Pensamentos de uma africana da contemporaneidade

“Em tempos de guerra, uns são humanos e outros… são africanos”, de autor desconhecido.

Nos últimos dias entre finais de fevereiro e meados de março tenho tido sentimentos paradoxais e confusos. Os tempos mudam, mas as formas de atuar, de agir e de pensar tornam-se numa versão contemporânea do tradicional. Guerras parecem ser uma realidade que nos vai sempre perturbar em algum momento, mesmo em épocas de conflito. Nessas alturas fica ainda mais evidente que nem todos parecem ser humanos e por isso não são tratados como tal. Que quero aqui dizer? Independentemente de estarmos em 2022, por muitos séculos volvidos, negros ou africanos nem sempre foram perspetivados como sendo pessoas. Não tinham sentimentos, não pensavam, não possuíam inteligência ou terras e, muito menos, foram considerados civilizados…. Vários movimentos surgiram no século XX sobre a importância de valorizar e  de reconhecer negros e africanos como sendo sujeitos. O movimento da negritude em várias partes do mundo; o movimento negro essencialmente no Brasil; o movimento “Black lives matter” com origens nos Estados Unidos da América. Tudo isto foi necessário acontecer, mas parece não ser suficiente. “Em tempos de guerra, uns são humanos e outros… são africanos”. Esta frase tem-me ficado na memória.

WOJTEK RADWANSKI/AFPWOJTEK RADWANSKI/AFP

Neste momento, as diferentes vertentes da guerra na Ucrânia é algo que está a fazer pensar e problematizar. Durante a guerra que papeis sociais ocupam as pessoas? Quem são as prioridades e porquê? Já existem discriminações a vários níveis em alturas de paz, pelo que quando há conflitos todo o preconceito existente se intensifica e é aí que se tornam visíveis as fases contemporâneas do agir tradicional que não parece ter mudado. Não existe, se é que alguma vez tenha existido, uma nação sem diferentes comunidades e diferentes pessoas. Significando que convivências multiétnicas são uma realidade antiga em vários cantos do mundo. Então, porquê e para quê discriminar? Vários foram os relatos que me foram chegando nas redes sociais sobre a discriminação racial que tem estado a ocorrer na Ucrânia nos últimos dias aos estudantes negros, ou africanos, ou afrodescendentes que tentavam sair do país para escaparem da guerra, cruzando a fronteira da Ucrânia com a Polónia. Uns a pé, outros de comboio, outros ainda de autocarros. O problema agrava-se quando a passagem lhes é negada. Porquê? Esses estudantes não eram a prioridade e só poderiam embarcar nos transportes caso houvesse um lugar que não fosse ocupado pelos cidadãos do país. Isto é-lhes violentamente dito na fronteira polaca. Pessoas não ucranianas não tinham qualquer tipo de prioridade. Quem conseguisse entrar no comboio e não fosse ucraniano era tirado à força. Quem tentasse cruzar a fronteira a pé temia pela sua vida, porque apenas ucranianos o poderiam fazer. Proibição de passar? Todos os estrangeiros, havendo relatos de outros estudantes estrangeiros de outras partes do mundo.

Como pode isto acontecer? Quais são as idiossincrasias dos ucranianos para que os seguranças os consigam distinguir sem sequer olhar para os seus documentos? Vários vídeos começaram e continuam a circular, assim como o uso de argumentos sobre a lei marcial que implicava que homens entre os 18 e os 60 anos estariam proibidos de sair do país. Acontece que esta restrição serviria para cidadãos ucranianos e não para homens de outras etnias que estejam a residir no país, como é o caso dos estudantes. Quem não é ucraniano pode voluntariar-se para combater, mas não é obrigado a permanecer no país para o fazer. Numa tradução livre para português, foi dito por vários estudantes que eles não tinham armas ou munições e que não tinham ido para a Ucrânia para lutar. Essa não era a sua função. Porém, estavam a ser deixados no país para isso mesmo. Lutar pelas suas vidas, lutar contra níveis profundos de discriminações com séculos de existência, exclusão racial social e racismo. Lutar por mais visibilidade, representatividade, compreensão e posicionamento enquanto seres sociais e dignos de direitos. Seria de esperar que em tempos de guerra, quando todos são aflitos pelo mesmo desespero, que houvesse mais solidariedade, empatia e entreajuda. Porém, o oposto parece ser a realidade pela qual muitos povos ainda passam. A diferença deve ser um fator de união e não de conflito e de segregação. 

Imaginei o que seria passar por uma guerra que não me pertence. Imaginei o que seria estar no lugar errado na hora errada e escrevi o seguinte:

Somos muitos, milhares, milhões, de almas perdidas… Aos encontrões…

A vida muitas vezes, para mim, é isso mesmo: uma ilusão. Achamos que somos algo de interessante. Achamos que somos algo de importante. Achamos que fazemos a diferença ou que tem algum sentido possa ter a nossa existência!

 Estou cansada e desanimada…

Tentei sair, tentei fugir, mas não me deixaram…

Tentaram fazer-me acreditar que nada sou.

Afinal, o que é isto de viver?

Estado de muita tristeza, de profunda apatia, de grande falta de pertença, de cansaço, de fadiga, de sensação de inutilidade?

Até quando teremos de lutar?

É triste? Não sei até que ponto, mas sinto que assim é.

A vida deveria ser sobre a beleza de querer preservar a pureza, sem qualquer ansiedade ou maldade ou qualquer tipo de desumanidade

Estamos todos perdidos nas nossas vidas iludidas que não vemos o outro que tanto precisa…

Há quem diga que tudo vale a pena… Há quem diga que a única certeza desta nossa vida iludida é a incerteza.

Esta minha sensação de que por mais lutas e ativismos que possa haver, a indiferença para com vidas negras e africanas permanece a mesma. São vários os exemplos disso mesmo. Escravatura, tráfico transatlântico, apartheid, violações, uso desenfreado da coerção, do espectro do medo, de violências de todas as formas possíveis e inimagináveis contra uma alteridade que é reduzida e alienada apenas por ser diferente. Existem agora formas contemporâneas desta exploração do corpo negro ou africano. Formas verbais por meio de expressões linguísticas com conotações negativas “vestir à preto”, “falar à preto”, “andar à preto”. Formas de ostracização e desincentivo a prosseguir a vertente universitária, por se achar que o aluno negro ou africano não tem capacidade intelectual para tal. Formas de discriminação no acesso ao arrendamento de imóveis ou na aquisição de produtos e bens do quotidiano, afirmando-se que a pessoa não tem as condições necessárias para residir em determinado local. Preterir africanos, afrodescendentes e negros em função de qualquer outro povo, havendo continuidade de um ciclo social de total desvalorização e indiferença pela alteridade que é o outro.

A realidade é ainda esta, mas não deixamos de acreditar que teremos um melhor mundo com espaço de compreensão para todos.

por Arimilde Soares
A ler | 14 Março 2022 | afrodescendentes, guerra, polónia, racismo, ucrania