Bertina ou a arte de Bertina: mudar e permanecer
Homenagear Bertina (1924-2012), escrevendo sobre a sua produção artística e história de vida, é pretexto para celebrar uma vida dedicada à arte, abordar a coexistência de diferentes práticas artísticas em Moçambique e a sua interligação com a arte da diáspora, a expressão artística da vivência em diversos mundos e de que esta artista é um dos casos mais conhecidos. É a oportunidade para reivindicar a pertença da artista a um continente que é parte integrante do nosso mundo e não a um continente fechado e sobre o qual se projectam ideias preconcebidas e desejos do sonho e do exótico, tais como a ideia de uma África passiva e receptora, vivendo num eterno passado e incapaz de criar e de se modernizar.
É o momento para celebrar uma artista que usou a arte como meio para expressar a sua subjectividade. Uma artista individual, uma artista moderna, nascida em Moçambique, portadora de uma experiência de vida particular, consciente da sua condição de meio-europeia, meio-africana (a dupla consciência), condição que assumiu em diferentes momentos e de diversas maneiras e que traduziu na sua criação mas, ao mesmo tempo, uma artista que assumiu a mudança permanente, uma artista igual aos artistas modernos de todo o mundo. Assim se sentia Bertina e várias vezes o expressou como, por exemplo, em 1985, numa das suas visitas a Moçambique:
“Um artista é assim mesmo. Trabalha, pára, para pensar, volta atrás, recomeça. … Vê Picasso…. Experimentou cerâmica… experimentou bronze. … Eu sou pintora mas gosto de experimentar coisas novas. … Penso que um artista deve experimentar tudo para procurar o seu caminho. … O tempo passou e já não pinto como antes. Sabes, as pessoas evoluem, o que sou hoje não é igual ao que fui ontem. Já não era capaz de fazer aqueles quadros, já não posso pintar as coisas que vivi naquela época. Eu já não sou eu e continuo a ser. Entendes? … A minha pintura hoje é muito diferente. O que não significa que não estejam lá as minhas raízes africanas.”
Os anos de formação, quando saiu pela primeira vez
Bertina fez o seu percurso artístico ao longo do século XX, experimentou a coexistência de diferentes propostas estéticas, viveu a ruptura na prática artística manifestada primeiro na Europa e a partir daí estendida a outras geografias. Tomou contacto com artistas que buscavam a inovação, aderiam e experimentavam propostas novas, questionavam a arte do passado. Mas também com artistas que recusavam os valores da modernidade. Entre estes pólos se fez a afirmação da arte moderna e também o seu questionamento. Foi nesse contexto que a arte começou “a interessá-la a sério”. Apesar das lacunas ainda existentes sobre a sua história de vida, esse interesse parece poder situar-se depois dos 15 anos. Até aí, na sua família, apenas a irmã mais velha se distinguira no desenho e na pintura. Decidiu, pois, estudar arte. Em Lisboa, na Escola António Arroio, uma Escola de Artes Decorativas, onde entre 1945 e 1949 frequentou os cursos de desenhador litógrafo e de habilitação às Belas Artes e depois na Escola de Belas Artes onde se chegou a matricular no Curso Especial de Pintura.
Os sinais do modernismo em Portugal andaram a par, a partir da década de 30, com um período de propaganda e massificação da ideia colonial e de império. Foi nestes anos de ampla propaganda colonial, e mais tarde do que nas outras capitais coloniais europeias, que surgiu um olhar diferente sobre a produção artística dos africanos. A valorização das qualidades estéticas da arte africana, principalmente fruto de interesse individual, estava então muito associada ao interesse pela arte moderna. Conduziu mesmo, à organização de algumas exposições, à edição de um álbum sobre a produção estética das colónias africanas (1934), à realização (1946), por iniciativa estudantil, de uma Semana de Arte Negra na Escola Superior Colonial em Lisboa, iniciativas que se destacaram num ambiente geral de desinteresse e incompreensão.
O contexto político que se começou a esboçar com o final da II Guerra Mundial (1945) abriu espaço à manifestação de uma sensibilidade estética comprometida com a transformação social. Quando Bertina era estudante começaram a acontecer as Exposições Gerais de Artes Plásticas organizadas pela Sociedade Nacional de Belas Artes (1946-1956) que influenciaram muitos jovens artistas na sua procura por uma arte mais interventiva. O brasileiro Cândido Portinari e os muralistas mexicanos (Orozco, Rivera e Siqueiros) eram uma referência estilística internacional importante. A presença do neo-realismo coexistiu com outras sensibilidades estéticas. O surrealismo, a acção libertadora do inconsciente e o potencial onírico do imaginário atraíram também jovens criadores permitindo, nas décadas seguintes, uma tradição de liberdade criativa que incluiu a prática da abstracção contrariando a tendência figurativa da pintura portuguesa, o ressurgimento de tendências já seguidas e o aparecimento de novos valores plásticos. Bertina não ficou alheia a este ambiente que marcou a sua formação e prática artística. Já a viver em Moçambique teve ocasião de expor em Portugal, nesta época. Para além de uma exposição individual participou, em 1959, em exposições colectivas na Sociedade Nacional de Belas Artes/SNBA: 50 Artistas Independentes e 2º Salão de Arte Moderna. A organização destas exposições afastava-se cada vez mais das iniciativas oficiais de um regime que conseguira sobreviver e procurava adaptar-se aos novos tempos. Datam destes anos os primeiros pedidos de bolsas (não concedidos) feitos pela artista à Fundação Calouste Gulbenkian/FCG (1956) conhecida pela sua política de apoio às artes.
Apesar deste contexto, os anos de formação de Bertina Lopes em Portugal foram igualmente marcados pela invisibilidade da arte africana moderna. Esta invisibilidade deve muito à sobrevalorização do reconhecimento da apropriação da arte africana pelos artistas modernos europeus nos primeiros anos do século XX e ao silenciamento da apropriação, mudanças e adaptações que aconteciam, ao mesmo tempo, por parte dos artistas africanos ou, o mesmo é dizer, à incompreensão do duplo sentido da relação que marcou desde então os caminhos das histórias da arte destes continentes.
Explorar o contributo de Bertina para a construção de uma narrativa sobre a história da arte moderna mais inclusiva, que aceita uma multiplicidade de ideias e práticas é um caminho a percorrer. Já o iniciaram os críticos que têm ressaltado o seu excepcional contributo artístico e a sua capacidade de “fundir admiravelmente tradição e modernidade da sua cultura numa linguagem pictórica e escultórica de grande universalidade artística e humana”. Por essa razão recebeu, em 1988, o Prémio da U.E.C.A., União Europeia de Críticos de Arte. Mas este é também um caminho com muitas direcções que se vem fazendo desde as últimas décadas do século XX com a afirmação na cena artística internacional de artistas, curadores, teóricos e críticos de arte africanos vivendo dentro ou fora do continente.
O primeiro regresso
Bertina regressou já adulta ao Moçambique colonial, à sua cidade natal, Lourenço Marques, a actual Maputo, de onde havia partido ainda muito jovem. Viu e sentiu, de maneira diferente, as “outras cidades” junto da cidade habitada pelos colonos e os mundos diversos que coabitavam. Percebeu como a discriminação racial, social e cultural inseparável da situação colonial proporcionava oportunidades diferentes. Conforme se fosse colono, branco ou não-branco, mulato, “assimilado” ou “indígena”.
Tornou-se professora do ensino técnico, lugar a que a sua formação e condição davam acesso. Apercebeu-se dos mundos diferentes que as suas alunas viviam. Dividiu-se entre esses vários mundos procurando conhecê-los. Deu-se conta da coexistência e interacção de dois “tipos” de artistas: o artista africano, negro, e as suas práticas artísticas e o artista que, como ela, utilizava novos métodos e processos de fazer arte, recorria a novos materiais e desempenhava um outro papel social. Encontrou tempo para dar aulas de desenho artístico e pintura decorativa na sede da Associação Africana. Casou com um poeta a quem a pintura sempre atraíra (Virgílio de Lemos/Duarte Galvão, nesses anos o seu heterónimo), foi mãe, começou a construir uma carreira artística.
Na época, no meio cultural local tinham visibilidade, alguns, poucos, professores, profissionais liberais com interesse pelas artes, artistas, aspirantes a artistas, jornalistas, poetas, animadores culturais, jovens que sonhavam um mundo diferente. À volta do Núcleo de Arte (1936) e de outras associações desenvolviam-se iniciativas relacionadas com as artes plásticas e diversas acções visando incentivar as artes e a cultura.
Estas iniciativas destinadas, principalmente, à elite dos colonos eram seguidas pelas gerações letradas e cultas, de mulatos e negros “assimilados”, que emergiram neste mesmo contexto e que puderam desenvolver diversas formas de intervenção social e cultural, através das associações que criaram e dos jornais que fundaram ou em que colaboraram. Poucos foram, no entanto, os africanos, mulatos e negros, que puderam recorrer ao desenho, à pintura, à ilustração ou à fotografia.
Em 1949, na 1ª Exposição Geral de Artes Plásticas de Moçambique, iniciativa do Núcleo de Arte, envolvendo quantos, de norte a sul da colónia, se dedicavam às artes plásticas e à fotografia, a excepção era Luís Polanah que fazia caricatura, desenho e pintura e era colaborador de diversos jornais. Apresentava-se com cinco trabalhos de desenho e pintura.
A proposta de uma exposição que reunisse autores africanos, “artistas de cor”, ignorados ou com vocação revelada e sem escola, feita, no mesmo ano, nas páginas do jornal O Brado Africano, era entendida como um estímulo necessário à cultura artística de Moçambique e simbolizava já os tempos de mudança que se anunciavam.
A necessidade (ou não) de uma escola de arte, para desenvolver o interesse e as vocações que se revelavam, não obtinha consenso entre os diversos intervenientes neste debate. Tão pouco o futuro da arte africana. Nos anos seguintes também Aníbal Aleluia e José Craveirinha se interrogaram sobre a relação entre a arte africana e a arte europeia e a procura de uma expressão africana e mesmo moçambicana.
Bertina e o meio artístico local: se algum deles me influenciou? Penso que foi o contrário, eu é que os marquei a eles…
No pequeno meio onde dominavam os seguidores de princípios estéticos tradicionais a exposição de João Ayres (1921-2001), realizada em 1947, fora a primeira “perturbação artística” no dizer do artista-arquitecto Pancho Guedes. João Ayres mostrara temas locais de cariz social à volta do trabalho e, em particular, do trabalho no cais, temas caros da estética neo-realista e seus desenvolvimentos. Procurava também uma síntese entre as influências europeias e africanas. Era então uma figura inspiradora e que guiava os que se iniciavam. Nos anos seguintes, após a vinda de Bertina, muita coisa ia mudar.
Encontrámos registo, até ao momento, da participação de Bertina no 2º Concurso de Artes Plásticas em 1950 onde apresentou sete trabalhos de pintura (retratos, paisagens e naturezas mortas) e, dois anos depois, no Salão dos Artistas de Moçambique - 4ª Exposição de Pintura, Escultura e Desenho. Apresentava-se ao lado de Frederico Ayres, João Ayres, António Bronze, José Freire, Luís Polanah, Ruy Gouveia, Joaquim Vilela, Jorge Silva Pinto, José Lobo Fernandes, entre outros, com doze trabalhos, principalmente retratos. No 1º Concurso Anual de Artes Plásticas – Artistas de Moçambique, em 1953, participou com nove trabalhos de pintura: retratos, nus, paisagens (do Infulene) e naturezas mortas. A exposição recebeu diversas críticas que os jornais registam. Todas reconheceram em Bertina, o domínio no desenho, na técnica de pintura, na têmpera e no óleo, na segurança e à vontade demonstrados. Coube-lhe o prémio Empresa Moderna, atribuído ao melhor pintor moçambicano do certame.
Os trabalhos apresentados até aqui sugerem temas (retrato, nu, natureza morta, paisagem) ainda muito ligados aos “géneros tradicionais” mas o espírito inquieto da artista procurava outros caminhos.
Vale a pena uma palavra adicional sobre o retrato, tão presente no trabalho de Bertina nesta primeira fase. Praticado desde tempos remotos, este género da arte, está presente e marcou muitos artistas emblemáticos do século XX, continua vivo nas obras de artistas conceptuais contemporâneos. Responde a uma pergunta que todos nos fazemos: quem sou eu, qual é a minha imagem? Pergunta que faz quem encomenda um retrato a um artista, pergunta que muitos artistas se fazem a si mesmos. E que Bertina, certamente se fez, muitas vezes, a si própria. Daí o fascínio que os retratos exerceram, ao longo dos tempos e também no nosso meio artístico. Uma outra questão se colocou sempre: a da representação versus expressão. De que serve um retrato se ele não se parece com o representado? Os artistas modernos responderam a esta interrogação dizendo que ele servia para retratar o artista, o seu retrato intelectual, conceptual, estético, espiritual, a sua visão do mundo. Negavam a possibilidade de representar as coisas independentemente do artista, das suas preferências estéticas, conceitos e preconceitos. Como representou Bertina o(a)s retratado(a)s? Como os viram os olhos do observador desses tempos? Como os vemos nós observadores de um outro tempo?
O espírito inquieto da artista continuava a procurar novos caminhos, afastava-se da reprodução do mundo real. Às emoções e à sensibilidade presentes nos seus trabalhos juntava-se a experimentação e a composição de formas e cores, a procura dos efeitos visuais que mais lhe agradavam. Bertina afirmava-se como artista a cada ano que passava. Participou em colectivas, de iniciativas diversas. No 1º Salão da Câmara Municipal em 1957, por ocasião das festas da cidade, apresentou pintura e aguarela. No dizer da crítica, apresentava um cada vez mais perfeito domínio da cor. O retrato ainda estava presente mas eram as suas figuras que chamavam a atenção. Notava-se nelas a influência de Amedeo Modigliani (1884-1920), que se destacou, entre outros aspectos, pelas imagens de mulheres com pescoços alongados. Destacou-se também pelo seu espírito independente e essa qualidade, creio, ia ao encontro do espírito de Bertina, da sua vontade de não aceitar limitações nem fronteiras. Modigliani aparecia, aos olhos da crítica, mais “dominado” e sombrio, nas figuras de Bertina. Estas eram como que “modeladas” na tela, à maneira das esculturas negras, constituindo a sua grande originalidade. Notava-se uma pintura “indicativa”, “esboçada” como que para posterior desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o trabalho da artista começava a ser entendido como “precursor da arte moçambicana no que ela poderia vir a ter de destacado”. Alguns anos mais tarde, também José Craveirinha chamava a atenção para a pintura de Bertina, as suas características e individualismo e referia-se à importância de se ter os “sentimentos não desligados do lugar onde se tinha os pés”.
Ainda em 1957, apresentou-se individualmente com óleos, gouaches, desenhos e ocultações. Victor Evaristo referiu-se ao estilo próprio dos seus retratos deformados “modiglianescamente” e aos outros trabalhos, às figuras mais esboçadas que pintadas, ao abandono de pormenores, à gradual libertação da forma e crescente valorização da cor. Bertina estava, nesta fase, “dentro da pintura não figurativa”.
O seu desenho hesitava e procurava outros caminhos que serão mostrados no ano seguinte, em 1958, numa exposição individual, em que apresentou quarenta e dois desenhos (tinta da china) e estudos, gouaches e óleos. Neste mesmo ano esteve representada no 2º Salão de Artes Plásticas da Beira, uma iniciativa do então Centro de Arte de Manica e Sofala. Voltou outras vezes. Vivia então uma intensa actividade artística alimentada pelo seu espírito de procura permanente, onde se incluem as exposições em Lisboa.
Sócia do Núcleo de Arte, encontramo-la, em 1959, também eleita para a Secção de Artes Plásticas. Malangatana (1936-2011) começava a afirmar-se como artista. Lembrou, diversas vezes, a pintora que marcou a sua geração, a sua pintura forte, de temática social e política. Marcou também Shikhani (1934-2010), mesmo em fases mais recentes do seu percurso, e mais artistas.
Bertina expôs, em 1960, numa organização da Poliarte, óleo, gouache e desenho. A abstracção presente nos trabalhos aí apresentados foi dando lugar à figura, depurada de pormenores ou estilizada. Vultos gritando, bocas abertas, mãos, braços levantados, em súplica ou em protesto, de mulheres, crianças, velhos, figuras de uma África que se reerguia como referem Urbano Tavares Rodrigues e Luciana Stegagno Picchio.
Dominada pelos temas de natureza social, já não bastava à artista o sentido estético e formal da obra, o domínio da cor, técnica, facilidade de expressão. Ganhava, dizia, uma maior consciência da responsabilidade que lhe cabia na transformação do clima social do presente.A sua sensibilidade era tocada pelos temas do quotidiano e a poesia inspirava o seu trabalho. Em 1961 apresentou, com o patrocínio do Núcleo de Arte, vinte e três óleos quase todos baseados em poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa. Usava, quase sempre, a forma figurativa por esta ser, em seu entender, o meio mais directo de comunicabilidade e também pelo facto da poesia de José Craveirinha não ser abstracta.
Continuou a trabalhar, a aprofundar este caminho. A sua vida pessoal e a de alguns dos seus amigos iam sofrer profundas mudanças. Um novo Moçambique começava a nascer. Sentindo-se cada vez mais vigiada decidiu partir, abandonou o seu lugar de professora, deixou para trás algumas regalias que o sistema colonial lhe proporcionava mas não hesitou.
Voltar a partir, ir em busca de liberdade, regressar sem nunca regressar
Não foi fácil partir, nem recomeçar novamente. A bolsa que a FCG lhe concedeu (1963-65) levou-a primeiro a Lisboa onde participou no 1º. Salão de claro-escuro na SNBA, de Jan. a Fev. de 1964. Depois a Roma. Escolheu a Itália por razões artísticas, mas também por motivos políticos. Voltou a casar. Com Franco Confaloni, que havia de ser o seu companheiro de muitos anos. Recomeçou a trabalhar, a “pôr um pouco de ordem dentro de si”, a pintar com entusiasmo, enamorou-se pelas cores de Roma, a intensidade da sua luz. A Itália passou a ser também a sua terra. A sua pintura começou a ser quase uma modulação de ritmos e reduzida ao mínimo em termos cromáticos.
A primeira exposição em Roma aconteceu em 1970. Marcelo Venturolli viu na sua pintura um misto de narração e de abstracção simbólica, os diferentes mundos da artista, a presença forte de Picasso, sinal de vontade de ruptura e de liberdade artística.Re-imagina o corpo humano, procura realidades alternativas, universos paralelos. Bertina continuou a expor mas viveu também um momento de reflexão sobre a sua produção artística. Desenhou sem parar, experimentou, buscou materiais e técnicas à procura de expressar da melhor maneira ideias e sentimentos. Repensou a sua criatividade e o processo da sua realização. Mas nunca perdeu o contacto com Moçambique, com os amigos, “com o grupo da Frelimo”. Abraçou o desejo de libertação do seu povo. Até que chegou 1975 e a Independência de Moçambique. Foi como que um renascer para a artista. Foram anos em que se deu em si “como que um retorno às origens”. Precisou de espaço para pintar a alegria do seu povo. As suas telas passaram a ser de grandes dimensões. Mas um artista não pára, não se pode voltar atrás, “nunca se regressa”, como disse. Fez escultura, serigrafia, tapeçaria. Viveu novamente um período de grande actividade artística, abraçou muitas causas, mostrou o seu trabalho em várias partes do mundo. Recebeu outros prémios.
O domínio das linguagens artísticas do seu tempo está presente nas suas composições abstractas, na série dos “totem”, na pintura de acção, nas extraordinárias esculturas em bronze, tão pouco conhecidas entre nós, na pintura do “período astral”, na série do “mar”, na do “espírito da música” ou nos seus últimos trabalhos. Uma obra que não aceita limites, atravessa horizontes estéticos, constitui-se como um corpo artístico autónomo, livre e cheio de vida, como refere Cláudio Crescentini.
Veio a Moçambique várias vezes. A sua condição de viver em diáspora nem sempre foi bem percebida pela nação-estado. “Mas as coisas sempre se esclareceram” disse a Tomás Vieira Mário. Bertina nunca teve dúvidas. Afirmou-se sempre como moçambicana, de sangue europeu e africano, como africana, como cidadã do mundo. Em 1982 realizou a primeira exposição individual em Moçambique independente no Museu Nacional de Arte, então em criação. Defensora de um Museu que os artistas “deviam amar como à sua própria casa”, muitas vezes o criticou. Consciente da importância da constituição de uma colecção pública, que guarde a memória da criatividade das diversas épocas, fez-lhe várias doações. Em 1994 trouxe a Maputo a exposição África Dentro. Voltou, passando quase despercebida, em 2002. Uma longa enfermidade separou Bertina de Moçambique, do contacto com o povo e o país que amava, dos artistas de várias gerações para quem é (será sempre) uma referência. Mas Moçambique continuou presente na sua casa galeria em Roma, como o testemunham todos os que tiveram o privilégio de consigo privar e de experimentar a sua generosidade. A obra de Bertina – tudo o que pensou e realizou e já mostrou em muitas geografias – permanece connosco, para continuar a ser estudada e divulgada. Mantem-se actual, está presente sempre que quisermos vê-la, transcende o tempo em que foi produzida.
texto escrito em 2012.
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