Raça e (austeridade da) História, reflectindo a partir de um estudo etnográfico sobre a migração contemporânea de portugueses para Angola
Histórias austeras
Num volume publicado recentemente sob o título Histórias Austeras em Sociedades Europeias – Exclusão Social e a competição de memórias coloniais[1] explora-se a hipótese de que as actuais políticas de austeridade económica implementadas por toda a Europa se estejam desde já a repercutir na implementação daquilo que os autores chamam uma “historiografia austera”, definida como a tendência para “o reforço da ideia de conformidade no presente e no passado europeu”. Nesta compilação, e em múltiplos estudos de caso no espaço europeu, os diferentes artigos tornam explícitos os “fortes interesses [que] trabalham hoje em dia no sentido de purgar as histórias de nações europeias específicas, mas também a da Europa e do Ocidente, de uma ideia de pluralidade cultural. Histórias heróicas e homogéneas sobre o passado das nações, regiões e religiões estão a ser re-contadas e reinventadas”(p.3).
Julia Willén e Stefan Jonsson, coordenadores do volume e autores do seu texto introdutório, consideram pois que, posto um período em que na Europa se abriram espaços para a pluralização das formas de narrar a História, nos dias de hoje, este “projecto histórico de desbloqueio, multiplicação e contestação parece estar em risco. Multiculturalismo, memórias pós-coloniais e discursos das minorias estão a ser marginalizados, e isto no exacto momento em que era razoável esperar que eles fossem confirmados e inscritos enquanto preocupações centrais de qualquer visão geral da história e sociedade europeias” (p.4).
Portugal em contraciclo?
Se tomarmos como adequado este diagnóstico de uma tendência geral europeia e lhe apusermos a recente ocupação do espaço mediático nacional pelo tema do racismo em Portugal[2], com uma insistência e tom que desafiam velhos hábitos nacionais, fará quiçá sentido dizer que Portugal se encontra, neste âmbito, em contraciclo[3].
Classificar este momento como contracorrente deve-se tanto à emergência recente do tema no debate público (e/ou publicado)[4], como ao facto de não ter havido a prévia vaga de pluralização e contestação acima assinalada para o âmbito alargado da Europa. De facto, e usando da noção apresentada, poder-se-á dizer que, no caso português, a história se manteve durante todo o último século continuamente austera[5] e que a tendência para uma leitura crítica pós-colonial que teve lugar noutros países europeus não se verificou[6] ou, por outra, não transbordou para o espaço extra-académico como parece estar agora a acontecer.
Uma concomitante particularidade da realidade social portuguesa dos últimos anos (por hipótese, não despicienda para a primeira) é o facto de - tal como observam Peralta e Jensen no artigo “Da Austeridade à Nostalgia Pós-colonial: Crise e Identidade Nacional em Portugal e na Dinamarca”[7], sua contribuição para o volume acima referido - a situação de austeridade vivida no país ter conduzido a que se intensificassem as relações (primeiro que tudo económicas, mas não exclusivamente) com países ex-colonizados por aquele – Brasil, Angola, Moçambique…
No que se segue, mais do que indagar sobre as razões que subjazem ao contraciclo, pretendo imbuir-me da dinâmica de debate por ele criada, contribuindo com duas ou três reflexões trazidas de outras paragens. Para isso vou debruçar-me sobre um dos ângulos deste processo de intensificação de relações com países ex-colónias - a saber, a ida de trabalhadores portugueses para Angola - e refletir sobre de que forma ela ilustra e acrescenta ao debate actual sobre raça e racismos em Portugal/em português.
Parto dos resultados de um projecto de investigação em que participo actualmente enquanto estudante de Doutoramento, juntamente com Lisa Åkesson Professora de Antropologia - ambas afiliadas na School of Global Studies da Universidade de Gotemburgo (Suécia) – e Pétur Waldorff (Universidade da Islândia). No âmbito deste projecto de investigação, fiz uma estadia de trabalho de campo etnográfico em Benguela (Jul/2015-Fev/2016), onde tive a oportunidade de conviver com portugueses, perceber como eram os suas vidas quotidianas e que sentidos davam à sua presença naquele território. A Lisa Åkesson e o Pétur Waldorff fizeram várias estadias de campo em Luanda (igualmente durante os anos 2015/16) durante as quais conduziram entrevistas tanto com migrantes portugueses, como com Angolanos com quem se relacionavam, mormente em contexto laboral.
Da nova presença portuguesa em Angola
Em torno do ano 2008, Angola começou a tornar-se um destino comum para os emigrantes portugueses, e títulos sonantes como “Vamos todos para Angola”[8] inundaram a imprensa nacional.
Na imprensa internacional, peças jornalísticas sobre esta dinâmica migratória Norte-Sul apareceram frequentemente estruturados em torno de uma narrativa de inversão de papéis. A título de exemplo, um artigo recente publicado no New York Times intitulado “Portugal Dominated Angola for Centuries. Now the roles are reverted”[9], insistia na fórmula, remetendo para o duplo movimento de capitais angolanos a ser injectados na economia portuguesa e trabalhadores portugueses a ser recrutados para Angola.
Retrovertendo os “papéis invertidos”
Um olhar mais próximo da realidade vivida pelos portugueses em Angola desafia contudo esta visão simplista de um mundo ao contrário.
Na minha pesquisa etnográfica interessei-me pelos processos cristalização e/ou reconfiguração identitárias, enquadrando o meu trabalho naquilo que Lieba Faier e Lisa Rofel classificam de “etnografias de encontro [encounter]”, descrevendo que estas “[se] distinguem[…] por considerar que as formas de fazer cultura ocorrem em encontros quotidianos entre membros de dois ou mais grupos com backgrounds culturais distintos e interesses dissimilarmente posicionados nas suas relações. O termo encontro [encounter] remete para engajamentos cruzados com a diferença: encontros fortuitos, trocas sensoriais, confrontações longas, desagravos acalorados…”[10].
Esta perspetiva micro, próxima das relações e interações quotidianas, trouxe à luz uma amálgama de rupturas imperfeitas e continuidades parciais com o tempo colonial. Se, de facto, a estrutura política de Angola contemporânea fez com que os interesses económicos de portugueses (fossem eles indivíduos ou empresas) se colocassem em posição subalterna face ao poder e influência de uma pequena facção de indivíduos angolanos; e se, de facto, em virtude da instabilidade estrutural da sua situação legal no país, serem comuns os testemunhos de portugueses que revelavam o sentimento de serem particularmente atreitos a perseguições por parte das autoridades ou alvos fáceis de atritos, chantagem e exploração no local de trabalho; é, por outro lado certo que, em termos gerais, e dado o capital cultural e simbólico que lhes é atribuído, os trabalhadores portugueses ocupavam em Angola posições tendencialmente superiores nas hierarquias das estruturas profissionais em que eram integrados, fazendo com que, na grande maioria dos casos e independentemente das suas qualificações e habilitações literárias, trabalhadores portugueses tivessem subordinados Angolanos.
Uma conjugação de factores de sinal contrário daria azo a construções identitárias ambivalentes: se por um lado muitos se sentiam desprivilegiados no seu estatuto legal e sofriam com as consequências daí advindas, por outro, na maioria dos casos experienciavam e percepcionavam a sua emigração para Angola enquanto mobilidade social ascendente – tanto em relação ao contexto de origem, quanto ao de chegada. O que se reflecte também no facto de, analisadas de perto, as relações e interações observadas entre portugueses e Angolanos aparecerem ainda imbuídas de preconceitos enraizados que derivam e se legitimam em mitos perenes sobre a história colonial portuguesa.
Preconceitos enraizados
Para grande parte dos portugueses que encontrei em Angola, o processo de se tornar alguém com poder circunstancial sobre as ações de outros viria em paralelo com a aprendizagem de como lidar com um Outro culturalmente reificado. Conversas revolvendo em torno da descrição de empregados Angolanos e das melhores estratégias de lidar com Eles, eram frequentes, tomando contornos essencialistas e generalizantes a fazer lembrar a célebre descrição de Albert Memmi dos perfis dos colonizados e colonizadores, escrita em 1951, nomeadamente, naquilo que a ele chama “a marca do plural”, parte do processo de “despersonalização do colonizado”: “O colonizado nunca é caracterizado de uma maneira individual; ele só pode estar imerso numa colectividade anónima (‘Eles são assim’, ‘Eles são todos iguais’)”[11].
É certo que a todo o momento testemunhei contradições entre as generalizações verbalizadas, por um lado, e, por outro, interações isoladas com indivíduos específicos, com constantes saltos lógicos entre casos pessoais e generalizações essencialistas. Embora os tropos de incompetência e falta confiança fossem dominantes, coexistiam frequentemente com referências a encontros específicos; para além disso, as interações observadas entre indivíduos específicos parecia também contradizer algumas das mais negativas pré-concepções verbalizadas. Ainda assim, o facto de se assumir que ‘havia, claro, excepções’, parecia, de acordo com o provérbio, apenas provar a regra. Isto é, que a grande parte dos portuguese que encontrei em Benguela se referisse a indivíduos angolanos específicos que, no seu entender, se distanciavam de um suposto núcleo essencial de características, não os faria duvidar da validade ou aplicabilidade do tal retrato generalizantes, não se abstendo de o repetir, reproduzindo o discurso dominante.
Incompetência e indolência
Este retrato generalizante dos angolanos aparecia o mais das vezes estruturado em torno de uma característica fundamental, a incompetência, que por sua vez se desdobrava numa miríade de faltas: ‘falta de responsabilidade’, ‘falta de pontualidade’, ‘falta do sentido de dever’, ‘falta de confiança’… De uma forma que, novamente, ecoa a descrição que Memmi faz do discurso dos colonos sobre a indolência dos nativos:
“Nada poderia melhor justificar a posição privilegiada do colonizador do que a sua industriosidade, e nada poderia melhor justificar a destituição do colonizado do que a sua indolência. O retrato mítico do colonizado inclui, portanto, uma inacreditável desídia, e o do colonizador, um gosto virtuoso por acção (…). Ao ouvi-lo (…), descobre-se no entanto que o colonizador não está assim tão insatisfeito com aquela indolência, seja ela real ou suposta. Ele fala dela com uma afabilidade divertida, faz piadas sobre ela, utiliza todas as expressões usuais, melhora-as, inventa outras. Nada consegue descrever suficientemente bem a extraordinária deficiência do colonizado. Ele [o colonizador] torna-se lírico sobre isso, de um modo negativo”[12].
Assim, tal como na descrição de Memmi, também junto dos interlocutores desta pesquisa, encontrei sinais de que era a através da caracterização do seus Outros – os angolanos – que se alcançaria uma figuração d’O português: uma imagem dando forma à outra, por inversão dos seus traços. Daí, a noção frequente de que os portuguese em Angola eram extremamente trabalhadores - passariam, alegadamente, ‘mais horas no local de trabalho’, imbuídos de um ‘maior sentido de responsabilidade’.
Uma dimensão muito visível deste sentido de superioridade eram as atitudes adoptadas por alguns portugueses em interação com angolanos no espaço público, fora da esferas privada e profissional, por exemplo nos serviços (bancos, restaurantes, lojas…)
Encontrei nestas instâncias a refração da postura de patrão que contribuía, para o estigma de arrogância associado, no dizer de muitos, aos portugueses em Angola. Como por exemplo este jovem luso-francês, a trabalhar numa multinacional francesa que me referiu com enorme espanto: “Eu tenho uma opinião muito negativa sobre alguns portugueses em Angola. Nos restaurantes, por exemplo, eles assobiam aos empregados, falam com eles de uma forma que eu nunca vi noutro sítio. Eu acho que os portugueses desempenham um papel fundamental no desenvolvimento de Angola, em termos de infraestrutura. Os angolanos aprendem com os portugueses, mas ao mesmo tempo, alguns deles ainda não se aperceberam que Angola já não é uma colónia!”.
De facto, era observável uma atitude de condescendência de tipo particular em relação aos empregados – uma mistura de extrema familiaridade com óbvia ostentação de superioridade. Mais comuns do que os casos de aberto autoritarismo, foram as situações que comecei a encarar enquanto performances mutualmente irónicas de paternalismo e autoritarismo de uma parte, e ineficiência e troça da outra: usualmente, os pedidos perdiam-se e tinham que ser repetidos consecutivamente, certos produtos nunca pareciam disponíveis embora a informação dessa ausência nem sempre fosse veiculada de forma eficaz; complicações burocráticas emergiam contínua e continuadamente. Em reação a isto os clientes portugueses reagiam com uma atitude de condescendência, combinação de paciência, escárnio e autoritarismo “suave”, como um pai rindo de filhos tentando e falhando consecutivamente em cumprir tarefas simples, atitude que era também parte do repertório informal de comportamentos para lidar com subordinados angolanos. Como se as performances sociais de parte a parte se coproduzissem num ciclo vicioso de baixas expectativas e baixa eficiência. Atitude também patente noutras relações mais estruturadas (e estruturantes) por exemplo entre professores-portugueses e alunos-angolanos.
Uma postura e comportamentos de superioridade no quotidiano que, juntamente com verbalizações mais ou menos veladas de preconceito racial, parecem alinhados com os resultados estudos de Jorge Vale sobre os preconceitos racistas dos Portugueses, de que dá conta em entrevista recente: “Portugal é dos países da Europa que mais manifestam racismo”[13].
Um duradouro “artigo de fé”
O que Jorge Vala refere também na entrevista (e tem vindo a fazê-lo nas suas publicações) - e que os investigadores que se dedicam a estes temas desde há muito não falham em repetir - é a forma como estes preconceitos raciais coexistem com uma narrativa de si próprios que, herdeira do lusotropicalismo, está nos antípodas, vendendo o “povo português” enquanto especificamente apto para a “lidar com os povos [ex-]colonizados” [14].
Em 1963, Charles Boxer, figura de destaque na pesquisa historiográfica sobre a expansão e colonialismo portugueses, abria com o seguinte parágrafo o seu livro intitulado Race Relations in the Portuguese Colonial Empire 1415-1825:
“Como a maioria de vocês provavelmente sabe, é um artigo de fé entre muitos portugueses que o seu país nunca tolerou uma divisão racial nas suas possessões ultramarinas e que os seus compatriotas sempre tiverem uma afinidade natural para contactos com pessoas de cor. Numa entrevista recente para Life Magazine, o Dr. Salazar afirmava: “Este contacto nunca envolveu a mais pequena ideia de superioridade ou discriminação racial… Eu penso que posso dizer que aquilo que distingue a África portuguesa – e apesar dos muitos esforços que se têm feito para atacá-la com palavras e acção – é a primazia que sempre atribuímos e continuaremos a atribuir ao potencial do valor e dignidade humanos sem distinção de cor ou credo, à luz dos princípios de civilização que transportámos. Estes princípios são muito sinceros e profundos, mas isto não quer dizer que sejam sempre assentes em factos históricos. O objectivo destas comunicações é o de demonstrar como a verdade é mais complexa, e que as relações de raça no antigo império português não correspondiam invariavelmente a tal imagem de integraçâo harmoniosa que a passagem acima parece induzir.”
Sessenta anos passados, e apesar de vasta produção de conhecimento que tem dado continuidade ao objectivo de Charles Boxer, desvelando com sistemacidade a referida “complexidade” e a integração não “harmoniosa”, em grande medida ainda vigora entre nós uma ideia mais ou menos vaga do excepcionalismo da gesta colonial portuguesa, que passa por uma maior adaptabilidade, miscigenação, associadas a noções essencialistas sobre o suposto “carácter português”. Tanto assim é que se tornou lugar-comum de passagem obrigatória, na investigação dedicada a questões de identidade, raça, ou memória social no Portugal pós-colonial, começar por evocar esta aspecto.
“Cândida ignorância / Grande desimportância / Os frutos da Errância já lá vão”[15]
Na sua versão mais cândida e, diria, mais comum, este “pós-lusotropicalismo”[16], lusotropicalismo vernacular, ou qualquer outro nome que lhe queiramos dar, apresenta-se como essencialismo cultural que assume dos portugueses uma grande facilidade de adaptação, nomeadamente quando comparando com outros povos europeus. Tal era patente em frases por mim ouvidas em Angola, como: “Bem, certo é não vês aqui muitos loiros de olhos azuis…”, cujo tom jocoso, não obscurece, contudo, a firmeza da crença e, acima de tudo, trai a sua incorporação-sem-problematização.
Na sua versão mais ignorante, vai ao ponto de se traduzir em articulação clara do excepcionalismo do colonialismo português. Åkesson encontrou instâncias desta versão, junto dos seus interlocutores em Luanda, tal como descreve na seguinte passagem: “quando pedi às pessoas para comparar o colonialismo português com outros regimes coloniais, os entrevistados portugueses responderam com uma imagem sobretudo positiva. Um orgulho no passado colonial mais ou menos declarado aparecia misturado com imagens idealizadas de um tempo de mistura racial não discriminatória. Noções pós-lusotropicais permeavam o discurso. Por exemplo, um homem que trabalhava no ramo da importação de material de construção exclamou: “Portugal foi a melhor potência colonial. Os espanhóis na América Latina mataram muita gente. Mas os Portugueses misturaram-se [com os habitantes locais] e ainda o fazem.” [17]
A minha hipótese é que a perenidade deste mito, desta “cândida ignorância”, ao obscurecer as passadas relações de opressão, subordinação e resistência, cria um vazio de responsabilidade histórica que, não sendo factor único, é pelo menos condição necessária para a existência continuada de relações abertamente racistas, em Portugal e alhures.
…
Quem tiver dedicado um mínimo de atenção ao que se tem produzido no meio académico português sobre os temas aflorados, não achará nestas linhas vestígio de novidade no que toca à essência da mensagem. O que a pesquisa etnográfica que aqui se aborda sugere, isso sim, é que estas crenças, estas narrativas amplamente aceites e inquestionadas, produzem efeitos também no dia-a-dia e interações de portugueses em Angola: num contexto em que, vistas sob outros ângulos, as relações de poder aparecem invertidas, e como tal foram referidas por muito do que se escreveu sobre o assunto na imprensa generalista. Sugere-se ainda que a realidade quotidiana dos trabalhadores portugueses em Angola, contradiz uma suposta relação verdadeiramente igualitária e pós-colonial (no sentido maximalista do termo, de ir para além das relações e razões instituídas pelo colonialismo) entre “povos-irmãos”, termos nos quais ela é vendida no discurso oficial português.
O pressuposto de que a relação priviligiada dos portugueses com Angola assenta num longo interconhecimento, que, por sua vez, é fruto da suposta facilidade com que os portugueses se integram e misturam, sem (re)conhecer a violência e opressão que subjaz aos processos históricos que colocaram em relação os dois países, impede uma tomada de responsabilidade pelo passado. Não se trata aqui de negar factos manifestos: há obviamente uma “história partilhada” que, para além da língua comum (que dou de barato – deslembrando, para o efeito, o multilinguismo de Angola), os aproxima em muitos campos (dos quadros legais, a uma massa de indivíduos que tem nos dois territórios conexões e pertenças materiais e sentimentais, e que transitam entre os aqueles como vestígios vivos e reprodutores dessa mesma história); trata-se, isso sim, de tomar o peso aos reais contornos dessa história.
A última grande perversidade que tudo isto encerra é o facto da desresponsabilização em relação ao passado se fazer acompanhar, e com consequências decerto mais automáticas e gravosas, de uma desresponsabilização em relação ao presente. Chavões igualitários são apropriados defensivamente pelos líderes portugueses quando louvam os investimentos de empresários angolanos em Portugal; simbolizando estes que as relações entre os dois países são efectivamente entre pares, como Augusto Santos Silva alega em comentário publicado no artigo do New York Times acima referido, em que avalia o crescente poder de Angola enquanto positivo, pois que relações pós-coloniais assimétricas carregariam consigo o “travo de neocolonialismo”. É a realpolitik trasvestida de paridade pós-colonial – pataca a ti, pataca a mim - ilibando-se de culpas e demitindo-se de sequer querer saber como é a hoje a governação em Angola, quem a comanda, que privilegiados e desapossados engendra. Afinal de contas, passado é passado e no presente somos todos iguais - sem “neocolonialismo(s)”, nem tão-pouco - tomando de empréstimo as palavras do Presidente Marcelo - “xenofobias, intolerâncias, complexos de falsa superioridade ou de incompreensível inferioridade” [18].
“Somos a nossa história, se fingirmos o contrário, somos literalmente criminosos”[19]
Entretanto, já pouco se fala nos portugueses em Angola. Muitos tiveram que voltar em consequência da crise económica fruto da queda do preço do petróleo. Os que lá ficaram não são já novidade que mereça grandes títulos de jornal.
Por outro lado, as instâncias de racismo institucionalizado em Portugal passam por muitos outros âmbitos[20], que não o que trouxe aqui à liça, procedente do difuso campo da memória social e das reconfigurações identitárias em tempos pós-coloniais.
Mas os múltiplos exercícios hão-de caminhar, em paralelo: mudar o presente passa também por reexame aturado e responsável do passado[21]. Enquanto não se alterar o campo de significados para os quais nos remetem expressões como “Expansão portuguesa” ou “colonialismo português”, só dificilmente seremos capazes de identificar, os duradouros vestígios desse período histórico, e não saberemos tomar responsabilidade por ele nem conseguiremos imaginar novos contornos para relações presentes e vindouras. Enquanto não se combater a “cândida ignorância” (através não só de pesquisa, mas sobretudo de divulgação dos seus resultados) a que “o passado colonial” é votado no discurso dominante, esvaziando-o dos factos históricos de opressão e exploração e, ao mesmo passo, atribuindo-lhe a suposta excecionalidade que teima em perdurar, o racismo estrutural que permeia as vidas das pessoas racializadas em Portugal continuará obscurecido aos olhos dos portugueses, e, tal como tentei demonstrar, influencia comportamentos e atitudes em relação a determinados países ou indivíduos naturais desses países, fora de Portugal.
A história de Portugal tal como tem sido veiculada no último século, nos discursos oficiais, nos currículos escolares, na fala de responsáveis políticos, é - de resto, tal como a austeridade económica - seletivamente austera: diz muito sobre muito pouco e pouco sobre tanto. Se, como escreveu Marta Araújo, o ano “2017 foi o ano zero no debate público sobre racismo em Portugal” e 2018, a dar-lhe continuidade, tem o potencial de “ficar para a história”, que o fique também por quebrar a austeridade a que ela foi votada[22].
fotografias de Marta Lança.
Notas
[1] Jonsson, S. & Willén, J., 2017, Austere Histories in European Societies – Social exclusion and the contest of colonial memories, Routledge.
[2] Joacine Katar Moreira resume as grandes linhas desta tendência num artigo recentemente publicado no Buala: “2017 em Portugal: o racismo, a escravatura e o renascimento do negro” (http://www.buala.org/pt/a-ler/2017-em-portugal-o-racismo-a-escravatura-e...):
[3] Tomo aqui de empréstimo a expressão usada por Fernanda Câncio numa entrevista feita a 22 de Agosto a Graça Fonseca, secretária de Estado da Modernização Administrativa, para o DN: “FC: Nesta semana, li um texto, escrito na sequência de Charlottesville, em que o ex-publicitário Pedro Bidarra diz que a esquerda está a perder para a direita porque esta usa as emoções enquanto a esquerda crê que as pessoas se conquistam com um discurso racional. Tem razão? GF: Não. Acho que não há racional-esquerda e emoções-direita. Falando de Portugal, não acho que este governo tenha usado fundamentalmente a razão. Pelo contrário, acho que tentou bastante despertar sentimentos positivos das pessoas, inclusivamente na forma como se relacionam com os outros. FC: Portugal está em contraciclo. A análise de Bidarra é mais global: tem a ver com a vitória de Trump, do brexit, com Le Pen. Aliás, a ressurgência da extrema-direita e dos movimentos nazis já a preocupava em fevereiro de 2015, falou dela numa entrevista ao Público. Como explicar racionalmente isso?” ( http://www.dn.pt/portugal/interior/se-calhar-no-psd-ja-ninguem-liga-muito-a-passos-coelho-8719762.html
[4] Alguns eventos mediáticos marcaram esta dinâmica (para não falar do contexto internacional que não será também despiciendo): a visita do Presidente da República à Gorée e as ausências do seu discurso; a acusação do Ministério Público a todos os efetivos da esquadra de Alfragide por violência racista contra seis jovens da Cova da Moura (https://www.dn.pt/sociedade/interior/os-policias-eram-deuses-agora-sao-c...); o caso do candidato autárquico do PSD à Câmara de Loures, André Ventura (https://www.publico.pt/2017/07/17/politica/noticia/andre-ventu…). Mas talvez mais notável seja a panóplia de artigos de investigação jornalística (veja-se a série da autoria de Joana Gorjão Henriques, no Público : “Racismo à Portuguesa”: https://acervo.publico.pt/racismo-a-portuguesa) e de opiniäo, programas de debate (e.g., Programa “Prós e Contras” sob o tema Portugal: País Racista?”), programações culturais e artísticas, que emergiu sobre o tema – ou adjacentes: denúncias de racismo institucional; reflexões sobre a escravatura, pedidos de desculpa e “reparações”, etc…
[5] Arriscaria mesmo dizer que, o nexo entre economia de austeridade e austeridade na história, ao invés de ser um dado novo, se verifica, no caso português, na longue durée.
[6] As razões que subjazem a esta ausência escapam ao âmbito deste texto, mas rapidamente se pode conjecturar que um dos factores para tal seja “a anomalia portuguesa” no panorama europeu em termos de imigração – o facto de Portugal ter, comparativamente, recebido poucos imigrantes, de ter uma história de emigração longa e estrutural - como lhe chamou o historiador Magalhães Godinho.
[7] Peralta, E. & Jensen L., 2017, “From Austerity to Postcolonial Nostalgia: Crisis and National Identity in Portugal and Denmark”in Jonsson, S. & Willén, J., 2017, Austere Histories in European Societies – Social exclusion and the contest of colonial memories, Routledge.
[8] Revista Visão, 12/03/2009.
[9] Onishi, N., 2017/08/07 Portugal Dominated Angola for Centuries. Now the Roles Are Reversed
[10] Faier, L. & Rofel, L. 2014, “Ethnographies of Encounter”, Annual Review of Anthropology, 43, 363-77.
[11] Memmi, A., 2003[1951], The Colonizer and the Colonized, London: Earthscan Publications.
[12] Ibid., p.123-4.
[13] Tal como fica explícito no seguinte excerto : “numa pesquisa integrada no programa de investigação Atitudes Sociais dos Portugueses, com dados do European Social Survey que inquiriu 30 mil pessoas com mais de 15 anos, em 20 países, Portugal aparece com um alto índice de racismo. Medindo o racismo biológico (com as perguntas: “acredita que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes do que outros? acha que há raças ou grupos étnicos que nasceram mais trabalhadores do que outros?”) e o racismo cultural (“pensando no mundo hoje, diria que há culturas muito melhor do que outras ou que todas as culturas são iguais?”) os inquiridos em Portugal têm dos índices mais elevados de crença nos dois tipos de racismo: 52,9% no biológico e 54,1% no cultural quando a média europeia é de 29,2% e 44%, respectivamente.” (https://www.publico.pt/2017/09/02/sociedade/noticia/portugal-e-dos-paises-da-europa-que-mais-manifesta-racismo-1783934)
[14] Da mesma entrevista a Jorge Vala: ”Nas atitudes, no tratamento na justiça vamos encontrar um enviesamento do sistema que é muito mais punitivo para as pessoas negras do que para as pessoas brancas. Portugal não é nenhuma ilha, como se tentou defender. Temos um mito protector que é o luso-tropicalismo. Até determinado momento, protegia-nos; hoje, é um mito legitimador da visão sobre o nosso passado.”
[15] José Mário Branco, “Cançäo dos Torna-Viagem”.
[16] Vale de Almeida, M. (2016). Multicultural: Stories of Political and Cultural (Mis)understanding. In Irene Gilsenan Nordin et al (Ed.), Transcultural Identity Constructions in a Changing World. (pp. 23-32). Frankfurt: Peter Lang.
[17] Åkesson, L.(no prelo), Migrants or masters? The poscolonial Porgtuguese migration to Angola, Palgrave MacMillan, p.32.
[18] Marcelo Rebelo de Sousa (aka ’Ti Celinho’) no seu já muito comentado discurso de tomada de posse, proferido a 9 de março de 2016: ”(…)Vocação universal, no abraço que nos liga aos povos irmãos, que partilham a nossa língua, numa comunidade aberta e inclusiva. Vocação universal, em que a História se junta à Geografia, e em que o sermos europeus no ponto de partida e na firme vontade de participarmos na unidade europeia se enriquece com o sermos transatlânticos e, mais do que isso, podermos aproximar gentes e falas e economias e sociedades as mais distintas, sem xenofobias, intolerâncias, complexos de falsa superioridade ou de incompreensível inferioridade.”
[19]Baldwin, J., 2016, I am not your Negro.
[20] Marta Araújo lista no artigo de opinião ”Racismo – 2018, um ano para a história?” as questões prioritárias: “1) o fim da violência policial, que tem afectado desproporcionalmente as populações racializadas, sobretudo os jovens negros; 2) a violação do direito constitucional a habitação condigna e o fim dos despejos forçados, que afectam incomparavelmente as populações ciganas e negras; 3) a participação e representação política das populações racializadas, tanto portuguesas como imigrantes; 4) a atribuição de nacionalidade portuguesa a quem nasce em território nacional e aqui projecta a sua vida; 5) o direito a uma educação pública de qualidade para todos, sem segregações formais ou “administrativas”, nem “currículos alternativos” de fim de linha; 6) e, sim, é preciso tocar na história, o maior reduto das forças conservadoras do país.” (https://www.publico.pt/2017/12/29/sociedade/cronica/racismo-2018-um-ano-...)
[21] Alexandra Lucas Coelho espelha brilhantemente esta ideia na seguinte passagem do romance Deus Dará: “Todos os impérios são uma história da violência, caberá a cada um atravessar a sua para ser mudado. Quando isso não acontece, o filho do que foi morto falará e o filho do que matou não conseguirá entendê-lo, porque o lugar do outro está por experimentar, nunca houve transformação. Quem teme deixar de ser quem é não vai saber quem foi nem quem vai ser. De olhos e ouvidos fechados aos espíritos, continuará a cobrir-se com as mesmas palavras” (p.466).
[22] Araújo, Marta, ibid.