Loto

Enquanto inicio a escrita da minha segunda peça teatral, deixo-vos excertos da minha primeira peça, intitulada «Loto».

(…) Vânia – e se ganhassem o Totoloto, que sonhos realizariam?

Os sonhos são como vulcões cujas lavas calcinam o real nas fímbrias da montanha do sono. As suas cinzas entrevecem o submundo das estrelas, numa penumbra de prazeres apoteóticos insuportáveis pela carne no mundo ao vivo. Os sonhos diluem-se no corpo novo, que encharcado de néctares celestes cai no abismo da espertina como uma pluma arrancada com violência de uma ave frágil, em voo rasante sobre águas retintas de infinito. É difícil acordar. Os sonhos estendem-se para além do seu abismo mórfico, como garras narcóticas, selvagens como a sua doce escuridão, como a sua eterna explosão. Em vigília socorremo-nos da imaginação radical para permanecer em contacto com a intimidade dos sonhos evanescentes como fiapos de nuvens. Equivalente ao sonho, a imaginação é a única condição de evidência da realidade.

Ivo – criaria uma Galeria de Arte que em si própria seria um movimento. Um movimento artístico. Dedicar-se-ia à Arte enquanto lugar de interface com a Tecnologia. Vivemos uma era de extrema experiência tecnológica, e a Arte enquanto intérprete radical da realidade não pode eximir-se a entender a tecnologia, e a contaminá-la ao mesmo tempo que se contagia por ela. Martin Heidegger seria um foco inspirador da ideia na medida em que foi um pensador crucial tanto da tecnologia como da Arte. Se para ele a tecnologia continha um poder de revelação, tanto quanto de esmagamento, a Arte era a expressão de uma verdade. Verdade e revelação tornam-se assim um binómio essencial para perceber as múltiplas dimensões experienciais desta era a partir da tecnologia e da Arte. Até que ponto a Arte interceptaria a tecnologia no que essa contém de potencial de acidente, ou de erro, do erro como potência, como argumenta Paul Virilio, sendo a Arte ela própria um acidente criativo, nem sempre previsível ou calculável, devendo o artista estar em permanente estado de alerta criativo, tal como os sistemas de segurança tecnológicos. A galeria representaria, procuraria e proporia, artistas oriundos dessa ‘praxis’, vendo na junção da Arte e da Tecnologia uma partida para as extremidades da beleza, que, como inferia Heidegger, é o ápice sensorial da percepção de uma realidade – objecto, corpo ou imagem. No fundo, a Arte deve algo à tecnologia, no sentido em que ao longo dos tempos, desde os seus adventos e sequente evolução, a tecnologia tem vindo a libertar o Homem para maior usufruto do tempo livre, e logo, para maior exposição a Arte e Cultura, e à sua criação, inclusive. Pelo que a Arte tem na tecnologia um aliado inusitado mas decisivo, apesar de a tecnologia nesse passo beneficiário da Arte ter um lado perverso, ao tornar cómodos os actos da sua manipulação, e tornar em receptoras acríticas as massas a ela expostas – o tal efeito esmagador a que se referia Heidegger. Contudo é aí que entra a Arte e o seu efeito de curto-circuito, ferindo de luz o seu aliado inesperado, revelando o erro que a tecnologia esconde por baixo da aparência de leveza e transparência. Transparência é, por exemplo, o que prometem as Novas Tecnologias de Informação e Sociais, a ponto de falar-se no seu poderio democrático. O que a Arte pode aí operar é um interregno de reflexão e de reparação do aparato de entropia causado pela sobreposição da Opinião Popular e da Opinião Publicada, que acabam por se envolver numa massa nebulosa, ofuscadas mutuamente, inflacionando-se a primeira enquanto veículo de mensagens de valor emocional primário, mais facilmente adoptáveis pela ‘doxa’ da Opinião Pública. A Arte deve, pois, ser imperativa no seu cruzamento com a Tecnologia, no sentido de fortalecer o Pensamento – a escola, os ‘media’, a política -, canibalizando a própria tecnologia. A Arte deve enfurecê-la, dilacerá-la, retirar dela todo o veneno, todas as suas impurezas, exorcizar toda a sua Inteligência Artificial, limar-lhe a lâmina com a qual deve decepar o lugar-comum. Porque, como diria Achille Mbembe, a Tecnologia – tal como a Arte – é também um dispositivo de sonho. E liberdade.  

Doris - encetaria um gesto simbólico de alarme. Pediria a identificação em África de cinco crianças sobredotadas em áreas como Matemática, Letras, Música, Arte e Desporto, e me responsabilizaria pela sua educação até à Universidade, inclusive. Seria um gesto simbólico, mas decisivo para alertar sobre a crise de líderes visionários de que padece actualmente África. O último líder visionário africano foi Nelson Mandela. Há um vazio gritante no continente de vozes inspiradoras e contagiantes. O colonialismo eliminou parte das lideranças históricas de África, mas, paradoxalmente, a maior parte dos líderes que seriam imperiosos no devir pós-colonial de África foram eliminados, assassinados, pelos próprios africanos. A História não se faz sem líderes visionários, sem génios. Foi esse o segredo da revolução europeia – foram os seus génios, religiosos, científicos, políticos e humanistas. É disso que África mais carece para o presente e para o futuro. Aquele que seria o meu gesto simbólico, deveria ser uma preocupação prioritária dos Estados africanos, e uma prática sistemática, tanto mais que África é dotada de uma população extremamente jovem. Há talentos brilhantes certamente por identificar e potenciar. De certa forma o colonialismo prossegue hoje em África, mas sobretudo nas mentes dos próprios africanos, para além das distorções geo-políticas-e-económicas praticadas pelas grandes potências. Hoje, os génios africanos podem não ser eliminados por assassínio, mas são anulados, são escorraçados, são forçados a emigrar, são comprados pelas grandes potências. São desmotivados pelos países africanos com a sua péssima governação e corrupção, ambas moldadas pela incompetência. Os políticos africanos comportam-se como os entregadores de escravos do passado ao alienarem os seus líderes visionários para o estrangeiro. Por exemplo, África precisa urgentemente de instalar capacidade científica e tecnológica. Não pode continuar um continente às escuras em matéria científica, destituído mesmo de parques industriais clássicos. África não teve uma Revolução Industrial, mas apressou-se a absorver o consumo digital sem domínio tecnológico próprio. África precisa de centros científicos e tecnológicos, catalisadores de uma cultura de excelência extrema. A capacitação científica é basilar como factor de arrastamento do desenvolvimento e, para isso, é fundamental começar-se desde já a mobilizar os melhores cérebros do continente, desde pequenos. Seria esse o meu gesto simbólico, e é esse o meu apelo aos governantes africanos, e a todos os que estão de boa fé para com África. 

Pedro – criaria uma Igreja, um templo.

Vânia – um templo?

Pedro – sim, um templo, um templo urbano. Arejado e luminoso. E silencioso. Um espaço em que qualquer pessoa pudesse entrar para orar. Mas não para orar a Deus. Para orar à Humanidade. Para falar consigo própria, para ouvir-se a si própria. Vivemos tão submersos em velocidade e ruídos, sonoros e visuais, que temos dificuldade em nos escutarmos, em ouvir a nossa própria voz, em reflectirmos sobre nós, sobre os nossos sentimentos, os nossos sonhos. Seria um espaço em que rezaríamos para um Deus dentro de nós. Deus se está em toda parte, está também dentro de nós, de nós ateus. Deus não será um ente raivento e autoritário, que requeira rituais de subjugação, sacrifícios e orações encomiásticos, uma atitude submissa dos crentes. Deus se existir, há-de desejar a máxima simplicidade e informalidade, frugalidade. A nossa verdade mais despida possível de artifícios e cerimoniais. Seria um Deus das nossas imperfeições, das imperfeições das coisas, dos detalhes ínfimos, das fissuras, das insignificâncias, da beleza elementar das palavras e dos signos. Deus está dentro do que somos, somos Deus, Ele escuta-nos pelo silêncio, pela respiração, pelos gestos, pelo sexo, pelo riso, pela entre-ajuda. Deus está na atenção – a atenção é tudo, como diria Susan Sontag. A compreensão é o resto, faz o resto.

cronómetrocronómetro

nem sempre o sentimento 

é o modo mais completo de sentir.

Ao fundo do sentimento, entendível 

como sensação interior do carácter, 

existe a Compreensão, 

que se compõe de três estados,

percepção, apreensão e intuição. 

Esses três estados formam 

o modo mais completo de sentir,

porque envolvem as três dimensões 

funcionais do corpo humano,

o físico, a mente e o espírito. 

Pretender conquistar um corpo

pelo físico apenas 

é um erro crasso, como é 

tentar seduzi-lo somente pelo intelecto.

A terceira dimensão é de todas

a mais importante. Nela se deposita

a essência do que é humano. A síntese

da luz. É dela a última captação 

do significado de uma experiência. É dela 

a definição do que é a Beleza

para cada indivíduo. É dela a única

possibilidade de Deus. « O prazer

mais nobre é o júbilo da compreensão », 

dizia Leonardo Da Vinci. Não sem

propriedade, pois só a compreensão permite

que o corpo se entenda a si próprio

como um todo, como pertencente 

à mesma corrente ou fluxo de uma realidade

que o intercepte ou interpele___

como dizem os anglófonos, 

com implicação distinta, a compreensão

é um acontecimento totalitário, no sentido de total —

‘Comprehensive’.

A compreensão é da natureza da Poesia,

ou mais ainda, da Poiesis, da Criação,

da Imaginação, do Sentimento.

A compreensão clarifica-se nas suas zonas

de sombra, produzindo lógica

a partir da acumulação de sentido,

processo em que o cérebro funciona 

como agregador e multiplicador dos sentidos,

retirando daí a sua inteligência e consciência.

A Atracção muitos argumentam ser um modo radical

de aproximação a um corpo,

provocando até um estado amoroso de viciamento,

o que tantos entenderão ser também o estado máximo 

de Desejo.

Mas a atracção só por si não é um estado duradouro,

é um estado parcial, precário,

necessitado de solidez, de compreensão,

de totalidade psicossomática,

apenas daí nasce o que tantos definem como

Amor,

que mais não é do que um estado consumado 

de decifração do Outro,

e de encontro nele de elementos de compatibilidade

reiterados, difíceis de encontrar em outrem -

este é o estado compreensivo do desejo —

o Desejo produtivo, não apenas transitivo.

Sem compreensão não há códigos,

e sem códigos não há Humanidade,

não há desejo.

Sem Compreensão não há Desejo.

A Compreensão está para o Corpo

como o Fogo está para a Natureza.

O fogo é o derradeiro domínio da natureza,

como a compreensão o é do Humano.

A Compreensão ordena o caos do Desejo.

Seria um espaço em que se buscaria a compreensão de nós próprios e dos outros, em que escutaríamos a luz e acenderíamos o silêncio. Em que observaríamos a presença do ar. Em que descobriríamos em nós novos segredos, outros murmúrios para além dos necessários. A oração seria um acto de contemplação, em que os nossos corpos seriam eles próprios templos sagrados porque habitados pela beleza da fome, da pureza da água que escorreria a um canto. Seria um espaço de salvação de Deus, em que Deus seria liberto das grilhetas, da pressão, das religiões, e correria livre no sangue das pessoas livres, ardentes de paixão e carregadas de flores, que escutariam o mundo dentro das suas mãos em concha – seria esse o gesto oratório. Cada palavra segredada dentro de cada um selaria um pacto de salvação com o paraíso, que não teme o pecado, antes o celebra como acto digno de compreensão. Não haveria castigo, apenas atenção. E intimidade.

Vânia – humildemente iria fazer uma volta ao mundo em cruzeiro. Para conhecer-me melhor, para saber qual a força das minhas raízes. Porque, no fundo, a viagem é o regresso. Importa saber até que ponto a casa, e as raízes, sofrem o abalo da viagem. Porque os que regressam correm o risco de estar sempre de partida. E os que não regressam correm o risco de nunca ter partido. Há dois tipos de viajantes – os que levam as suas raízes, e os que esquecem as suas raízes. Qual deles o mais verdadeiro? Qual deles seria eu?

( … )

por Brassalano Graça
Vou lá visitar | 2 Fevereiro 2025 | África, teatro