Poesia Épica. História Única. Dissonância.
Das experiências docentes mais gratificantes que tive até ao momento deu-se há onze anos atrás, quando, no âmbito da minha formação pós-doutoral, desempenhava as funções de professor assistente convidado na Universidade de Chicago, e fui incumbido de lecionar uma cadeira sobre poesia épica a alunos do primeiro ano da licenciatura. O programa da cadeira estava já pré-definido, incluindo o elenco de obras de leitura obrigatória, cabendo ao docente de serviço a escolha de uma obra adicional. A minha escolha recaiu sobre Os Lusíadas. Foi uma decisão mais do que acertada: acabou por ser a leitura favorita da classe, que produziu ensaios finais de muito boa qualidade, e me proporcionou momentos de discussão de uma profundidade a que é raro assistir hoje em dia. Contribuiu para isto que a U. de Chicago seja uma instituição de elite que escolhe a dedo os seus alunos, não por médias finais do ensino secundário, mas pela aptidão e paixão para a leitura e o conhecimento. E, claro está, que os meus alunos tivessem lido outras obras representantes do género, e várias não europeias, como o Ramayana ou Gilgamesh, e que alguns deles tivessem lido Homero e Virgílio no ensino secundário, e tratassem esses autores hoje arcanos com a familiaridade com que a maioria dos jovens da sua idade digitava sms no seu telemóvel, coisa que os meus alunos decerto faziam também. Estes alunos tinham a abertura intelectual que eu não tinha aos 15 anos quando li Os Lusíadas pela primeira vez, numa escola secundária em Portugal. Ao invés de dividir orações, eu pedi-lhes para pensarem nas relações do discurso político do poema camoniano com a nossa atualidade, marcada então pelo rescaldo das invasões do Iraque e do Afeganistão. O futuro desses desastres é agora o nosso presente; mas os meus alunos souberam também ver que o velho do Restelo não era um personagem de um exótico passado europeu: as suas admoestações podiam ser lidas nos jornais de 2007, e a cruzada anti-mouro que animava a tripulação do Gama era legível nas palavras do seu presidente.
O império é histórico não porque passou e como que por milagre saímos incólumes dessa passagem, ele é histórico porque tem marcado indelevelmente a passagem do tempo, e porque as suas fronteiras são por definição dinâmicas e multidimensionais. Portugal, nesse trimestre letivo, deixou de ser um lugar difícil de apontar no mapa, e passou a ser metonímia de Ocidente, como Camões o tinha cantado; mas para isso foi necessário que Os Lusíadas tivessem deixado de ser o que foram para mim em meados da década de 80: uma vaca sagrada cujo toque garante aborrecimento mortal. Os meus alunos conseguiram fazer aquilo que o sistema de ensino em Portugal ainda hoje está longe de ter alcançado: desnacionalizar os ‘descobrimentos’, e identificar os pressupostos coloniais do seu discurso eurocêntrico. Não consta que a beleza do verso camoniano lhes tivesse passado despercebida, mesmo lido em inglês.
Por outro lado, a tentação de acharem que o seu tempo tinha ultrapassado os fantasmas do passado, numa inexorável marcha da História para um mundo melhor, foi para os meus alunos impiedosa, mas elegantemente estancada por Camões. Ainda bem, porque 2018 é todo um outro monstro da mesma estirpe, os fantasmas ululam cada vez mais em uníssono, e precisamos muito de vozes dissonantes, capazes de ler e intervir nas derivas do tempo, trocando as voltas aos anacronismos redivivos.
Vem isto a propósito do anacronismo que se debate há semanas em Portugal, e que, inscrito no programa eleitoral de Fernando Medina à Câmara de Lisboa, tem suscitado cartas abertas, artigos de opinião, e o sobressalto geral nas redes sociais. Refiro-me ao “Museu da Descoberta” [agora parece que será “da Viagem”], essa entidade fantasma cuja denominação e conceito nem estão ainda determinados, mas que parece constituir assunto de vida ou de morte. E porque o é. Desde logo da vida da democracia que se quer e da morte de uma ideologia colonial que se não quis e por isso foi rejeitada há mais de 40 anos. Mas quem leia os jornais de hoje convence-se de que a democracia portuguesa nada teve a ver com um longo e traumático processo de extinção imperial, e que os capitães de Abril nasceram de cravos ao peito por milagre do realismo mágico de que Portugal parece ser fértil, ou, hipótese não excluída, que o 25 de Abril foi coisa magicada pelo Infante Dom Henrique. Isto parece facécia, mas eu não estou certo: é que o Pe. António Vieira (autor que muito admiro, sublinhe-se), que pregou aos africanos escravizados dos engenhos da Bahia a escravidão como antecâmara do céu, ainda é hoje celebrado como português pré-abolicionista, visionário de um ‘humanismo universalista”. Visionário? Sem dúvida. Humanista? Sim. Universal? Não. Católico de Roma, ao serviço de el-rei D. João IV, e desiludido com el-rei D. Pedro II depois dele. ‘Católico’, como sabemos, quer dizer ‘universal’, mas ninguém perguntou aos Tupinambá da Bahia, ou aos Imbangala de Cassanje ou de Palmares o que pensavam sobre isso.
De resto, mesmo na Europa havia já nesse tempo cristãos que não se reconheciam nessa universalidade. Os tempos não estavam para essas perguntas, dir-me-ão; mas não acham que em 2018 vai sendo tempo de as fazermos sem pedirmos autorização ao senhor Salazar, ou ao senhor Infante? Porque o tempo destes fantasmas foi o que foi, e é certo que não podemos mudá-lo, mas estaremos condenados a que ditem o presente para todo o sempre? Ou a que, com igual perniciosidade, a cada momento de inquietação social por aspirações defraudadas o poder responda com unanimismos baseados na insularidade, na autocomplacência e no comemorativismo?
O projeto deste museu fantasma é anacrónico, portanto, mas tem uma cronologia. Antes de ser incluído num programa eleitoral, ele foi celebrado num protocolo que a CML assinou com a Marinha portuguesa, a Associação de Turismo de Lisboa, e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa em 22 de maio de 2015. O protocolo estabelecia o compromisso de criar um “núcleo museológico dedicado aos Descobrimentos Portugueses” então denominado “Polo Descobrir”. Não augurava nada de bom que, por parte da FCSH, o signatário fosse a mesma pessoa que, numa entrevista recente, convidou a sair de Portugal todos aqueles que achassem que a sua versão nacionalista nostálgica da história não vale a pena comemorar. Estes convites têm toda uma história, como sabem. Por outro lado, nessa ocasião o presidente da edilidade de Lisboa disse: “No nosso país não temos muitas histórias para contar ao mundo mas temos uma grande história única a contar e chegou o momento de dar a conhecer”. Tenho dúvidas que Fernando Medina se identifique com o espírito dessas palavras, até porque a linguagem do programa eleitoral, que é posterior, respira outros ares. Mas quem tenha estado atento ao debate sobre o museu dificilmente sai convencido do contrário. O espectro da história única paira sem dúvida sobre a sociedade portuguesa, mas eu sou dos que pensam que é um síndroma a combater denodadamente, porque os portugueses têm direito à sua História, e isso quer dizer, entre outras coisas, construir o seu tempo em comum, não aceitar o que outros decidiram que o tempo deveria ser. História única? Só neste artigo já contei várias. Ademais, como professor de literatura portuguesa, sei que o número de histórias escritas e por escrever é virtualmente infinito. Estão por escrever as histórias de Rosa e Matheus, criados dos avós de Eça de Queirós em Verdemilho, e cuja memória, porventura codificada na personagem do Grilo de A Cidade e as serras, pontua em vários dos escritos do romancista que ocupou o seu primeiro posto diplomático em Cuba, onde foi testemunha do estertor da escravatura, e da sua substituição pela mão de obra chinesa. Estão por contar as histórias das casas de “brasileiro” e dos solares que enobrecem a paisagem rural portuguesa, e dos róis de homens de apelido “Cabinda” ou “Benguela” que por vezes emergem nos arquivos familiares dessas casas, muito embora Camilo, Eça, e até Júlio Dinis não tenham deixado de aludir à sua existência. Falta ainda perceber porque razões escritores como Afonso Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes, Sidónio Muralha, Alves Redol e outros neo-realistas, todos eles com experiência africana, nunca souberam ou puderam relatar o que experienciaram da vida social nas ex-colónias portuguesas em África, muito embora Alfredo Margarido tenha resgatado estas histórias do esquecimento em 1980, num ensaio em que lembra que “A esquerda nem sempre foi capaz de compreender a estrutura do facto colonial. Incapaz, por isso mesmo, de pôr a nu as várias formas de dominação”1. Quantas histórias há na história desse ensaio que ainda aguarda leitores? Acredito em todas estas histórias. Acredito que em 2018 elas não constituem nem deveriam constituir fontes de vergonha, embora tenha muito de embaraçoso a história daquilo que possibilitou o seu silenciamento. Só poderá quebrar-se o feitiço desse embaraço contando essas histórias, libertando essas vozes e dando-lhes História.
Há dias Eduardo Lourenço manifestou-se contra aquilo a que apelidou de “necessidade de crucificar este país”; Maria de Lourdes Rodrigues, por seu turno, admoestou os que, segundo ela, levam a cabo uma “missão impossível de substituir a celebração do orgulho nacional pela culpa do passado histórico”, classificando-a como “um ato com consequências perversas”. O que não fizeram nem a antiga ministra da educação nem o ínclito ensaísta foi informar os seus leitores sobre quem eram os alvos das suas queixas, isto é, quem é que em Portugal preconiza a celebração da culpa do passado histórico. E é pena, porque, não sendo verificável tal corrente de opinião—muito embora não falte quem lhe defina uma missão e lhe denuncie o espírito de seita, ou mesmo quem lhe instrua um processo com direito a condenação sumária—, estas admoestações assemelham-se muito a um apontar de dedo, e a um convite ao silêncio.
Acredito que Portugal precisa de aprender a contar bem melhor as suas tantas histórias, e que essa é necessariamente uma injunção do presente. Um museu dedicado a uma “história única” contada na língua do eufemismo boicota esse esforço, que já vai atrasado. O que nos vale é que seja um atraso necessariamente recuperável: é sempre possível ser mais livre.
- 1. “Das várias maneiras de ver e de não ver a colonização”. Estudos sobre literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980. P. 28