Pancho Guedes e todas as artes
O “mundo” da colónia, de que a capital era o palco principal, estava longe de ser homogéneo e proporcionava, por isso, algumas oportunidades. Nele, “tudo parecia ser possível”.
Pancho Guedes terminara o curso de arquitectura em 1949 mas não deixara de lado a pintura, a sua vontade de ser pintor. Os muralistas mexicanos e alguns pintores pós-cubistas eram algumas das suas referências nessa época . Frequentara o meio artístico de Johannesburg, participara em exposições.
Regressado a Lourenço Marques desde logo abraçou todas as artes. A começar pela pintura. João Ayres era então uma figura marcante, inspiradora, como disse Pancho Guedes, alguns anos mais tarde, referindo-se ao artista : “João Ayres foi o grande perturbador artístico de Moçambique; foi ele o primeiro que aqui vigorosamente anunciou e demonstrou as visões do nosso tempo; foi ele quem durante anos influenciou e guiou quase todos aqueles que então aqui pintaram”. Parece ter sido com este artista, então um amigo, a sua primeira exposição na cidade, uma exposição que, como disse em várias ocasiões, causou escândalo e foi censurada. Quando terá acontecido? Encontrámos registo, até ao momento, da participação de Pancho Guedes numa exposição em 1950. Será esta a exposição a que se refere? Tratou-se do 1º. Salão de Artes Plásticas de Moçambique onde apresentou dez trabalhos. Devem ter sido pintados ainda na África do Sul. Um deles (“A Pedrada”) consta no catálogo da sua recente exposição no Museu Colecção Berardo. Talvez nesta mesma altura se tenha tornado sócio do Núcleo de Arte, o clube de arte que às vezes menciona, e pelo menos a partir de 1952, e durante vários anos, esteve à frente da secção de Crítica e Teoria de Arte. O seu nome aparece mais tarde associado à secção de Arquitectura. Foi acompanhando o que acontecia, mesmo que com alguma distância, o trabalho dos que já eram conhecidos e dos que se iniciavam. Seguiu com atenção, como teve oportunidade de me relevar , o trabalho de Antero Machado com quem trabalhou em alguns projectos e que considerava, na época, “o melhor deles todos”. Antero fixou-se alguns anos depois na África do Sul. Os dois terão trabalhado no projecto do restaurante Zambi, em Maputo, onde se conservam até hoje três murais.
Apesar de Pancho Guedes entender o trabalho da arquitectura como um trabalho parecido com o do pintor, do escultor ou do escritor, em breve o trabalho de arquitecto lhe tomou praticamente o tempo todo. Trabalhando para a Câmara Municipal, colaborando com a Comissão de Monumentos e Relíquias Históricas e tendo, ao mesmo tempo, escritório próprio, ocupava-se da pintura à noite e nas tardes de fim-de-semana, ia acumulando ideias e de vez em quando pintava. “Era irregular, não tinha continuidade, e por isso não fazia exposições”. De facto, a exposição em que participou a seguir aconteceu, pelo que é possível saber até ao momento, apenas em 1957: o I Salão da Câmara Municipal. Organizado pelo Núcleo de Arte teve lugar no âmbito da comemoração das festas da cidade, uma tradição que se manterá em anos seguintes. Participou com cinco trabalhos de pintura , ao lado de João Ayres, Jorge Garizo do Carmo, Bertina Lopes, Rui Calçada Bastos, Ana Maria Graça, Fernando Fernandes, Norberto Geraldes, João Paulo, entre outros.
Para além de pintura, o Salão integrava aguarela, desenho, pastel, cerâmica, trabalhos da escola do Núcleo, de desenho e pintura, arte infantil (do seu filho, Pedro Paulo D’ Alpoim Guedes) e, talvez pela primeira vez numa mesma exposição, arte indígena (primitivos). Esta última secção integrava arte dos maconde e arte dos ronga das colecções de Velez Grilo e Victor Evaristo. A arte dos maconde incluía bustos, esculturas figurativas, esculturas de animais, sem qualquer referência ao autor, data, material, local de produção ou aquisição. A arte dos ronga estava representada por esculturas de animais, serpentes, pássaros, crocodilos, macacos, cágados, recipientes esculpidos, esculturas figurativas (guerreiro, missionário). Tratava-se da procura de uma síntese artística? Apenas de reconhecimento e incentivo às artes locais? De afirmação da igualdade de todas as artes? Amâncio Alpoim Guedes foi um dos organizadores deste Salão que reflectiu alguns dos seus interesses, relações e práticas mas também interesses mais alargados, pelo menos de um pequeno número de outras pessoas.
O próprio Núcleo, provavelmente reflectindo uma vontade oficial da época, já mostrara vontade de participar na criação de um museu de arte que reunisse “a criação artística espontânea do nativo”. Na selecção feita para este I Salão estão reflectidos alguns dos interesses que nortearam parte das colecções que o arquitecto foi constituindo. Os dois, Pancho e Dorothy (Dori), tinham começado a “coleccionar escultura popular local, caixas com serpentes e outros animais, tinham a casa cheia desses objectos”, falavam com as pessoas que os faziam, perguntavam-lhes o que podiam fazer de diferente, estimulavam-nos a experimentar, adquiriam o resultado das experiências. Este interesse foi-se alargando e continuou nos anos seguintes.
O olhar de Pancho via o que muitos não viam, nas viagens que fazia a várias zonas de Moçambique por causa do trabalho, por onde passava diariamente, nas exposições que aconteciam, na escola do Núcleo de Arte onde se iniciavam jovens e menos jovens. Um dos trabalhos de pintura da sua colecção, da autoria de Amaro, de 1957, pertence talvez a Rui Amaro que começara a pintar nesse ano e que vira três dos seus trabalhos seleccionados para este mesmo Salão. Será o trabalho da colecção de Pancho, um deles, “Aquela Casa da Esquina”? Não temos, até ao momento, mais informação sobre o percurso posterior deste aspirante a pintor. José Júlio, a quem Pancho se refere algumas vezes, principalmente pelas relações com Malangatana, e de quem tem um trabalho, era também aluno da escola desde 1957. Continuará a pintar e a desenhar tornando-se conhecido e o seu trabalho será objecto de alguma controvérsia. As opiniões dividem-se sobre se José Júlio é artista moçambicano ou português.
Este período foi para Pancho Guedes, e para os colaboradores de que se rodeou, de grande actividade e experimentação ao nível da escultura, da pintura, dos murais, da arquitectura como está já amplamente documentado. As colecções continuaram a crescer, incluindo um grande número de desenhos e bordados.
Um número cada vez maior de fontes alimentava o seu trabalho. “Polir, rearranjar” era o seu método de trabalho, como diz, um método de trabalho parecido com o do pintor, o do escultor ou o do escritor.
Extracto de “Revisitando os anos em que Pancho Guedes viveu em Moçambique: As artes e os artistas”, in As Áfricas de Pancho Guedes, ed. CML/Sextante, catálogo que acompanha a exposição com o mesmo nome comissariada por Alexandre Pomar, e organizada pela Câmara Municipal de Lisboa, no Mercado de Santa Clara (Lisboa), de 17 de Dezembro de 2010 a 8 de Março de 2011.