O sal da História na memória da pele
Zumbido do Coração
A luz que fere o corpo
e sangra a sombra ondulada,
uma poça de Sol que se dissipa
com o estrondo de um passo
rápido como um estilhaço
em direcção ao erro sacramental,
a efígie esfacelada
pelo motim dos sentidos
acumulados no corpo clandestino
como um desejo radical, o terror coagulado
nas artérias da memória
reclinada sobre janelas de inferno,
o abismo da verdade ensandecida
cruel como a fome
soletrada pela impotência infantil
sob o peso de chumbo de um cadáver
adiado pela mentira imperecível___
o zumbido do coração
nas arestas silentes do peito, isto é
a música fúnebre do futuro
esgotado no dicionário da salvação,
a manhã grave é um tributo à noite cáustica,
de insónias ásperas,
de sonhos calados,
e lágrimas coalhadas,
as mãos tremem de escuro
na aglomeração de estrelas negras
num céu vazio
como a página rasurada de uma confissão,
as flores são feridas
no rosto da loucura,
são a dor da aurora,
e sepultam as suas cores torrenciais
no chão estrumado de cinzas___
a dança glacial dos seres irreversíveis, erráticos
como nuvens na orla de montanhas adjacentes da solidão,
párias no subterrâneo da luz,
habitantes do eco do vazio
na boca adormecida dos peixes,
náufragos do transe da metamorfose dos sonhos,
esses dejectos vápidos da avidez,
o regresso impossível à cidade espúria
de vultos arfantes como moribundos
nas traseiras de um açougue,
esgares cronometrados sobre a carne marinada no luto,
o tormento crónico da voragem invadido
pelo sangue sepulcral da liberdade,
e cai o pano negro sobre a falência do fogo
na fronteira entre o sono e o pesadelo,
enquanto o vento iça o azul amorfo do mar.
*
Leito de Lábios
Os idiomas rastejam incertos
em busca de um rumo rectilíneo
que desague num sentido claro
como a agitação das ervas, das migalhas de luz,
dos nós do esqueleto,
das colisões de significados ténues
como sombras estilhaçadas
no espelho que duplica o labirinto da viagem
pelas vísceras de noites varridas do lado atroz da Lua,
esvoaçam cinzas de um laço
atado à vela ardida
em prece à demolição das asas do desejo
no leito de lábios íngremes como cerejas,
uma fome lenta do terror da vertigem
como o tremor do sono animal,
o enigma do céu dilacerado num olhar ciclópeo
sobre o abismo da cidade infecta
pela beleza de um delito de Deus___
um cardume de nuvens negras
devora o horizonte,
uma matilha de corações
uiva à intempérie,
seres límpidos como pedras polidas de meteoritos
deslizam sob a pele da água,
um raio ilumina a fúria das árvores,
um sorriso desencadeia uma hemorragia de flores
no asfalto de aço,
o vulto é fértil como um punhado de barro
em que se enterra a semente do sangue,
a boca de Vénus arde como um fósforo aceso na lixa do vento
com palavras soterradas pelas ruínas do espanto
e morde a carne viva da felicidade___
o caminho é antigo como o declínio de impérios
e esconde sob folhas mortas as pegadas dos fracassos das certezas,
como animal selvagem
a verdade ama apenas as causas do seu desastre,
a ferrugem das cicatrizes trepida
na dança primitiva do caos,
o Sol lambe como escamas odoríferas
as margens apocalípticas de um corpo
fugaz como um sonho,
o desassossego que escraviza a esperança
sustém a lâmina que degola a paixão
como átomo último da Humanidade,
cercada pela tua respiração.
*
Madrugadas
Quantas noites comemos vivas
quantas estrelas inalámos
quantos sonhos devorámos crus,
infligimos realeza à carne mártir,
o Sol sobrevoa-nos como um abutre de fogo
em busca de carcaças de feitos gloriosos
num deserto de quimeras___
crepita em mim um coração sórdido
que arde contra o muro húmido do teu silêncio,
esse coração vil ascende ao teu rosto
como uma trepadeira que afaga as tuas lágrimas,
rumores longínquos de deuses desmoronados
chegam-nos no uivo do vento
que nos ergue acima dos cumes de montanhas negras
donde avistamos os abismos das nossas sombras,
os ecos dos nossos gritos rasurados___
sela comigo um pacto de sacrilégio,
no labirinto dos desejos
levantemos o pó de caminhos áridos e tortuosos,
despe as asas como uma crisálida,
tresanda à vertigem como uma selva,
encarniça-me o olhar com o terror meteórico
da tua nudez,
tenho sede,
cospe a tua dor na ferida
que trago na língua,
quantas madrugadas já submergimos
nos nossos pesadelos.
*
Carta a Timbuktu___
enterremos os mortos
icemos os vivos,
enterremos o homem negro
salvemos o homem africano,
libertemo-nos do homem negro
da sua fome de civilização inchada de luxo
relambido de revolução,
da pressa dos seus passos rumo ao caos na cidade herdada
não ensinada,
saturada de ruína, plena de vazio,
a cidade que grita
por fraternidade e originalidade,
não pela liberdade da mentira e da vaidade,
que grita por água, luz e estômago,
não pela honra oca e pela incompetência,
que grita por seduçãonão por corrupção,
matemos o homem negroessa invenção colonial
salvemos o homem invisível o africano inteiro,
livre e sem complexos,
livremo-nos do homem negro
encurralado em fronteiras alheias,
libertemo-nos da colonização de África
pelo homem negro
emergido da podridão do colonialismo
que não conhece outra linguagem que não a do poder
da podridão da ganância,
da impunidade, da exploração, como o colonialismo
o homem negro propaga-se em ditadura
como se multiplica em democracia
é contagioso como uma patologia venérea
transmissível em orgias de servilismo
em que exibe a sua vã valentia,
é uma estirpe viral
cultivada pelo medo e pela chantagem histórica,
é um espectro ominoso saído das independências africanas
um espantalho mecânico contra pássaros verdadeiramente livres
um revés de avanço contra a salvação do povo negro.
O homem negro busca na memória colonial
o fracasso do seu futuro
um futuro aprisionado nas masmorras
da sua imaginação,
no esgoto da sua falta de arrependimento
ou sentido de culpa,
o homem negro é hoje uma estrela morta
resiste como ruína de um sonho
numa noite que se eterniza sobre os ombros dos náufragos de África.
Profetizava Frantz Fanon que a elite do homem negro
seria um crime tão atroz contra África como o próprio colonialismo, e cumpriu-se.
O homem negro foi o último acto da Modernidade,
a última grande narrativa da esperança,
o mais radical sonho do progresso humano
e apenas triunfou como quimera cintilante
reduzida a um estado sólido de pesadelo
às costas da infância da liberdade,
o homem negro é a máscara da sua sombra branca
contra a qual rasteja ao espelho do Ocidente
sem o qual apenas balbucia ditongos rupestres,
o homem novo que prometera ser
fora tão antigo como a escuridão em que pernoitou
sob o eclipse colonial,
o homem negro crê que o mundo
lhe tem uma dívida eternamas olvida a fé do seu próprio povo
que espezinhou,
o homem negro olvida que o negro apenas será inteiro
aos olhos do mundo
quando África lhe for restituída por inteiro
e que essa África perdida é o seu crime hediondo e imperdoável contra a Humanidade.
Enterremos o homem negroicemos o negro novo.
*
Não existe a Praia
Venho como um náufrago
trago o sal da História na memória da pele,
e espinhas nas pontas dos dedos,
o mar não se repete,
perscruto-o desde o útero,
e escuto-o como o pulsar de um coração alteroso,
germinado sob o pulmão de um céu forte,
é nessa cintura do horizonte
que fixei o tracejado do meu olhar sobre o Mundo,
o Azul não é uma cor, é um filtro óptico
para a absorção da atmosfera,
e da poeira bacteriana nutriente dos ventos do Destino.
Desenho na areia branca
o negror da fome de futuro
no frio rochoso do norte.
É esse o meu berço ocular,
os Trópicos,
onde existe o Mar,
mas não existe a Praia.
*
Pandemia
Lisboa não continua uma cidade fantasma,
Lisboa permanece habitada por fantasmas,
que cirandam pesarosos por ela
como sombras avulsas e absurdas,
destituídas de corpos rubros,
para quem a luz mantém-se branca
como pintura do vazio,
o amargo calor do silêncio
que agoniza nas pedras da calçada
donde se levanta o cheiro do medo,
expresso na penumbra das vitrines
e no fumo dos seus reflexos,
a beleza citadina exangue,
submersa na desolação dos sentidos,
as árvores vergam-se ao peso da tristeza do céu,
as estátuas são anjos ensandecidos,
esquecidos na fuga à liberdade,
a maldição flutua nos olhos álacres dos cães,
e os pombos voam baixo
sobre ruínas de esplanadas e jardins,
vindos das traseiras do Sol,
onde prossegue a contagem macabra do pesadelo.
« a morte saíu à rua num dia assim ».
O látego do luto ensanguenta
a Lua, e a noite torna-se infinita saudade.