Pós-colonialismo até que ponto? Legado de um passado familiar

Atualmente a diversidade de palestras no meio académico sobre o colonialismo elucidam-nos sobre os seus efeitos no passado, no presente e num eventual futuro. Esta colonialidade presente faz-nos achar que é praticamente impossível dissociar o passado, enquanto momento histórico, de todas as atrocidades cometidas. A 25 de janeiro alguns estudantes africanos com origens do Gana, Quénia e Tanzânia, organizaram uma conferência na cidade de Bayreuth, no Katholische Hochschulgemeinde - uma comunidade católica que ajuda a promover eventos abertos a todos os interessados. Essa palestra abordava, mais uma vez, os legados da colonização na atualidade. A parte de debate e discussão foi aberta para todos. O auditório era bastante diversificado e constituído por estudantes de vários países, tais como Turquia, Alemanha, Nigéria, Portugal, Coreia do Sul e China, para além dos anteriormente enumerados.

A conversa começa e com ela inicia-se igualmente a explicação sobre a Conferência de Berlim, momento histórico fulcral que nos leva a entender as pretensões da Alemanha quanto às regiões africanas estrategicamente espalhadas pelo continente. Regiões estas que atualmente são designadas como Tanzânia, Ruanda, Burundi, Namíbia, Camarões e algumas mais. No entanto, após sair derrotada da Primeira Grande Guerra, a Alemanha perde essas mesmas colónias, que foram então distribuídas por outras potências europeias. Todas as políticas impostas a outros povos são o que mais nos vem à memória quando pensamos sobre qualquer tópico relacionado com o colonialismo.

Durante a sua presença em territórios africanos, no século XIX, os alemães investiram no estudo de línguas africanas como o suaíli, inclusive foram criadas gramáticas pelo Dr. Ludwig Krapf, para que essa língua fosse ensinada como sendo algo exótico. Sobre tal investimento, há questões a ser levantadas. Até que ponto pode este estudo linguístico de línguas africanas, na época, ser visto como produção de conhecimento? É verdade que muita informação existente nos dias de hoje se deve a trabalhos iniciados nesta altura. Mas será essa informação real produção de conhecimento, ou a instrumentalização da ciência para o projecto colonial, tentativa de demonstrar que aqueles povos eram os “outros”, algo a ser estudado, explorado, amplamente analisado, documentado, partindo de uma conotação de inferioridade?

Não é preciso irmos muito longe para termos esta perceção de armazenamento de informação sobre outros povos para criar essa mesma ideia de “outro”, de “ser exótico”, de “inferioridade”. A existência de religiões distintas no continente africano foi alvo de estudos por parte de sociedades europeias como Portugal. A ideia de “Totemismo” ou “religiões totémicas” prevaleceu no Portugal dos séculos XIX e XX. Religiões ditas como “primitivas”, analisadas como tal e divulgadas por e para Portugal por meio de boletins e fotografias com o intuito de adquirir mais credibilidade. Toda uma organização e hierarquia social com longos processos históricos foi por muitos anos ignorada por parte da Metrópole portuguesa face às suas ex-colónias, neste caso, à antiga “Guiné Portuguesa”.

O que foi então o Totemismo? 

Totemismo é um conceito criado e definido por alguns estudiosos europeus, como o sociólogo Émile Durkheim, os antropólogos Franz Boas e Claude Lévi-Strauss. O conceito servia para designar um processo que antecedia a religião, sendo por isso “primitivo” e típico de povos não civilizados. O conceito de “totemismo” foi utilizado como justificação da presença europeia em África, como forma de civilização.

Postes totémicos dos Manjacos em Bassarel Postes totémicos dos Manjacos em Bassarel Pergunto novamente, legado atual sobre o colonialismo? Sim, ele existe e é evidente. Quando olhamos para o caso de países como o Gana, cuja língua oficial é o inglês, temos a confirmação. A língua oficial, a língua prestigiante, a língua que dá acesso à educação universitária e a postos de trabalhos, é europeia. Sim, uma variedade distinta e com algumas idiossincrasias próprias devido a contactos e trocas com outros povos africanos, mas ainda assim inglês. Poderíamos igualmente discutir a forma de atuação da antiga colónia inglesa, a “Indirect Rule”, no entanto, na palestra focaram-se em alguns países como o Gana, e em como existe multilinguismo no continente africano.

Nestas comunidades está presente mais do que uma língua, bem como o costume de utilizar diferentes línguas em diferentes contextos. Quando vão ao mercado e precisam de comunicar, quando vão à escola, quando estão no seio familiar ou com amigos, nem sempre usam o mesmo idioma. Porém, o inglês é uma obrigação. Quanto mais próximo do padrão linguístico britânico, melhor.

Assim, e infelizmente, é habitual afirmarem que as pessoas integrantes dessas comunidades não devem sentir orgulho em se expressar publicamente na sua primeira língua, caso esta não seja o inglês. Como pode isto ser se os povos já se emanciparam? No caso do Gana, a colonização acabou no ano de 1957. Porém, as pessoas continuam presas a esse legado linguístico que ficou intrínseco ao seu psicológico e lhes é passado de geração em geração. A imposição linguística, permaneceu e permanece. Será que algum dia deixará de estar presente nos subconscientes das pessoas?

Com imensas questões no ar, a palestra continuou

Colonialismo, o que é isso? Autodeterminação dos povos africanos, o que é isso? Perpetuação dos legados do colonialismo, o que é isso? Se existe perpetuação, seja do que for, então existe alguém que perpetua algo. Exemplos do quotidiano foram dados. É muito comum, no Quénia, quando se vê alguém na rua cumprimentar-se essa pessoa independentemente de se conhecer a pessoa ou não. E isto não acontece só no Quénia. Africanos cumprimentam africanos, é quase uma regra, um reconhecimento do outro como igual, como irmão. Porém, na Europa, por algum motivo isso muda. Existe alguma diferença entre africanos em África ou na Europa? Não é isto uma perpetuação negativa da ideia de que quem está no contexto europeu é superior àquele que está no contexto africano? Assim são perpetuados os estereótipos, as discriminações, os típicos “volta para a tua terra”.

A história aconteceu e por mais dolorosa que seja não a podemos alterar. Porém podemos e temos mais versões para contar e perspetivas para escutar. Nada é necessariamente bom ou mau e depende sempre do ponto de perceção. “Africanos em África estudam debaixo de árvores, só usam cores fortes, têm culturas primitivas e são todos corruptos”.  “Europeus só sabem objetificar, tornar exótico, explorar os povos que são diferentes de si, de modo a ter poder e superioridade face ao outro”. Que versão da história queremos contar e transmitir? Existem diversos acordos entre vários países que facilitam o acesso dos jovens à educação, podendo estes viajar e ter contacto com culturas que não são as suas. Isto, graças às ligações entre os povos. Não é este um ponto bom de se ressaltar?

Academicamente falando, existem diversas palestras, conversas, debates e discussões sobre a temática da colonização e da descolonização. Vivemos agora a era do pós-colonialismo e com isso pretendemos ter mais perspetivas sobre a história, outras visões. O passado aconteceu, mas culpá-lo não vai mudar o presente. O que se faz depois de se ter o conhecimento? Muito curiosamente apenas os estudantes com origens africanas deram os seus pareceres sobre a palestra. As ideias estavam muito centradas na necessidade de se repensar nas perspetivas históricas que são contadas e ensinadas, principalmente na necessidade de se acabar com ideias estereotipadas e preconceituosas que apenas dão uma visão superficial do passado. Uma jovem rapariga recomendou o vídeo de Chimamanda Ngozi Adichie: The danger of a single story.

Muito aconteceu, mas não só de negatividade se faz a história e resta-nos a nós escolher o que queremos perpetuar. Paira no ar uma ideia geral de que o passado ficou para trás, houve e ainda há consequências, mas que é no presente que se pode realmente fazer e mudar algo. No dia 25 de janeiro de 2022 aconteceu na cidade de Bayreuth uma palestra organizada por três estudantes africanos. A temática? O legado do colonialismo.

Referências

Universidade de Bayreuth: https://uni-bayreuth.de/en

Claude Lévi-Strauss: https://pt.wikipedia.org/wiki/Claude_L%C3%A9vi-Strauss

Chimamanda Ngozi Adichie, The danger of a single story, https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story

Dr. Ludwig Krapf: https://de.wikipedia.org/wiki/Johann_Ludwig_Krapf

Émile Durkheim: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_Durkheim

Franz Boas: mailto:https://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Boas

Gana: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gana

Haekel, Josef. “Totemism”. Encyclopedia Britannica, 27 Apr. 2020, https://www.britannica.com/topic/totemism-religion (acedido em 29/01/2022)

“indirect rule”: https://educalingo.com/pt/dic-de/indirect-rule

“KHG”: https://www.khg-in-bayreuth.de/

Postes totémicos dos Manjacos em Bassarel, http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BCGP/BCGP-N074&p=24 (acedido a 29/01/2022)

Quénia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Qu%C3%A9nia

Tanzânia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tanz%C3%A2nia

TED: https://www.ted.com/

por Arimilde Soares
A ler | 5 Fevereiro 2022 | África, Katholische Hochschulgemeinde, padrão linguístico, palestra, pos-colonialismo