Peles Vermelhas, em 'Sentidos da Imagem' | 2019 | Rui Almeida Pereira (cortesia do artista)Repentinamente, por todo o lado, parece que só se fala de estátuas. Há até quem mencione uma ‘guerra das estátuas’. Mas nada poderia estar mais distante da verdade. As estátuas, apesar de toda a sua carga simbólica, não são o alvo dos protestos, do mesmo modo que as defesas imediatamente erigidas para ‘proteger’ as estátuas e a História, nada têm a ver, nem com as estátuas nem com a História, mas sim com a salvaguarda de privilégios acumulados ao longo de séculos e a manutenção do âmago inumano que serve de fundação às nossas sociedades. Se o capitalismo não tivesse desenvolvido o racismo, a escravatura em massa não teria sido possível; sem a escravatura, a expansão do capitalismo não teria sido possível; sem o capitalismo, o Ocidente não teria alcançado a hegemonia global, nem teria conseguido oprimir a maior parte dos povos em todo o mundo para seu benefício imediato e a longo prazo. Derrubar estátuas de esclavagistas notórios, tal como aconteceu recentemente em Bristol a 7 de Junho, deveria ser visto através da perspetiva proposta por Michael Taussig de que a desfiguração de estátuas assim como de outros objetos simbolicamente importantes – ‘um corpo humano, uma bandeira nacional, o dinheiro’ – sempre implica aquilo a que chama ‘segredo público’: ‘e se a verdade não fosse de modo algum um segredo, como acontece com a maior parte do conhecimento social, mas sim o ter conhecimento do que não deve saber-se?’ (2) Em toda e qualquer sociedade – e, principalmente, em sociedades recém-libertadas de regimes totalitários –, concordar sobre o que deve ser esquecido é tão importante como concordar sobre o que deve ser lembrado. Sobre o conhecimento da violência do imperialismo, do colonialismo, e do racismo – que se mantém como um dos elementos estruturantes mais persistentes e insidioso das nossas sociedades –, podemos afirmar que, na realidade, esse conhecimento é partilhado por todos. O que varia é apenas o grau de pormenor que cada um de nós decidiu aprender, ou foi obrigado a aprender, assim como o modo como cada um se posiciona a si próprio ou é forçado a tomar uma posição relativamente a esse conhecimento. Nunca se trata, portanto, de esquecer, mas sim de ativar uma memória seletiva. No caso de Bristol, é óbvio que a imagem do esclavagista como filantropo eminente foi a imagem que os notáveis da cidade tinham decidido conservar. Será que se teriam esquecido de que a fortuna que permitira tal filantropia fora obtida através da escravatura? Claro que não. O acordo sobre o que havia a lembrar, que perdurava até ao presente, já tinha sido questionado e há vários anos que circulavam petições para que a estátua fosse retirada. Se há algo que possa surpreender-nos é o facto de ela não ter desaparecido mais cedo. Derrubar ou desfigurar uma estátua ou qualquer outro monumento nunca é uma questão de olvido e muito menos uma tentativa de apagamento. Pode mesmo dizer-se que é exatamente no acto de desfiguração que a memória se inscreve com mais tenacidade, embora de forma negativa, tal como Taussig também nos lembra. O jogo da memória que anda a ser lançado à volta das estátuas é um jogo da morte. Seja nos EUA à volta das estátuas dos heróis da Confederação, ou na Bélgica, com as de Leopoldo II; e até mesmo em Lisboa, com a estátua do Padre António Vieira, é a escravização e o assassínio de milhões de seres humanos que formam o contexto histórico dessas estátuas. Derrubá-las, ou desfigurá-las, portanto, é, simultaneamente, um sintoma da profunda crise de memória com que nos confrontamos, e que faz parte integral das estratégias de domínio e domesticação de massas que tem vindo a erodir os fundamentos da democracia ocidental, e a revelação de que, na realidade, nada foi esquecido. Como seria possível esquecer? Apesar de as autoridades governamentais se esforçarem por classificar tais desfigurações como violentas, na realidade elas são autónomas, bem controladas e pacíficas. A violência patente nesses actos funciona principalmente a nível simbólico. Seja como for, tendo em conta a violência incomensurável inerente ao imperialismo e ao colonialismo, que ainda pode sentir-se em muitos aspetos da vida quotidiana, fará algum sentido descrever essas ações como actos violentos e criminosos intoleráveis? Isto, quando a violência extrema da escravatura é o pano de fundo dessas estátuas? Populistas, quer em funções de governo, quer na oposição, baseiam-se sempre em tais descrições, em parte numa tentativa de controlar a narrativa, de modo a posicionarem-se como imbuídos de preceitos morais, decentes e civilizados, em suma, como os ‘bons da fita’. Sem qualquer escrúpulo ou vergonha, mentem repetidamente em relação à maneira como se sentem angustiados com as desfigurações e as ‘ameaças’ à democracia, ao mesmo tempo que atiçam as chamas divisórias, quando não incitam mesmo a mais violência, de modo a pavonearem-se como defensores da lei, da ordem, e até da moral cívica. Quantas vezes o primeiro-ministro do Reino Unido não afirmou a sua condenação dos manifestantes anti-racistas como sendo ‘bandidos violentos’ e ‘terroristas’ sem nunca mencionar as referências racistas que ele próprio tem feito no passado? (3) Se as desfigurações em si são sintomas óbvios das desigualdades extremas e do racismo profundo que ainda estruturam as nossas sociedades, a tentativa de obter uma espécie de superioridade moral através das condenações das desfigurações por parte de elementos populistas – incluindo vários governos, entre os quais os dos EUA e do Reino Unido – é a mais pura distração da crise atual, da desigualdade e do racismo sistémicos, e dos repetidos fracassos desses populistas em confrontar de maneira minimamente efetiva essas crises e injustiças. Para ser claro: a condenação do derrube de estátuas é uma substituição para o que deveria ser o prestar de contas por nada fazerem contra o racismo sistémico. Essa estratégia no entanto, só funciona a partir da assunção de que a maioria da população se sentiria ameaçada diretamente ou nos seus privilégios de modo igual aos que detêm o poder neste momento; mas será que isso ainda pode pressupor-se sem mais? Essa é a aposta que os vários líderes nacionais aparentam ter feito, seja no Reino Unido, na Bélgica ou na França. Embora exprima algo como uma admissão tímida do sofrimento causado pelo racismo, Boris Johnson rapidamente e de modo desafiador gaba-se dos grandes avanços o seu país já realizou contra o racismo – algo que também foi imediatamente alvo de denúncias e ridicularizado por muitos como o cartoon de Steve Bell no The Guardian de 10 de Junho tornou mais que óbvio (4). Na Bélgica, o Príncipe Laurent declarou em entrevista não compreender como Leopoldo II poderia ter feito mal a quem quer que fosse no Congo visto nunca lá ter ido. Questionado sobre tais afirmações do irmão do Rei Phillipe, tão escandalosas como previsíveis, o porta-voz do Palácio declarou ser necessário esperar pela ‘conjuntura histórica apropriada e uma boa ocasião’ para iniciar uma discussão sobre as acções de Leopoldo II no Congo (5). E isso afinal é que é ainda mais escandaloso. No entanto, coube ao Presidente francês Emmanuel Macron, no seu discurso à nação transmitido pela televisão a 14 de Junho, demonstrar de forma completamente inequívoca o modo como os titulares do poder desejam controlar a narrativa em torno dos protestos anti-racistas ao declarar severamente que ‘a República não apagará nenhum traço nem nenhum nome da sua história’ (6). As afirmações de Macron são tão claras como paradoxais. Porque, ao afirmar que é necessário considerar a História na sua totalidade de modo a construir o futuro através dum processo baseado no desejo pela verdade, Macron também afirma que nesse processo não pode haver ‘nenhuma reconsideração ou negação de quem nós somos’. O apelo de Macron ao republicanismo e o seu uso gratuito daquele ‘nós’ pode ter sido pensado para transmitir um tom de dignidade e inspirar confiança, mas não consegue evitar um som oco e um travo a autoritarismo. O verão de 2020 promete ser quente. A crise da Covid-19 anda longe de ter terminado; tendências atuais para conseguir controlar o vírus em certas regiões do território europeu podem ser facilmente invertidas por um novo surto que a maioria julga ser inevitável. Seis meses após se ter tomado conhecimento do vírus, ainda estamos no escuro quanto a muitas das suas características, não obstante todos os avanços já realizados. 2020 seria sempre um ano notável devido ao número medonho de mortes e à imposição de medidas de confinamento obrigatório, incluindo, nalguns casos, o estado de emergência, no mundo inteiro. Simultaneamente, a Covid-19 tem servido para revelar as desigualdades obscenas em que as nossas sociedades assentam. Os protestos contra a brutalidade policial dirigida em especial contra negros que irromperam após o assassínio de George Floyd a 25 de Maio de 2020 (7) constituem um assunto separado, mas ambos se relacionam de forma intrínseca. A dar crédito aos vários populistas presentemente instalados ao leme de vários países europeus – para não falar dos EUA ou do Brasil – os protestos contra o racismo sistémico inerente às nossas sociedades seriam uma ameaça à ‘lei e ordem’ e até à própria democracia – ou mesmo aos princípios consagrados das várias nações. Poderá haver alguma distração mais flagrante, mais transparente mesmo, das crises graves que nos confrontam agora? David Lammy, que, neste momento, exerce as funções de secretário de Estado (sombra) para a Justiça e de lord chanceler (sombra) na oposição ao governo, não hesitou em desmascarar o bluff de Boris Johnson no programa Today da BBC Radio 4 (15 de Junho), dizendo que ninguém anda a falar em estátuas em nenhum dos partidos, a não ser no Partido Conservador, o mesmo partido que nunca fez nada contra o racismo apesar de ter à sua disposição vários relatórios oficiais com recomendações concretas. Como ele denunciou sem margem para dúvidas: ‘Eles [o Partido Conservador] querem uma guerra cultural porque querem desviar as atenções da questão central; implementem as recomendações. Façam algo. Introduzam mudanças. São vocês que detêm o poder e já o detêm há uma década’. Este e outros apelos para que o governo assuma a sua responsabilidade nunca podem esmorecer ou ser esquecidos. E isso tem de ir de mãos dadas com uma esperança renovada de que, desta vez, possa haver uma mudança radical. Todos esses jovens que arriscam as suas vidas para protestar contra o assassínio de George Floyd e exigir justiça não estão a reencenar qualquer tipo de nostalgia marxista como alguns dos papagaios mais parolos da direita têm andado a cacarejar cobardemente até nalguma da mais conceituada imprensa. Esta nova geração pode beber do passado e convém não esquecer que a luta por um mundo melhor é imemorial; mas os seus problemas, assim como as soluções que têm de procurar para eles, são novos, e uma das características mais essenciais desta geração é a sua diversidade. Podem ser jovens, mas ‘viram o sofrimento’ e se vêm pacificamente, ‘tão gentis como o vento’, bem podem ainda levar a melhor. Em entrevista com Lanre Bakara no The Guardian, Angela Davis deu ênfase a esta esperança: ‘Nunca assistimos a manifestações consistentes deste tamanho que sejam tão diversas. Penso, assim, que isso é o que está a dar muita esperança às pessoas. Dantes, muitas pessoas reagiam ao slogan Black Lives Matter [As Vidas Negras Importam] assim: “Mas não deveríamos na realidade dizer que todas as vidas importam?” Finalmente, essas pessoas estão a compreender. Enquanto pessoas negras continuarem a ser tratadas deste modo, enquanto a violência do racismo continuar a ser o que é, ninguém estará a salvo’ (8). Vamos então agarrar essa esperança e lutar por um futuro melhor agora mesmo.
|