The Killing (Keep it Real)
Ela,
Profissão: Rapper
Nome: MC Loudy
Via-se atormentada por algo de inexplicável. As suas letras existiam, as suas rimas aconteciam. Ela seria um corpo transmissor da realidade e suas potências?, intrigava-se. O que viria primeiro, as suas letras, as suas rimas, ou a realidade? Por que razão acontecia as suas composições serem replicadas na realidade? Ou seria apenas uma coincidência intensificada, evidência do que dizia Chuck D, dos Public Enemy, segundo o qual ‘era tudo uma questão de ruído, de fazer muito ruído, e que o hip-hop era a CNN dos jovens negros’? Não conseguia deixar de pensar no álbum «The Sun Rises in the East», de Jeru the Damaja, cuja capa parece ter predito a destruição das Torres Gémeas. O álbum antecipou um acontecimento real, e o mesmo parecia suceder às suas músicas. Assustava-a a possibilidade de ser um espírito cósmico, maligno, demoníaco, resultante de emanações nocivas de magia negra que experimentara em tempos por curiosidade escarninha.
Pensava em D’Angelo, no seu genial álbum «Voodoo», e na espécie de maldição que sobre ele caiu a seguir. Lutava contra esses pensamentos por acreditar ser um ser racional, iluminista, de um iluminismo negro, dotado de uma espiritualidade fértil, carnal, não fria, quente como o hálito dos animais mamíferos. Acreditava na certeza de um Deus único, superior a outros deuses, deuses menores de uma cosmogonia terrestre, deuses missionários, enviados aos homens, como anjos, seriam uma espécie de versão africana dos anjos dos brancos. Seriam deuses emissários de uma força maior, produtores de uma positividade líquida, fecundadores dos corpos e produtores da beleza; seriam os seus protectores, os criadores da sua Arte, inspiradores do Ubuntu-católico da sua alma híbrida e conspurcada. Não acreditava que eles fossem responsáveis pelas consequências nefastas da sua música. Apenas algo mais o poderia explicar. Eram tão literais as semelhanças entre as suas letras rimadas e os acontecimentos, que pareciam essas estar na origem de uma matança contínua:
- motins mortíferos em bairros pobres de LA.
- rappers mortos em disputas de ‘gangs’.
- jovens negros mortos por polícias.
- homicídios causados pelo narcotráfico.
- homicídios de prostitutas.
- homicídios causados por violência doméstica.
- mortes por ‘overdose’ de drogas.
- mortes de imigrantes ilegais.
- mortes de sem-abrigo por frio excessivo.
- morte de presidiários negros inexplicadas.
- morte de Mulheres negras por não-acesso a cuidados de saúde.
Ela foi subjugada pela força perversa da realidade. De uma realidade que corroía os seus sonhos. Decidiu experimentar-se, questionar a matéria dos astros, desafiar os pequenos deuses do destino, inflamar a substância do seu corpo, que julgava ser transmissor de circunstâncias, um animal dos Cosmos transfigurado numa figura fêmea amaldiçoada pela beleza amarga das suas denúncias. Decidiu mudar o tempo e a natureza do Verbo, o organismo da mensagem, limar as suas rimas com uma lixa moral capaz de ocultar os seus verdadeiros medos, cobri-la, a mensagem, com a brancura de nuvens radiantes de uma luz depurada pelas manhãs mais castas, floridas até às raízes da inocência, feridas da impureza da fé numa Humanidade que não existe por decreto.
Passou a cantar a bondade, o Sol, o céu azul sobre o sangue tapado com a sua própria sombra. A ver se o Bem engendrado pelo cálculo, por si cantado, também se transformava em realidade como o Mal:
- a inexistência de sem-abrigos.
- a inexistência de crianças com fome.
- a inexistência de crianças em lares infelizes.
- a inexistência de velhos solitários.
- a inexistência de mortes nas estradas.
- a inexistência de Racismo.
- a inexistência de prisões sobrelotadas.
- a inexistência de mortes por parto.
A realidade, que não gosta de boas intenções, deixou de obedecê-la, e ela sentiu-se livre. Mas não feliz. Libertou-se aparentemente da maldição por cantar o Amor, mas um amor apócrifo. Não se sentia verdadeira apesar de aliviada. Não se sentia inteira. Voltou então à realidade, à violência, de forma ainda mais radical, mas excessiva, mais ruidosa, mas sem cálculos, sem conveniências. Com a consciência das suas causas, e à prova das suas consequências. Com a convicção dos seus limites. Com a sua máxima verdade. Revelou-se-lhe que que deveria operar uma mudança, uma revolução, no seu próprio território, no território da sua maldição. Tinha que ser a mudança necessária em si própria – be the change you desire, disse-se.
Pensava que fazia parte do problema, que era peça do jogo, um ingrediente do sistema, uma articulação capitalista e classista, uma saliência da hipocrisia de valores (algo em que o próprio Hip-Hop se tornou, como dizia Greg Tate). Apenas isso enfraqueceria a Maldição – a Verdade. Para quebrar a maldição a Verdade tinha que ser mais forte que a Realidade. A Verdade era o seu único antídoto contra o veneno da Realidade – cromatizada pela mentira com a colaboração dos seus Negros. Ela antes usava as rimas não como Verdade, mas como sua aparência, como espectáculo, performance, plasticidade. Como lucro. O que não era nem verdade nem mentira, apenas efeitos mirabolantes da Linguagem. Não se tratava de Autenticidade. Era o que a Maldição requeria – Autenticidade. Solidez de simplicidade, nitidez de Humildade. Esperava dos outros Admiração, não Generosidade. Em relação a outros rappers exercia rivalidade, competição e exibição, não complementaridade e singularidade. A Realidade de que tanto falavam e disputavam, era uma realidade aumentada, saturada de vazios, dilacerada por vícios. Só então ela se apercebeu do significado de – (Keep It Real).
[Um dos contos a serem acrescentados em edição aumentada do livro «Ofertório de Pragas».]