Ângelo Varela – “As minhas curta-metragens são reflexões de problemas que me rodeiam e sobre os quais acho que se deve falar”
Nascido em Portugal e descendente de pais cabo-verdianos, Ângelo Varela é diretor e editor de vídeo sénior a completar os seus estudos na Universidade de Luton, no Reino Unido.
O artista tem uma ampla experiência de trabalho com filmes comerciais, e as habilidades adquiridas nessa etapa contribuíram para que começasse a dirigir e produzir curtas-metragens e videoclipes. Algumas dessas curta-metragens foram selecionadas para diferentes menções honrosas.
Devido à sua mais recente curta-metragem, “Tão Original”, publicada no dia 01 de abril na sua página pessoal, foi conduzida uma entrevista a Varela sobre a importância da saúde mental dos artistas e dos criadores de conteúdo face a uma sociedade cada vez mais consumista.
A sua mais recente curta-metragem “Tão Original”, revela a perspetiva de uma artista chamada “Mayra” quando esta é confrontada com a sua ausência de produtividade. Com esta parte introdutória pretendia fazer uma crítica às exigências de produção que é feita aos artistas em geral?
Eu conheço o artista musical da curta-metragem “Tão Original” há muito tempo, trabalhámos juntos na produtora “Zoe Films”, e recentemente conversámos sobre uma música que ele tinha produzido especialmente para um videoclipe.
Discutimos sobre algumas emoções que a música dele transmitia e chegámos à conclusão de que os artistas sentem uma pressão enorme para publicar diariamente por mais do que uma vez. Isto devido a toda uma pressão exercida por diversas esferas sociais, como o público que os consome, a produtora com a qual trabalha, ou ainda o algoritmo que faz a sugestão do seu trabalho a outras audiências.
A ideia original da curta-metragem é, então, a de demonstrar que os artistas não deveriam ser compelidos a publicar por pressão. Por isso é que no final da curta-metragem, a personagem feminina de “Tão Original”, Mayra, chega a um estado agravado da sua saúde mental, autossabotando-se em prol de uma sociedade consumista. Por vezes parece que a única forma de um artista ter um grande reconhecimento ou sucesso é ao sujeitar-se a situações que colocam em causa a sua saúde e integridade.
“Tão Original” mostra também o lado dos produtores de conteúdo que não estão propriamente interessados no convidado em si, mas em produzir continuamente… No videoclip, a personagem de “Jony” fazia imensas perguntas à Mayra, mas não estava interessado em ouvi-la. Foi interessante observar a forma como os produtores de conteúdo fazem um investimento no cenário, na parte audiovisual, na projeção de voz, mas não no convidado ou na qualidade do conteúdo. Há também alguma ideia de crítica aos produtores de conteúdos?
Há uns tempos atrás, vi uma entrevista no canal de podcast do Sporting, chamou-me à atenção o facto de terem feito uma pergunta ao jogador de futebol João Mário; na qual se pretendia saber como é que o jogador deveria ser tratado, se pelo seu nome próprio ou por “malteser”. Desde esse momento comecei a deparar-me com diversos podcasts com esse tipo de conteúdo… O que quero dizer é que a ideia por detrás do trabalho dos produtores de conteúdo parece consistir mais na existência de informação em quantidade ao invés de qualidade. De um lado temos a “Mayra” que está a ter problemas mentais e quer tirar um tempo para si… Do outro lado temos o “Jony” que representa uma sociedade que quer consumir conteúdo em grandes quantidades, independentemente da saúde mental do artista em si. “Tão Original” contém duas críticas, portanto. Uma relação em relação aos artistas, ao algoritmo e à necessidade de partilha regular de conteúdo; outra em relação ao consumo desenfreado que a sociedade pratica independentemente de tudo.
A ideia da curta-metragem surgiu também devido à necessidade de um trabalho final para a faculdade.
Eu estou no último ano da faculdade na Universidade de Bedfordshire em Luton, no Reino Unido, e precisava de fazer um projeto final. Tive diversas ideias que quis produzir, mas por questões financeiras não prossegui com elas. A questão do financiamento é algo que também afeta a vida de um diretor e editor de multimédia. Esta oportunidade de produzir “Tão Original” em colaboração com a música do João surgiu no tempo certo. Não só estou a partilhar música e cultura portuguesa em Inglaterra, como também contribuo para trazer algo que é diferente e que não está originalmente produzido em inglês.
Como português no Reino Unido com ascendência africana, sentiu em algum momento durante os seus estudos que o grau de exigência para consigo era completamente diferente dos demais?
Sim. Coincidentemente, há pouco tempo estava a ter uma conversa com o João, o artista do “Tão Original”, comentei que devido à minha negritude e ascendência africana, tenho de dar duas vezes mais do que alguém caucasiano, ou com algum tipo de privilégios sociais. Considero que devo usar isto como uma vantagem, pois acabo por ter a oportunidade de passar e dar a conhecer ao mundo outra perspetiva e outros modos de produção. Sinto desde 2014, ano em que comecei, que as coisas não são fáceis e têm tendência a ficar mais complexas devido ao “Brexit”, à pandemia do Covid19 e questões mal resolvidas face à discriminação. Os estrangeiros vão ter cada vez mais dificuldades para arranjar financiamento no Reino Unido. Sinto realmente que tenho de dar sempre mais devido às minhas idiossincrasias.
A que se refere quando menciona “dar duas vezes mais”? Já teve alguma espécie de dificuldade ou entrave na produção de conteúdo?
Os grandes entraves que já tive estão relacionados com festivais aos quais me candidatei. Lembro-me antes de tornar esta última curta-metragem pública, partilhei-a com diversos colegas da minha área e tive alguns problemas. Essas questões estão relacionadas com a língua original em que a curta-metragem foi produzida, que é o português. Não existe o hábito da legendagem, mas da dobragem. As pessoas aqui consomem o que é feito inicialmente em inglês e ter algo feito em português com legendas em inglês foi e ainda é algo que desafia o que já está normalizado e é expectável, tanto pela audiência, como pelos diretores dos festivais.
Querendo isso dizer que se quiser ir mais longe, vai ter de se adaptar completamente à língua estrangeira, não só devido ao público do Reino Unido em si, mas para atingir também falantes do inglês em todo o mundo.
Na parte académica ouço sempre que devemos inovar, ser originais e trazer algo culturalmente diferente, que capte a atenção do público e ter um pensamento dinâmico. Mas sei, por experiência própria, que a vasta maioria das pessoas simplesmente prefere e dá privilégio às coisas feitas originalmente em inglês. O uso de legendas é um problema. A nível geral, não gostam de perder o que se passa na curta-metragem por estarem a ler legendas, portanto acabam por preterir o que não está originalmente em inglês.
Ao tentar concorrer a festivais e afins com outras pessoas que tinham algum tipo de privilégio social, sentiu que para si as regras de algum modo já não eram exatamente as mesmas?
Há festivais em que nas descrições dos processos de candidatura dizem aceitar artistas locais e nacionais, mas não esclarecem exatamente o que entendem por artistas locais, por exemplo. Já tive problemas relacionados com a falta de especificação naquilo que é necessário para que um artista se possa candidatar a algum festival e, por vezes, parece haver uma discriminação dissimulada aos artistas que são estrangeiros.
Fale-nos do seu percurso. Onde começou e o que o levou ao Reino Unido?
Eu nasci em Portugal, Lisboa e sou descendente de pais cabo-verdianos. Desde pequeno que gostava de pegar na câmara de cassetes que o meu pai tinha e filmar as viagens que fazíamos. Era uma grande paixão.
Com o tempo comecei a interessar-me pela dança, tanto que gravei vídeos para o Youtube e fiz parte de um grupo. Mais tarde decidi tirar o curso profissional de Multimédia, por acreditar que esta é uma arma poderosa que influência o mundo e cria diversos discursos que ficam no inconsciente das pessoas.
A sociedade é muito influenciada pela música, por filmes, livros, podcasts, vídeos e tudo isso faz parte da multimédia. Sempre gostei também de assistir filmes e posso dizer que os de animação passam uma emoção familiar e calorosa que fica na memória. Não há forma melhor de passar uma mensagem, uma perceção de algo ou uma crítica, por exemplo. “The Pursuit of Happyness1”, “Moonlight2”, “Green Book3” foram filmes que me abriram horizontes e ajudaram muitas pessoas a pensar em certas temáticas de outra maneira.
Curtas-metragens são formas acessíveis e rápidas de se ter acesso a algum tipo de discurso ou mensagem e acredito verdadeiramente que estas formas de criação de conteúdo são úteis para a compreensão de temas menos falados, como a saúde mental. Aprender o máximo sobre as várias vertentes da multimédia é um grande objetivo meu. Edição de vídeo passou a ser algo específico que tenho feito. Estagiei com a produtora “Zoe Films” e fiquei depois a trabalhar lá como editor de vídeos, assistente de imagem, de realização e de produção. Aprendi muito. Com o tempo trabalhei com várias empresas e fiz várias edições. Cheguei à conclusão de que queria ser realizador e com a minha primeira curta-metragem, “I miss you” consegui ter mais de 25.000 visualizações. As minhas curta-metragens são reflexões de problemas que me rodeiam e sobre os quais acho que devemos falar. Da mesma forma que eu me identifiquei com outras formas de expressão, há quem se identifique com as minhas curta-metragens e é mesmo isso que pretendo. A produtora “Zoe Filmes” acabou por fechar, mas eu tenho continuado a desenvolver projetos e, entretanto, vim para a Universidade de Luton. Vamos ver o que o futuro me reserva.
Em relação às menções honrosas que teve: Melhor Curta-Metragem de Comédia no London-Worldwide Comedy Short Film Festival. Semifinalista: Melhor Curta-Metragem de Comédia no Lit Laughs International Comedy Film. Festival Finalista: Melhor Curta-Metragem de Comédia no Festival Internacional de Cinema Beyond the Curve Selecionado no KIIFF… É possível afirmar que o seu trabalho está a ter reconhecimento. Sente que o reconhecimento afeta a inspiração e a criação de um artista no sentido em que se sente compelido a fazer mais e melhor, ou o oposto, causando-lhe uma crise produtiva como demonstrada na sua curta-metragem?
De facto, o reconhecimento que tenho estado a ter dá-me muito mais energia para continuar a produzir e investir na qualidade dos meus trabalhos de produção e de edição. Devo confessar que é desmotivador quando invisto o meu tempo em algum projeto e ele acaba por não ser reconhecido. A opinião do público afeta sempre a performance do artista, como a do criador de conteúdos. A segurança ou a insegurança daquele que faz algo está sempre em causa face ao reconhecimento ou falta dele. Os últimos anos têm sido complexos para todos, especialmente devido à pandemia, aos confinamentos e agora por causa da guerra… Tudo isto nos afeta a vários níveis. E são essas pequenas conquistas que me têm ajudado a querer fazer melhor.
Qual é o papel do personagem vestido de preto que vai aparecendo ao longo da curta-metragem “Tão Original”?
Essa personagem surgiu graças a outras ideias em que também tenho estado a pensar em colocar no meu projeto final. Sempre me questionei sobre formas de representar a depressão e ansiedade como sendo uma pessoa. Com esta curta-metragem surgiu essa oportunidade. A minha ideia inicial era a de ter alguém com uma máscara grande e assustadora que causasse desconforto ao espectador. Devido a vários debates e argumentos sobre essa mesma representação foi decidido que faria mais sentido usar-se apenas uma máscara preta, sem formas, sem identidade, que está discretamente presente em vários momentos da vida. A “Mayra” sentia-se assim, cheia de problemas obscuros e presentes constantemente que afetavam a sua produtividade enquanto artista. Eu queria passar também a ideia de “yin yang”, de equilíbrio entre o branco e o preto, do consciente e do inconsciente. A “Mayra” tinha de aceitar os seus problemas como forma de ter um equilíbrio em si mesma. Um artista tem de aceitar o lado positivo, como o negativo da sua vida, caso queira prosseguir com a sua carreira, atingir mais público e ter o devido reconhecimento.
No fim desta curta-metragem, ficamos com a sensação de que os artistas aceitam muitas vezes a realidade que lhes aparece, mas eles não estão felizes. “Mayra” estava num sítio completamente sem vida, de árvores caídas, ambiente obscuro e de solidão, que ela teve de aceitar. Até que ponto produzir constantemente para um público consumista compensa todo o investimento que é feito?
Isso é algo que me tenho questionado nos últimos tempos… Até que ponto é que a adaptação do artista é correta? Até que ponto é que estamos a ser honestos connosco mesmos, quando só fazemos o que o público quer? Até que ponto é que por nos adaptarmos tanto, acabamos por nos perder a nós mesmos? Eu próprio penso muito nisso.
Há sempre sugestões de terceiros sobre formas para inovar, de seguir tendências, de adaptar, de tentar mudar para um certo público-alvo. Muitas vezes, conteúdo é criado só mesmo por ser uma tendência e por haver muito público que o consome, não propriamente porque há um interesse genuíno em se produzir aquele tema. Para haver reconhecimento, é preciso existirem adaptações e readaptações constantes às demandas do público e do mercado e no meio disso o artista perde-se.
As redes sociais em si são também cada vez mais rápidas e isso implica que os produtores de conteúdo tenham de possuir um grau de inovação constante. Nem sempre há algo com significado por detrás daquilo que está a ser criado. Muitas vezes só há produção por pressão e por ambição. Muitos artistas que têm medo de arriscar e fazer algo mais ligado àquilo que querem realmente fazer, porque é mais difícil e desconfortável. É difícil sermos realmente originais porque o risco de desentendimentos e de não aceitação são maiores. As pessoas têm de perceber que a arte não tem de ser adaptada. Ela é uma forma de expressão. Estou muito curioso para ver como serão os próximos tempos e como é que os artistas visuais vão lidar com a nova criação de vídeos na vertical. A adaptação não é algo necessariamente negativo, mas acima de tudo não deveria ser algo que inibisse o artista de ser ele próprio. Uma coisa é certa, apesar de tudo, a sociedade tem aberto mais olhos para as pessoas com menos representação nas esferas sociais e tem havido criações mais diversificadas, com perspetivas mais originais e críticas.
Entre a teoria e a prática, há sempre sugestões de todos os lados sobre o que se faz, mas os processos de produção são muito mais complexos. Tudo tem o seu tempo e modo de produção e isso inclui também o artista… O artista deveria ser preservado e ter menos pressão de criação, principalmente quando não há nada a ser dito.
Eu sinto que mesmo quando estou a escrever tenho partes em mim que me autocriticam e pressionam a criar mais e melhor. O artista já cria imensa pressão a si mesmo. Imensas vezes acontecem situações em que o próprio artista não sente confiança no que faz e são terceiros que dão essa coragem e ânimo. Entre a teoria e prática, há sempre uma lacuna enorme… No mundo da imaginação é tudo perfeito e fazível, mas a prática não é bem assim. Só há um controle maior na fase da edição, nos cortes de vídeo…E esse é um dos motivos pelos quais gosto de editar. Tenho mais controlo. No mundo real, não existe controlo e muito do que é feito está em prol de um público consumista e das exigências de um mercado em constantes mudanças.