histórias paralelas, interligadas por uma personagem. A primeira relata como Mwadia Malunga e seu marido, Zero Madzero, encontram uma imagem de Nossa Senhora abandonada nas imediações do lugar em que vivem; significativamente denominado Antigamente. Mwadia é encarregada de ir a Vila Longe, onde vive a sua família, para providenciar um destino à imagem. Nesta história de retorno à casa natal, nos são apresentados uma série de personagens e seus dramas pessoais. A segunda é uma narrativa histórica, que, em capítulos alternados, conta como a referida imagem de Nossa Senhora chegou a Moçambique, trazida pelo jesuíta D. Gonçalo da Silveira em uma nau portuguesa em 1560.

A imagem, benzida pelo papa, era destinada ao imperador do mítico reino de Monomotapa, a fim de catequizar a região. Os acontecimentos dessa viagem, que em certa medida refletem problemas contemporâneos, envolvem, ainda, o conflito pessoal do jovem sacerdote Manuel Antunes, que será seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e a relação de um escravo, Nsundi, com uma dama portuguesa e sua aia de origem indiana.

A guiar-nos pelo seu universo ficcional, há epígrafes que se reportam aos temas cruciais a serem desenvolvidos metaforicamente no romance, como, por exemplo, identidade, memória, permanência, pertencimento e morte, além do posicionamento do continente frente a um mundo globalizado.

O diálogo com a história

Silva Rego (1971, 296-297) considera que a história missionária moçambicana principia com a expedição dos Padres Gonçalo da Silveira e André Fernandes e do Irmão André da Costa, que fora enviada em 1560 pelo Vice-rei da Índia, D. Constantino de Bragança, com a finalidade de conversão do Monomotapa. Em 1563, Pio IV cria a Administração Eclesiástica de Moçambique e Sofala.

A atuação missionária da Igreja Católica nas terras em que os Portugueses chegaram com a sua cultura andou sempre relacionada com as atividades políticas,

econômicas, sociais e religiosas da Metrópole. Estas acabavam por ter o seu reflexo nos territórios e povos que a Santa Sé confiara a Portugal para evangelizar.

Moçambique pertencia ao Bispado de Goa, desmembrado do Bispado do Funchal em 1534, quando Paulo III, através da Bula Aequum Reputamus, cria aquela nova Diocese. Este novo Bispado compreendia toda a extensão territorial desde o Cabo da Boa Esperança até ao Japão.

No romance, Mia Couto entrelaça diferentes imagens do “outro”, ao relatar, ficcionalmente, a viagem empreendida pelos padres jesuítas. A nau transporta não apenas portugueses, mas escravos africanos e, até mesmo, uma indiana a serviço de uma dama portuguesa, D. Filipa.

Durante a viagem há diversas instâncias em que o choque cultural se manifesta. Boa parte delas gira em torno da imagem da santa, que Nimi Nsundi, o escravo encarregado de guardar a pólvora e gerir os fogareiros, associa de imediato à Kianda.

As águas têm significado especial nas manifestações culturais africanas por remeterem aos mitos de fundação que regem as múltiplas formas de vida. Tal como na cultura cristã, elas fazem parte de um mundo primordial, do qual os seres humanos e o universo descendem. Em Uso e Costumes dos Bantus, Junod (1975, 285-286.) antropólogo suíço que em 1895 dirigiu missão de pesquisa em Moçambique, identificou diversas lendas e costumes, dentre eles um princípio feminino da água que justifica sua natureza germinante e, por isso, procriativa.

Em quimbundo, as sereias são chamadas de “ianda”, no singular “kianda”. Ao ver a imagem da santa tombar no lodo, durante o carregamento da nau, o escravo se atira às águas, evitando que fosse tragada. Mais tarde, ao ver D. Gonçalo da Silveira limpando os pés da santa, diz que ela não havia escorregado; que ela queria ficar ali, no pântano. A devoção do escravo à Santa comove o missionário, incapaz de compreender a quem Nsundi realmente cultuava.

Assim como o escravo, Padre Antunes, que acompanha D. Gonçalo em sua missão, experimenta um contato com a santa que é inconcebível segundo a visão cristã. Sonha com uma mulher despedindo-se dele na berna do rio Mandovi. Ela começa a desvencilhar-se de suas roupas, dizendo-lhe que é deste modo que ele há de lembrar-se dela. Angustiado, o padre acorda e, ao dormir novamente, torna a sonhar com a mulher, que lhe diz para tocá-la, pois ela o fará renascer. No sonho, ele afunda, para ser devolvido à tona pela estranha mulher, que, finalmente, se apresenta como Kianda, embora ainda personificando Nossa Senhora. O sonho é o início de uma crise religiosa e identitária.

Padre Antunes decidira ser padre por conta de um amor proibido e abdica da batina por perceber-se um homem diferente, após o contato com os africanos e a paixão súbita pela indiana Dia, também passageira da nau Nossa Senhora da Ajuda. Os indícios dessa mudança espalham-se pelo romance antes de sua enunciação final, como comprova esta passagem: “Foi então que reparou que estava com as mãos sujas de tinta. Com as mãos negras, ele reentrou no camarote. E com as mãos negras ele se abandonou no rio do sonho” (p.62).

A viagem conduz o padre para longe de sua fé, na medida em que, ao testemunhar as atrocidades impostas aos escravos e os desmandos da igreja católica em Goa, ele começa a duvidar dos preceitos do cristianismo:

“A mais cruel das memórias de Manuel Antunes era de um escravo, que, desesperado de fome, cortou a língua e a comeu. Mais do que uma recordação era um símbolo da condição da gente negra: exilada do passado, impedida de falar senão na língua dos outros, obrigada a escolher entre a sobrevivência imediata e a morte anunciada (p.260)”.

A visão de um porão abarrotado de cargas, a riqueza destinada aos comerciantes, ocupando o espaço da água destinada aos escravos que ali estavam confinados e a certeza de que estes, em sua maioria, não chegariam ao destino, mortos de sede e fome, fazem com que Antunes confronte D. Gonçalo, perguntando: “Como iremos governar de modo cristão continentes inteiros se nem neste pequeno barco mandam as regras de Cristo? (p.160).

Marlene DumasMarlene Dumas

São as obviedades de um cristianismo parcial que fazem com que Padre Antunes perceba que se está convertendo em um negro:

“Até 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar um pequeno incêndio em seu camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas agora era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encrespavam. Não lhe restava dúvida: ele se convertia num negro.

_Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou gostando mais dessa travessia do que de toda a restante viagem.” (p.164)

A fala de Antunes ecoa uma outra fala, a do escravo do qual recebe posteriormente o nome, Nsundi. Ao perceber que a imagem da santa abrigava uma Kianda, o escravo ficara obcecado pela idéia de libertá-la, serrando um dos pés da imagem. Por esse ato, fora aprisionado no porão e ameaçado de morte. Após um momento de transe, enquanto tocava a mbira, o escravo se atira ao mar. Quem se dá conta do fato é Dia, a indiana, aia de D. Filipa, tão subalterna e excluída quanto ele; com quem fizera amor nas águas, por ser ela dona de um corpo que se incandescia ao contato sexual. Naqueles dias, Dia o havia acusado de ter se submetido não apenas à fé, mas ao modus vivendi dos cristãos. Após a morte do escravo, ela encontra uma mensagem que ele lhe deixou. Nessa carta, dentre outras coisas, ele afirma: “A verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós” (p.207).

A travessia de Nsundi é de libertação:

“Eu lhe mostrei na noite em que fizemos amor: na popa da nossa nau está esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo essa para os brancos. A minha Kianda, essa é que não pode ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão fora do seu mundo, tão longe de sua gente. A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho mais tempo. Vão-me acusar dos mais terríveis crimes.Mas o que eu fiz foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua forma original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi retirar o pé que desfigurava a Kianda (…) Agora não tenho mais medo de morrer nem de ficar morto. Foi você quem me ensinou: a melhor maneira de não morrer queimado é viver dentro do fogo” (p.208).

Nsundi referia-se ao fato de que após a morte do marido, Dia cumprira o ritual que dela se esperava, atirar-se ao fogo. Mas, para espanto de todos os presentes, as labaredas não a consumiram e, incólume, ela atravessara o fogo, sendo, a partir desse dia, excluída do convívio com as pessoas da aldeia, que acreditavam que ela estava possuída por espíritos. Da exclusão à escravatura fora um salto rápido, no qual ela “nem notou a diferença”, pois “no mundo a que pertencia, ser esposa é um outro modo de ser escrava”” (p.108).

A idéia de libertação perpassa o romance e está simbolicamente inscrita até mesmo na passagem em que o elefante, que tanto impressionara D. Filipa, é atirado ao mar, para aliviar a carga:

“Como se tudo isso não bastasse, o mestre ordenou que se deitasse ao mar o elefante enjaulado. Os grumetes, de imediato, empurraram a jaula e a custo de muitos braços a fizeram transpor a amurada. A gaiola de ferro tombou com estrondo sobre as vagas, mas não se afundou logo, como era de se esperar. Ficou vogando entre as altas ondas, em vez de se alarmar, o elefante parecia rejubilar em se ver mergulhado nas águas. Quando, por fim, a grade se afundou, o bicho exibia ainda tal felicidade que era difícil sentir compaixão pelo seu destino.” (p.159)

A primeira mensagem de Nsundi a Dia rechaça as acusações que ela lhe faz, condenando-o por ter se convertido aos deuses dos brancos, por ser-lhes submisso:

“Não, minha amiga Dia, eu não traí as minhas crenças. Nem, como você diz, virei as costas à minha religião. A verdade é esta: os meus deuses não me pedem nenhuma religião. Pedem que eu esteja com eles. E depois de morrer que seja um deles. Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não vêem (…) é essa a razão por que D. Gonçalo quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não conseguem enxergar. (…) Critica-me por que aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chama isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda (…) De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui.” (p.113)

A identidade, o sentido de pertencimento, a autoconsciência chega até ele de modo inverso. É graças aos rituais e padrões da fé que lhe é imposta que ele aprende o que não é, e percebe a verdadeira dimensão do que fora um dia.

A incongruência do discurso cristão é reforçada na conversa entre D. Gonçalo e Dia, quando aquele se surpreende ao vê-la calçar o morto:

”_Gostavas muito desse homem?

 _Ele era meu…ele era meu irmão.

 _Irmão? Muito estranho. Não seria, vá lá, um meio-irmão?

 _Para nós não existem meios-irmãos, senhor padre. Irmão é sempre inteiro.” (p.205)

Marlene Dumas, Visionaire, 2010.Marlene Dumas, Visionaire, 2010.

Ao desembarcarem em Moçambique e mediante as histórias que ouviram sobre a crueldade dos habitantes do Monopotapa, as reflexões do médico Fernandes, natural de Goa, e do Padre Antunes despertam em D.Gonçalo o firme propósito de enviá-los para serem julgados pela Santa Inquisição. O primeiro ousara afirmar que “quando se inventam assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre eles”; o segundo os compara aos próprios portugueses.

D. Gonçalo começa a defrontar-se com a devassidão moral que reina na ilha:

“Toda a sua vida imaginara que os demónios moravam no outro lado do mundo: em outra raça, em outra geografia. Durante anos ele se preparara para levar a palavra redentora a essa gente tão diversa. Nos últimos dias Silveira confirmara que o Diabo fazia ninho entre os seus, os da sua origem, raça e condição.” (p.255)

O padre vem a descobrir algo ainda mais surpreendente: que lá havia negros que viviam da captura e venda de escravos:

“O padre sorriu, incrédulo: escravos? Xilundo explicou-se: ele era escravo, mas a sua família era proprietária de escravos. Viviam disso: da captura e venda de escravos. O pai enviara-o para Goa, na condição de servo, como punição de graves desobediências. O projecto do pai era simples: preparar o filho para herdar o negócio da venda de pessoas. No processo de ser escravo ele aprenderia a escravizar os outros.” (p.258)

Os registros encontrados no arquivo de Zimbabwe atestam que D. Gonçalo esteve por sete semanas na corte de Nogomo, período em que batizou o próprio imperador, sua mãe e outros membros da corte, até que comerciantes árabes, receosos da intervenção do padre em seus negócios, convenceram Nogomo de que o jesuíta era um espião e que o ato de batismo não passava de um encantamento malévolo, o que determinou a sua morte, por estrangulamento, em 16 de março de 1561.

O contexto da viagem, eixo temático deste romance, e, principalmente, do intertexto histórico, equivale às viagens interiores das personagens em busca de si mesmas, transcendendo o relato que busca explicar o reaparecimento da imagem em 2002, e remetendo a muitas outras viagens no outro plano da história.

A tessitura ficcional e a figuração da África contemporânea

 No plano do mundo contemporâneo, a história é tecida a partir do relato do aparecimento da imagem e da viagem empreendida por Mwadia Malunga, no intuito de encontrar um local para abrigar a santa. O relato entrelaça dois espaços físicos, Antigamente e Vila Longe, que têm papel preponderante no romance.

Desde o primeiro capítulo, a relação entre Mwadia e Zero delineia-se atípica aos olhos do leitor. Ela vive com um homem silencioso, que dizia estar “a esquecer-se” (p.14). Num certo dia, Zero encontra algo que ele descreve como uma estrela que havia caído do céu e, inclusive, queimara-lhe as mãos ao enterrá-la em seu quintal. A suposta estrela nada mais é que uma aeronave em missão de reconhecimento e espionagem que caíra, que, aos olhos do pastor de animais, assumira a forma daquilo que mais se assemelhava à bola de fogo em que se tornara.

Após uma conversa com a mulher, ambos decidem desenterrar a estrela e levá-la para ser enterrada junto ao rio, no lugar do bosque sagrado. Mwadia sabe aquilo não é uma estrela, mas os restos de uma “desembarcação”. No entanto, não deseja desmentir o marido. Naquela noite, Zero sonha que suas mãos se juntavam como duas chamas numa única fogueira, que, em lugar dos dedos, lhe doíam dez pequenas labaredas, até que mãos feitas de água se aproximaram das dele, aplacando a sua dor. Como sonâmbulo, ele repete as palavras da mulher que lhe aparece no sonho.

Essa passagem se reporta a outra de valor idêntico no outro plano da história: à carta de Nsundi, ao relatar a Dia a experiência de rezar:

“Acontecia-me a mim o inverso do que lhe sucedeu a si, Dia Kumari. As minhas mãos se juntavam e pegavam fogo. Em lugar de dedos me ardiam dez pequenas labaredas. Era então que outras mãos, feitas de água, se aconchegavam nas minhas e aplacavam aquela fogueira. Essas mãos eram da Santa. E ela me segredava: __ Este é o tempo da água. Era a voz da Santa que me percorria por dentro. A voz tomava posse de mim. E agora que lhe escrevi a carta, vejo que esta letra não me pertence, é letra de mulher. Meus pulsos delgados se recolhem ao peso de um cansaço de séculos. Meus dedos não têm gesto, meus dedos são o próprio gesto. Eu sou a Santa.” (p.114)

O tempo da água remete a temas e imagens recorrentes na obra de Mia Couto. Ao rio, às margens que estabelecem uma fronteira entre o real e o irreal, ao espaço de Mwadia, que quer dizer “canoa” em si-nhungwé.

 Muito embora Mwadia não fosse apegada às crendices, respeitou o desejo do marido de consultar o adivinho Lázaro Vivo, em busca de permissão para penetrar no local onde a estrela será enterrada. A mulher se surpreende ao deparar-se com a “nova versão” do nyanga, que já não portava mais as longas tranças de antes, nem as costumeiras roupas pretas. Ao invés disso, encontra um homem de cabelo curto e penteado de risca, usando uma blusa esportiva, e portando um celular. Lázaro vinha de Vila Longe, onde fora buscar uma tabuleta para pôr na porta de seu “estabelecimento”.

O modo com que Mia configura a personagem é uma visão irônica da prontidão em que a África se atira em direção à idéia de globalização: “_Eu já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já posso ser contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?”  (p.24).

Em uma entrevista concedida a Celina Martins (2002), Mia Couto expôs a sua visão sobre o choque de culturas em África:

“Esse encontro de culturas é sempre, em princípio, traumático, porque não se trata de um encontro, é uma incursão abusiva. O que chega a estas culturas africanas não são as culturas européias. São emanações, representações simbólicas por via da tecnologia. Mantemos ainda a imagem dos primeiros encontros dos descobridores europeus que trocavam umas bugigangas que reluziam diante dos olhos dos africanos. Estamos mais ou menos repetindo esse modelo de relação. Não existe globalização, o que existe é exportação e imposição de sinais, nem sequer são modelos, o modelo fica junto do produtor, os africanos consomem passivamente aqueles sinais mais brilhantes e apelativos.”

Nesse sentido, Lázaro personifica, no mundo contemporâneo, e no âmbito do consumo, a repetição de uma relação de dominação que se oculta sob a égide da globalização.  É um homem dividido entre as suas crenças e os possíveis benefícios da tecnologia e da modernidade. O romance deixa entrever, no entanto, que seus poderes são reais. É através de Lázaro que o romance introduz pela primeira vez os rumores acerca da morte de Zero.

Após enterrar “a estrela”, Zero descobre a estátua da Virgem, bem como os pertences de Gonçalo da Silveira, que com ela estavam enterrados, e reconhece nela a mulher do sonho. Ao levarem o achado até o adivinho, Mwadia percebe que Zero está sangrando. Para o adivinho, Zero tinha despertado a alma do morto, pois uma pessoa assassinada não descansa como os mortos naturais; vira um gnozi. Dada a impossibilidade, até então não explicada, de Zero voltar a Vila Longe, fica decidido que Mwadia há de fazê-lo.

Ante as muitas dúvidas de Mwadia, Lázaro afirma que ela ficara muito tempo no seminário e acabara por perder o espírito das coisas de seu povo, distanciando-se da imagem de uma africana. Ao que ela responde que há muitos modos de ser africana, perguntando-lhe se ele sabe quem eles são. Nesse ponto, a questão da identidade é retomada, passando a entrelaçar-se com o tema da viagem, resgatando, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Vila Longe se revela como a Macondo de Gabriel García Márquez, elevando a realidade à categoria onírica, sintetizando os mais diversos elementos: a história, a natureza, os problemas sociais e políticos, a vida quotidiana, a morte, o amor, as forças sobrenaturais, o humor e o lirismo.

Conforme afirma o narrador, “a viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessa as nossas fronteiras interiores” (p.65).  A métafora mais importante do romance é o rio, a evocação implícita da sua terceira margem. A caminho, Mwadia reflete sobre a própria vida:

“Mas a vida de Mwadia fez-se de contra-sensos: ela era do mato e nascera em casa de comento; era preta e tinha um padrasto indiano; era bela e casara com um marido tonto; era mulher e secava sem descendência” (p.69).

Em Vila Longe, ela se reencontra com o seu passado, com a mãe que sempre se lamentara de sua partida; com o padrasto que vivia em “trânsito nominal” por acreditar que, ao trocar de nome anualmente, acabaria por viver mais; com as crendices de seu povo e com a novidade da chegada de um casal de americanos, que, pretensamente, viria estudar antigas histórias de escravos.

As relações atribuladas com Constança, sua mãe, que atribui à sua partida a sua crescente abundância de carnes, entabulam uma reaproximação dolorosa, permeada de descobertas, como a morte de Tia Luzmina, irmã de seu padrasto.

Em suas deambulações pela cidade, à cata de suas memórias, Mwadia percebe situações anormais: cães assustados à sua passagem; pessoas cujo reflexo ela é incapaz de ver no espelho; a sensação de irrealidade ao contemplar o padrasto que a esperava do lado de fora da alfaiataria; a sua surpresa ao ouvir o chefe da estação afirmar que ela estivera ali na semana anterior, quando partira há tantos anos.

A chegada dos americanos – na realidade, afro-americanos – traz ao romance um tom de comicidade, uma vez que Mia Couto retrata com extrema ironia a ansiedade do povo em inventar uma África ao gosto do estrangeiro. A comunidade reúne-se para forjar uma memória sobre a escravidão, já relegada ao esquecimento pelas contradições que traz em sua própria constituição, como a captura e venda de escravos, realizadas pelos próprios negros, os vangunis.

Marlene DumasMarlene Dumas

A estada dos americanos passa a ser a grande oportunidade de fonte de renda para uma cidade desolada e entregue ao passado. Nas discussões que se sucedem, Mia deixa entrever algumas questões que lhe parecem cruciais, como, por exemplo, um desfraldar de bandeiras apoiado na questão da negritude, na busca de uma África mítica, que, de certa forma, ignora a realidade da Moçambique contemporânea, fruto de uma intensa miscigenação. O desejo patético do afro-americano que quer ser africano é ironizado no diálogo a seguir:

“_O que se passa, mano, uma tontura?

_Eu só queria beijar a nossa mãe…

_Qual mãe?

_Queria beijar o chão de África…

_Ora o chão, pois o chão de África, mas veja, meu brada, o melhor chão para ser beijado é noutro local que lhe vou indicar, este chão, aqui, é melhor não…” (p.138)


 A relação que o americano Benjamin estabelece com a África é construída através do conceito intermediário de raça; conceito este que ele adquiriu de uma matriz cultural euro-americana. Em conseqüência, suas respostas às questões da identidade africana encontram-se enraizadas na visão arquetípica e romântica que foi o ponto de partida para os africanos que assumiram a bandeira de uma nacionalidade negra pan-africana.

Ao satirizá-lo, Mia Couto tenta encontrar o espaço de construção de uma identidade moçambicana. Conforme afirma Appiah (1997, 115), a relação dos escritores africanos com o passado da África é uma trama de ambigüidades delicadas, “se eles aprenderam a não o desprezar nem ignorá-lo; ainda estão por aprender a assimilá-lo e a transcendê-lo”.

Mia não deixa incólume a ação internacional em prol dos povos africanos. No romance, os afro-americanos sobrevivem por meio de contas superfaturadas para ONGS, como a Save Africa Fund, uma associação religiosa afro-americana, responsável pela verba que o casal trazia:

“Espalhou gorjetas pelos funcionários, polícias, lavadores de viaturas e carregadores de malas. Cada desembolso era cuidadosamente anotado numa pequena agenda em cuja capa se grafava a letra de imprensa: “Project budget”” (p.139)

A percepção aguda de Mwadia lhe faz pensar que “diversas viagens se cruzavam, a um só tempo, naquela casa”: “os americanos atravessavam os séculos e os mares onde se esbatera a sua identidade” e “ela viajava no território em que o tempo nega a converter-se em memória” (p.145). Porém o esquecimento era uma condição necessária : “O tempo existe para apagar o tempo” (p.136).

Em entrevistas concedidas recentemente, durante sua passagem pelo Brasil, Mia Couto disse pretender ironizar e questionar alguns arquétipos sobre o homem africano, principalmente a idéia de pureza ou autenticidade, bem como os lugares-comuns em sua representação: as crendices, a feitiçaria e a sexualidade; como nos mostra o exemplo a seguir:

_Agora que estou no fim da minha vida, posso confessar: as vezes em que eu fiz amor com maior paixão foi com mulheres.

 _A mãe fez amor com mulheres?

Mwadia estava aterrada. Uma mãe não fala de assuntos destes. Muito menos confessa algo tão íntimo, tão chocante.

_Você tem que saber isto, minha filha.

 _Fomos ensinadas a esperar pelos homens. Mas essa espera demora mais que uma vida. Ninguém espera tanto assim.

_Estou espantada, admitiu a brasileira.

_É o que lhe digo: os homens daqui são péssimos amantes.

_Não é isso que consta lá no Brasil.

_Isso é porque não pedem a opinião das mulheres. (p.178)


 A questão da feitiçaria é tematizada em sua relação com as transformações sociais, uma vez que, graças a questões econômicas, perde a sua característica religiosa e passa a fazer parte de uma pantomima comercial. Mwadia é convocada a encenar transes, visitas de espíritos, para impressionar os americanos. Para torná-los convincentes, de dia lê os velhos documentos de D. Gonçalo, encontrados com a santa; à noite vai ao quarto dos americanos e lê os papéis do casal, além de visitar a biblioteca que o padrasto havia herdado. O efeito da encenação é imediato: “Como Casuarino previra, os americanos ficaram fascinados com a sessão de transe (…) Eis África autêntica, repetiam, deleitados” (p.236).

Mas ao envolver-se no engodo, Mwadia faz uma importante descoberta. “Agora ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma” (p.238). Dali por diante, Mwadia e sua mãe passam a fazer visitas prolongadas ao sótão, onde sessões de leitura devolvem à Constança a sensação de vida.

Em seus transes fictícios, Mwadia traz à baila questões que desafiam a busca do americano pelas próprias raízes e aprofundam tematicamente a miscigenação, que, pra Mia Couto, está no âmago das discussões sobre a identidade do moçambicano:

“De olhos fechados, esticou o braço na direcção do afro-americano e clamou:

_O senhor, Benjamin Southman, é um mulato.

_Mulato, eu?

 O ar ofendido de Benjamin suscitou a intervenção de Casuarino. Ora, ele não se magoasse. E acrescentou: Afinal, desde Caim somos todos mulatos. O empresário elaborava com eloqüência: havia a globalização. Ao fim ao cabo, vivíamos a era da mulatização global. E, isso, poucos entendiam. Em terra de cegos quem tem um olho vê menos do que os que nada enxergam.” (p.267) Ao ficar sabendo, em mais um transe de Mwadia, que sua ancestral era a indiana Dia e não uma africana genuína, Benjamin fica transtornado e é levado à casa do adivinho Lázaro, já devidamente prevenido por Casuarino de que devia se desvencilhar de todos os seus artefatos tecnológicos, assumindo uma aparência primitiva: “Tudo selvagem, nada de modernices” (p.270).

Apesar dos pequenos deslizes do adivinho, que, esquecido de seu papel, dirige-se ao americano em inglês, inquirindo sobre os dólares, este parece impressionar-se com a idéia de ser batizado e ter um novo nome, um nome africano. No dia seguinte, batismo marcado, o americano desaparece, deixando alguns dólares em troca de seu novo nome: Dere Makanderi.

A fuga do americano precipita uma série de acontecimentos e revelações. Rosie acaba por revelar que ela e o americano não são casados, que a busca do historiador americano por suas origens era verdadeira, mas que, na realidade, não passavam de uns trambiqueiros, que viviam de cambalachos. Mas essas não são as únicas revelações a serem feitas.

As palavras do barbeiro, o único a se recusar em participar das encenações para os americanos, pontilham todo o romance, como ditados oriundos de uma sabedoria primitiva. Este é um procedimento comum a outros romances do autor, assim como o itálico para discriminar a fala das personagens, o uso dessas falas como epígrafes dos capítulos, a dimensão sagrada da casa, da terra, do rio, do tempo. Neste romance em particular, a voz narrativa adere ao mesmo discurso mágico das personagens, criando sentenças que se assemelham a ditados milenares.

É o barbeiro quem afirma que é necessário “esquecer para ter passado, mentir para ter destino” (p.64). No momento em que se dá conta de que não há como fugir do passado, de que a história se repete, ele aconselha a Mwadia a afastar-se de Vila Longe, perguntando-lhe se nunca ouvira falar de terras que foram erradicadas, que deixaram de constar. Aos poucos, as peças do imenso quebra-cabeça começam a se encaixar.

Por meio de Matambira, ela descobre que a razão de sua mãe ter engordado tanto não fora o desgosto com a sua partida, mas as repetidas surras que levava de Jesustino, o padrasto. Ao inquirir a mãe acerca da revelação, outras mais surgem: seu marido Zero estava realmente morto, conforme várias personagens sugerem ao longo do romance; o padrasto o havia assassinado a facadas, por ciúmes de Mwadia. O romance sugere vagamente o fato de que ela havia sofrido abuso sexual por parte do padrasto, que já tivera uma relação incestuosa com a própria irmã.

Pouco a pouco, Mwadia vai sendo confrontada com o passado que buscara esquecer. Constança determina a ação necessária à libertação de Mwadia: colocar a foto de Zero na parede dos ausentes; aceitar a sua morte.

A viagem de regresso equivale ao retorno aos labirintos da alma, pois, conforme lembra o narrador, “a viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores. Regressamos a nós, não a um lugar” (p 329).Colocando a imagem da santa junto ao tronco de embondeiro, ela segue viagem pelo rio. O rio dos seus medos e dos seus sonhos, o rio que leva ao passado, mas também ao destino. À sua chegada, aguarda-lhe o marido morto, e fica-lhe a certeza de que Vila Longe e seus habitantes há muito haviam deixado de existir:

“Como aceitar que Vila Longe já não tinha gente, que a maioria morreu e os restantes se foram? Como aceitar que a guerra, a doença, a fome tudo se havia ravado com garras de abutre sobre a pequena povoação? Vila Longe cansara-se de ser mapa. Restavam-lhe as linhas ténues da memória, com demasiadas campas e nenhuns viventes.” (p.330)

À noite, ao olhar para o céu é como se este se transformasse na parede dos ausentes em Vila Longe. Nela surgem todos os rostos, seu padrasto suicida, a tia Luzmina, Zeca Matambira, todos. Até mesmo seu verdadeiro pai, que passara a vida como homem e morrera como mulher. Sua mão ergue-se para ajustar à parede um último retrato, a foto do último ausente: Zero, que no leito dormia, sonhando e balbuciando que havia acabado de enterrar uma estrela. Seu último rumo é o rio. O rio do qual era canoa, ao qual se entregaria em definitivo.

Ao longo do romance, percebe-se claramente a imbricação entre o real e o imaginário, entre o fantástico e a realidade, que, segundo o próprio autor, é algo completamente presente na realidade moçambicana, que é regida segundo uma outra ordem de racionalidade.

Ao criar um mundo ficcional em que só o impossível é natural, Mia Couto revisita suas raízes, provando que a palavra é o lugar da construção da identidade, pois é onde a memória é preservada. Ao invés de dar três voltas à volta da “árvore do esquecimento”, como as personagens do romance, o autor opta por outro tipo de questionamento: compete ao homem decidir o que deve ou não ser lembrado.

O outro pé da sereia é, afinal, o que propõe ser a partir do contexto histórico que lhe serve de base: um livro de viagens. Viagens entrecruzadas, nas quais a questão da identidade não é ponto de partida ou de chegada; é o caminho.

 

Referências bibliográficas:

 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

COSTA E SILVA, Alberto. Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

FANON, Frantz. The wretched of the earth. Harmondsworth: Penguin, 1983.

HORTA, José da Silva. “Entre história européia e história africana, um objecto de charneira: as representações”. Actas do Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa: Linopazes, 1995.

JUNOD, Henrique. Usos e costumes dos Bantus. Maputo: Imprensa Nacional de Moçambique, 1974;1975. 2v.

MARTINS, Celina. O estorinhador Mia Couto. A poética da diversidade. Disponível aqui.

COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Rego, António da Silva. Lições de Missionologia. Lisboa: Estudos de Ciências Políticas e Sociais N.º 56, Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, Ministério do Ultramar: 1961, pp. 296-297.

 

Artigo originalmente publicado em Revista Vertentes no. 30 (jul-dez 2007) UFSJ- MG

por Shirley de Souza Gomes Carreira
A ler | 31 Agosto 2010 | História, identidade, literatura moçambicana, Mia Couto