Ao encontro de Pancho
Sobre a exposição Pancho: Outras formas e olhares, de Sónia Sultuane e Jorge Dias, Museu Nacional de Arte, Maputo (no MNArte em Novembro 2018 e terminou no Espaço BCI já este ano)
Pancho Guedes (1925-2015) é autor de vastíssima e diversa obra, grande parte realizada em Moçambique, a partir da década de 50 do século XX. Uma obra que não conheceu fronteiras: arquitecto, praticou o desenho, a partir do qual se fundam e formam as suas ideias espaciais (para si, a arquitectura eram os desenhos), a pintura, a escultura, o mural, outras artes. À sua volta, havia desenhadores, carpinteiros, entalhadores, pedreiros, pintores e bordadores que complementavam o seu mundo e o ajudavam a dar corpo às ideias. Activo no meio artístico local, influenciou e foi influenciado, acompanhou o que acontecia, no centro e nas margens, coleccionou todas as artes.
O seu olhar via o que muitos não viam, procurava as coisas que nasciam da necessidade que todos os homens tinham de criar. Seguiu autores que o fascinaram e inspiraram, ‘bebeu’ de variadas influências culturais, ‘poliu e rearranjou’, explorou todas as oportunidades. Tornou-se conhecido local e internacionalmente. Até que os ventos da história mudaram a sua vida. Deixou o seu mundo e Moçambique em 1975, voltou à África do Sul, a Johannesburg e à Universidade de Witwatersrand onde se formara e onde passou a leccionar e aí viver e trabalhar até 1990. Seguiu-se Portugal, onde era então pouco conhecido, e aí recomeçou novamente, a trabalhar, a criar novos mundos, em Sintra/Eugaria e em Alfama. A funcionar, como disse, como arquivador e restaurador da sua obra, a refazer os seus desenhos, a alterar as obras, a torná-las melhores, mais próximas do que imaginara. A sua obra tem merecido ampla valorização e divulgação, principalmente fora de Moçambique. Entre nós as suas criações são conhecidas por poucos, tarda o reconhecimento e a conservação da importante obra projectada e construída que nos deixou, principalmente na cidade capital, são precisos mais olhares sobre ela, é urgente continuar a procurar e a descobrir, como diz Miguel Santiago, o detalhe e a minúcia com que Pancho Guedes realizou o seu trabalho. Por isso, esta exposição de Jorge Dias e Sónia Sultuane é tão importante. Estes dois artistas ‘encontraram’ Pancho e o seu mundo e trouxeram-no até nós. Trabalhando juntos em diversos projectos nos últimos anos, a partir das intervenções do Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique (Muvart), decidiram voltar a fazê-lo. O contacto, um pouco por acaso, dos dois, com o mundo deste criador em Eugaria deu-lhes o mote. A experiência que viveram, as ideias que, a partir daí, juntos foram desenvolvendo são-nos agora mostradas nesta exposição. Para mim, conhecendo os dois e o seu trabalho, sabia que este encontro era apenas uma questão de tempo.
Jorge Dias (n.1972) tem formação em escultura (Brasil/UFRJ), pesquisa a forma, inventa e reinventa, é uma ‘espécie de inventor de insólitos’, como disse Gemuce a propósito de uma das suas exposições em Maputo, acontecida em 2010, Transparência: Processos Criativos e Devaneios. A reflexão sobre o que faz é o motor do seu processo criativo, um processo acumulativo, evolutivo, a partir de trabalhos anteriores que se constituem como referência e que regressam mais amadurecidos. Em galerias e em diferentes espaços da cidade, fora de Moçambique, usando múltiplas linguagens, apropriando-se de todos os materiais disponíveis para dar corpo às ideias, integrando diversas artes. Não poderia ficar indiferente ao encontro com Pancho.
Sónia Sultuane (n.1971) também não. O seu amor pela liberdade, a vontade de criar desde muito pequena (das brincadeiras com botões ao tapete de papaias), o gosto pelas palavras, desde cedo antídoto para o sofrimento, o amadurecimento precoce, o espírito lutador, a vontade e a coragem de ser ela própria fizeram-na romper barreiras, desafiar fronteiras artísticas. A escrita saiu do papel, as letras das palavras foram para a rua, abraçaram esculturas como na sua primeira incursão nas artes plásticas, em 2005. Na colectiva Hora O, o seu trabalho De Dentro para Fora procurava isso mesmo: levar as letras e as palavras para além do papel, procurar outras formas para expressar sentimentos, emoções, afectos. Assumindo-se autodidacta, tem continuado à procura de si própria e a comentar, com recurso a outras linguagens, o mundo que a rodeia.
As ideias vão surgindo, as viagens alimentam-nas, os materiais que pensa usar para lhes dar corpo começam a ser reunidos (como foi o caso dos que utilizou nesta exposição), chega o momento de as materializar e de as mostrar. Um outro arquitecto, Antoni Gaudi (1852-1926), já a tinha deslumbrado. É agora a vez de nos mostrar como olhou (olharam os dois) o trabalho de um outro arquitecto, Pancho Guedes. Apropriam-se dos seus trabalhos arquitectónicos, de cortes e alçados, dos seus desenhos, da pintura, das suas esculturas em diferentes materiais e escalas, de fragmentos delas, dos murais, com recurso a materiais diversos, que estão associados aos seus edifícios, que ora os prolongam ora são elementos de decoração. Obrigada, Jorge Dias e Sónia Sultuane, por nos chamarem a atenção para tanto do que há para ver e descobrir na obra de Pancho Guedes.