Piscinas fantasmas: memória, fim

Da janela do hotel, Rita assiste ao ‘enterro’ da piscina. Imagem do filme Yvonne Kane (2015). Direitos reservados a Margarida CardosoDa janela do hotel, Rita assiste ao ‘enterro’ da piscina. Imagem do filme Yvonne Kane (2015). Direitos reservados a Margarida Cardoso

De certo modo já é sempre tarde demais para falar do fim. Quando o fazemos, na maior parte dos casos, o fim já chegou, já se esgotou, e deu lugar a algo que pode aparentar ser algo novo, mas que afinal é bem arcaico. Como evitar iludirmo-nos com a crença de que o arcaico na realidade é aquilo que poderíamos imaginar como o futuro? Provavelmente só sendo contemporâneo, num sentido Agambiano, se pode verdadeiramente ver o fim antes do seu desaparecimento. À medida que o projeto Memoirs se aproxima da sua conclusão oficial, uma breve reflexão sobre a memória e o fim, sobre a memória do fim, e no fim, possa ajudar de modo a vislumbrar tudo o que fica por fazer. Assim, desejo refletir sobre uma cena no fim do filme Yvone Kane (2014), de Margarida Cardoso. Vendo bem, essa cena pode ser tomada como sendo o fim mesmo do filme, ao mesmo tempo que é uma metonímia do filme na sua totalidade. Pensar o fim como um todo poderia parecer paradoxal, mas só se não se tiver em conta que o filme é, em si, uma profunda reflexão sobre o sentido de fim. O fim de uma era, mas, de certo modo também, o fim da memória.
 
Para evitar mal-entendidos, sejamos claros: ao referir-me a Yvone Kane como uma reflexão sobre o fim da memória, desejo afastar-me por completo de qualquer tom Hegeliano do ‘fim da História’ e, ainda mais, da vertente da mesma ideia de fim propagada por Fukuyama como o fim derradeiro da ideologia.  Já todos tivemos mais do que a nossa porção de projetos teleológicos, destinos manifestos, fardos civilizacionais, e excecionalismos de todos os feitios. Se o filme leva a cabo uma crítica da ideologia, não o faz a partir de uma posição distante, rarefeita e privilegiada; e, mesmo se a representação da ideologia que o filme oferece é sempre transmitida através de um filtro complexo, ela permanece não só como pessoal e crua, mas acima de tudo, como uma ferida. A ideologia é, por um lado, a causa das várias traições ao longo do filme, a começar pela traição e assassínio de Yvone Kane pelo partido. Esse tipo de ideologia não acabou: simplesmente metamorfoseou-se no seu aparente oposto, a ordem neoliberal desenfreada, que facilmente se sobrepôs à anterior apropriação, cooptação, e abuso de conceitos de índole Marxista que serviram de máscara para hierarquias arcaicas fundamentais e moralidades intensamente puritanas. Yvone Kane não é uma encenação do fim da ideologia, mas sim o registo da derrota de uma certa ideologia, que considerava a emancipação como uma possibilidade real, em conjunto com uma noção já há muito necessária e inclusiva, de pertença. É sobre o fim dessa utopia em particular que Yvone Kane faz o seu luto e manifesta a sua melancolia que nunca deve ser confundida com qualquer forma de nostalgia que, aliás, rejeita categoricamente.
 
A cena final de Yvone Kane apresenta movimento; ao mesmo tempo, parece ser estática, como se fosse uma fotografia, um momento no tempo imobilizado para sempre e, como tal, uma anunciação da morte tal como Susan Sontag (1973-1977) e Roland Barthes (1980) tão bem sugeriram. O movimento que existe nessa cena – deixando de lado o quebrar das ondas na praia ao fundo em contraste com a figura de Rita (Beatriz Bastarda), parada a observar de uma janela – é o de vários trabalhadores negros ocupados a encher de areia a piscina do hotel.  Uma imagem aparentemente paradoxal, mas que é altamente significativa como uma espécie de enterro, a cena funciona como um indício de várias formas de perda que nunca podem ser anuladas, e que nunca deixam de assombrar: tal como Fredric Jameson disse, ‘A História é o que fere’.1 A piscina do antigo hotel colonial – Margarida Cardoso identifica-o como sendo o ‘Hotel Chongoene, no Xai Xai, a norte de Maputo’2 – outrora um símbolo de luxo e lazer, tornou-se num símbolo de morte, devido aos rumores de ter sido o lugar  de execuções no período pós-independência. Isto, na narrativa, ficcional, do filme, que intencionalmente e continuamente esbate as fronteiras entre factos e ficção. Já muito foi dito sobre isso e muito mais haveria para dizer. Aqui desejo apenas mencionar que se a arte imita a vida, a vida também pode imitar a arte. Por isso, talvez não seja surpreendente encontrar um artigo de blog que ‘documenta’ a visita feita por um casal de turistas sul-africanos ao hotel, em que se refere os fantasmas da piscina. Vale a pena mencionar este tipo de fenómeno? Sim, se tivermos em conta que o que aparenta ser, inicialmente, uma extensão caprichosa da lógica do filme, uma espécie de jogo irónico com o recurso no filme a um jovem casal sul-africano como ingénuos que adquiriam as ruínas sem se aperceberem da história sangrenta recente daquele lugar, na realidade é o seu perfeito esvaziamento de sentido. Encarar as ruínas – um suposto lugar de memória – como apenas mais uma atração turística, é encenar o seu próprio esquecimento, convertendo a banalidade da História em mais uma reificação da vida.
 
Quando questionada especificamente sobre a piscina e o hotel abandonado num encontro que teve lugar no Instituto de Investigação em Línguas Modernas da Escola de Altos Estudos da Universidade de Londres a 14 de Janeiro de 2016, Margarida Cardoso mencionou uma fotografia que tinha sido importante para si desde o seu trabalho para o filme anterior, A Costa dos Murmúrios (2004). É uma fotografia da renomada fotógrafa Sophie Ristelhueber que mostra uma piscina totalmente em ruínas, incluída na coleção que constitui o seu livro de 1984, Beyrouth: Photographes. Tal como Margarida Cardoso também explica, o seu trabalho e o de Ristelhueber contém muitas semelhanças, na sua preocupação com territórios, com as cicatrizes deixadas tanto na terra como nas pessoas, e com o que acontece depois da catástrofe Essa noção do que fica na sequência da catástrofe é aqui particularmente relevante, uma vez que o filme na sua totalidade já nos apresenta as consequências não só do colonialismo, como das várias formas de violência com ele relacionadas, sejam elas ainda coloniais ou já pós-coloniais. Pensar a sequência da catástrofe como um tempo implica uma temporalidade sempre em função da catástrofe. Pensá-la como um espaço, significa ver a sequência da catástrofe como ruínas, desolação e perda. A perda em Yvone Kane é múltipla e desdobra-se em perdas, seja a morte da filha de Rita que funciona como um catalisador para o filme já que está na origem da busca de Rita para saber a verdade sobre a morte de Yvone Kane, seja nas muitas maneiras em que a inocência é repetidamente perdida através do filme inteiro.
 
A imagem da piscina no fim de Yvone Kane também poderia ser encarada como uma espécie de sequência do desastre, uma vez que funciona como se fosse uma fotografia tardia (late photograph) na formulação de David Camapany.3 ‘Fotografias tardias’ podem representar como que uma resposta da fotografia à ubiquidade da imagem em movimento, em resposta ao desafio lançado pela sua suposta maior fidelidade e presença. Nesse aspeto, as ‘fotografias tardias’ podem também tornar-se completamente banais. Na sua conclusão, David Camapany lançou um alerta importante: “A linha entre o banal e o sublime é política. Se a experiência do sublime contemporâneo provém de nos encontrarmos presos numa circunstância geopolítica fora da nossa compreensão, então além de ser politicamente reificada, essa experiência também é esteticamente rarefeita.” Isso não acontece nem no caso do trabalho de Sophie Ristelhueber, nem de Margarida Cardoso. Essas piscinas fantasma e fantasmagóricas são tudo menos banais.  Fundamentalmente, são traços do passado, a sua materialidade destroçada é uma representação direta das vidas danificadas de todos para quem elas significam não só a passagem do tempo, mas o fim mesmo de uma época, o desaparecimento do contexto para as suas vidas.
 
Margarida Cardoso é uma das mais importantes realizadoras contemporâneas a trabalhar em Portugal – ou em qualquer parte do mundo. Yvone Kane é um filme deslumbrante nos seus aspetos formais, tal como os enquadramentos constantes das personagens através de vários objetos e reflexões, o uso de perspetivas de grande-angular que permitem visualizar realidades complementares em simultâneo, e até o que não nos é dado a ver – tal como a morte presumivelmente por afogamento, de Clara, a filha de Rita, que simplesmente desaparece. Ainda em termos de conteúdo, o enfoque na memória e no seu jogo com a História, assim como o questionamento de identidades baseadas na perda e na ausência, é tão arrojado como duro. Conversando com Margarida Cardoso, Lídia Jorge referiu-se a Yvone Kane como sendo um filme difícil (17 de março de 2015). Mas talvez não seja o filme que é difícil, mas sim o que ele demanda de nós. Sete anos após a sua estreia Yvone Kane continua a instigar-nos a confrontar o passado colonial, ao mesmo tempo que nos faz assumir a consciência que qualquer reparação é impossível. Os mortos permanecem mortos, os despojados também, em números cada vez maiores. Já se devia ter tornado óbvio que não é ao encher uma piscina de areia que se enterram os fantasmas do passado.
 
Há muitas leituras possíveis da última cena, que perdura até que Rita baixa a sua cabeça e o ecrã (ou a tela) escurece. Uma, na esteira da observação de Margarida Cardoso, é ver essa cena final como um indício da espectralidade do futuro. Outra, tendo em conta Adorno, seria ver essa cena como abrindo para a redenção. Na sua bem conhecida frase no fim (Zum Ende) de Minima Moralia: ‘O único modo que ainda resta à filosofia de se responsabilizar perante o desespero seria tentar ver as coisas como aparecem do ponto de vista da redenção. O conhecimento não tem outra luz, exceto a que brilha sobre o mundo a partir da redenção: tudo o mais se esgota na reconstrução e não passa de um elemento técnico”.4 As vidas que Margarida Cardoso nos deixa contemplar em Yvone Kane são todas vidas danificadas. No entanto, mesmo se qualquer reparação é sempre uma impossibilidade, talvez ainda possa haver esperança: a esperança que outra geração possa responder ao apelo da memória e tentar construir um mundo melhor em vez de futilmente colocar camadas de areia por cima dos fantasmas na piscina.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Fredric Jameson, O Inconsciente Político: A Narrativa como Ato Socialmente Simbólico. Trad. Valter Lellis Siqueira, Rev. Maria Elisa Cevasco (São Paulo: Editora Ática, 1992, 93).
  • 2. Yvone Kane, press kit.
  • 3. “Safety in Numbness: Some remarks on the Problems of «Late Photography»” in David Green, ed. Where is the Photograph? (Photoworks/Photoforum, 2003).
  • 4. Theodor W. Adorno. Mimima Moralia: Reflexionen aus dem Beschädigten Leben (Suhrkamp, 1951, 480): ‘Zum Ende. – Philosophie, wie sie im Angesicht der Verzweiflung einzig noch zu verantworten ist, wäre der Versuch, alle Dinge so zu betrachten, wie sie vom Standpunkt der Erlösung aus sich darstellten. Erkenntnis hat kein Licht, als das von der Erlösung her auf die Welt scheint: alles andere erschöpft sich in der Nachkonstruktion und bleibt ein Stück Technik’. Edição portuguesa: Minima Moralia. Trad. Artur Morão (Lisboa: Edições 70, s.d., 242).

por Paulo de Medeiros
A ler | 15 Novembro 2021 | ideologia, marxismo, Memoirs, política, sociedade, Yvone Kane