Remessas, migrações, e o desenvolvimento de Cabo Verde
Há muito associado a uma grande tradição de emigração, Cabo Verde recebe anualmente remessas provenientes do estrangeiro em quantidades significativas. De facto, a diáspora supera a população residente no país, e quase todas as famílias tem parentes no estrangeiro. Apesar de nas últimas décadas a emigração ter reduzido, a população emigrante continua a ter como destinos de eleição a Europa e os EUA.
Analisando uma problemática bem mais complexa do que inicialmente se poderia imaginar, estas remessas contribuem para o desenvolvimento do país, ou colocam alguns obstáculos? E de que forma este dinheiro é utilizado em Cabo Verde?
Canais de trânferência
Existem vários canais legais de transferência de remessas, os mais importantes são os bancos, os MTO e os MFI (sigla em inglês para as instituições de microfinanças). Organizações não-governamentais e correios são também utilizados para estes serviços, assim como alguns cartões de crédito, que têm oferecido alternativas inovadoras e vantajosas para quem quer realizar este género de transferências.
As remessas podem ser transferidas de maneiras diferentes, e entre os canais ou serviços oficiais contam-se os operadores de transferência de dinheiro (MTO) globais, como por exemplo a Western Union e a Money Gram, e MTO regionais a par dos bancos nacionais e internacionais. É comum existir a ideia de que as taxas cobradas nestas transferências são muito elevadas, isto acontece porque estas taxas são proporcionalmente mais elevadas para pequenas quantias de dinheiro. E segundo estudos do Banco Mundial, podemos mesmo afirmar que as taxas dependem bastante do montante da remessa, do canal que é utilizado, o destino da remessa e o país de origem do seu envio, tendo isto em conta, as taxas podem representar cerca de 20% da quantia transferida.
Com a existência de todos estes canais legais de transferência, os sistemas informais de transferência de fundos tem vindo a enfrentar tempos complicados, devido a fatores como as migrações forçadas, e o medo do terrorismo internacional, a que muitas vezes são associados.
Quanto aos canais de transferências ilegais, dois sistemas de remessas informais bastante conhecidos são o Hawala e o Hundi. Sistemas deste género são muitas vezes associados a lavagem de dinheiro e terrorismo, e são também pensados para serem menos eficientes. No entanto, certos autores afirmam que o envio através destes canais pode ser mais barato, rápido, e até mais confiável do que os canais formais.
Egidio Cardoso (2012) explica sucintamente como funciona o sistema Hawala, afirmando que «O seu mecanismo de funcionamento pode ser resumidamente descrito como segue: o emigrante dirige-se a um operador do sistema (hawaladar) - uma qualquer lavandaria, pizzaria, casa de câmbios, agência de viagens ou pequena loja numa qualquer esquina da cidade onde trabalha - e aí entrega a quantia que quer remeter. Pelo serviço pagará uma pequena comissão e como garantia recebe um código que remeterá ao destinatário. Mediante uma simples comunicação, por fax, telefone ou, mais modernamente, por mail, é dada ordem ao hawaladar correspondente, localizado no destino, que disponibilizará um valor equivalente a ser entregue à família do emigrante perante a exibição do código respectivo. O encontro de contas entre os dois operadores far-se-á em menos de uma semana por uma qualquer operação semelhante mas de sentido inverso, completando-se o circuito sem que o dinheiro tenha circulado, não existindo comprovativos, recibos, registos, ou fluxos financeiros visíveis que permitam estabelecer um qualquer elo de ligação ou conexão entre montantes.»
Concluindo, este tipo de sistemas informais pode ter tantos benefícios como prejuízos, mas para evitar estes mesmos prejuízos e garantir que não há associações a lavagem de dinheiro e terrorismo é necessário criar opções viáveis. É necessário que se melhore o sistema bancário em vez de reprimir o sistema informal, pois esta repressão sem criar alternativas, coloca os migrantes e as suas famílias em situações complicadas.
«No caso de Cabo Verde as remessas constituem um importante suporte financeiro para imensas famílias, e uma das ligações transnacionais mais importantes entre as diásporas e o país de origem, ocorrendo sobretudo no âmbito familiar. São utilizadas sobretudo nas despesas quotidianas, no ensino e na saúde, a sua utilização na estrutura produtiva continua a ser limitada, e o recurso aos canais informais é considerável, ocorrendo por vezes com metade dos migrantes.» (Nancy C. Tolentino e João Peixoto, 2011)
Redução da pobreza e desigualdade?
Hein de Haas (2007), com base num estudo feito em 71 países em desenvolvimento afirma que a profundidade e severidade da pobreza nos países em desenvolvimento são, de facto, reduzidas através das remessas. Mais aprofundadamente, existem dados que afirmam que, inicialmente as remessas podem inicialmente aumentar as desigualdades, pois o processo de emigração é um processo seletivo, na medida em que nem todos o podem fazer. Em países pequenos e pobres como Cabo Verde, as pessoas mais pobres muitas vezes não tem possibilidades de emigrar. Assim, esta parte da população apenas poderá beneficiar das remessas indiretamente, através dos efeitos de que as despesas das remessas têm na economia do país, através de salários, e emprego nas comunidades de envio de migrantes.
Muitos jovens que possuem empregos com uma reduzida remuneração, e que não deixaram Cabo Verde, tem muita dificuldade em conseguir vistos para sair do país, isto levou à procura de certificados de emprego e extratos bancários falsos. Devido ao grande número de situações deste género, tornou-se mais difícil conseguir estes mesmos vistos, pois este processo passou a ser mais restritivo e rigoroso.
O facto de as remessas contribuírem de forma significativa para a estabilidade de rendimento e bem-estar nos países em desenvolvimento não implica necessariamente que estas também contribuem para a redução da pobreza. No entanto, países pequenos e/ou muito pobres, estão entre os mais dependentes de remessas, recebendo mais de 10 por cento do PIB, através de remessas.
No que toca ao uso que é dado nos países de origem, às remessas que são enviadas, estas são maioritariamente utilizadas pelas famílias para as despesas do dia-a-dia, educação e saúde. Em Cabo Verde, num inquérito realizado a famílias recetoras de remessas de emigrantes em Portugal, em 2007, foi possível apurar de que forma este dinheiro é utilizado pelas famílias, sendo que 82% é destinado a despesas do quotidiano, 54% é utilizado na saúde, e 54% na educação. Mas também na construção/aquisição/ reabilitação das suas habitações, poupança / depósito a prazo, investimento em negócios e em viagens familiares ao estrangeiro. De certo modo, existe de facto um impacto positivo na redução da pobreza, e no crescimento da economia, quer seja direta ou indiretamente.
Crescimento económico / Desenvolvimento da economia
As remessas têm uma relação evidente entre a migração e o desenvolvimento, distinguindo-se dos outros fluxos de financiamento externo pela sua estabilidade, previsibilidade e por beneficiarem diretamente as famílias.
Analisando vários pontos de vista de vários autores, enquanto opiniões sobre o impacto da migração no desenvolvimento social e económico das comunidades e regiões de envio de migrantes inclinam para o lado positivo, o mesmo não acontece no que toca a opiniões sobre a relação entre as remessas e o desenvolvimento nacional. Pois embora as remessas tenham, sem dúvida, um papel cada vez mais vital na garantia e na melhoria dos meios de subsistência de milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, nomeadamente Cabo Verde, não se pode esperar que as remessas por si só resolveriam obstáculos de desenvolvimento mais estruturais, insegurança, a burocracia, a corrupção e sobretudo infraestruturas deficientes.
Ainda assim, se estes países tomarem um rumo positivo no que toca ao desenvolvimento, e o crescimento económico começar a ser uma realidade, é possível que os migrantes reconheçam oportunidades de investimento ou de bom emprego, podendo regressar aos seus países. Um exemplo visível desta ideia é o caso dos emigrantes brasileiros em Portugal, que nos últimos anos muitos deles puderam regressar ao Brasil devido à melhoria de condições.
E no caso específico de Cabo Verde, a imigração para o país tem aumentado relativamente nas últimas décadas, sendo que estudos feitos recentemente apontam que a população imigrante em Cabo Verde aumentou cerca de 20%, e as estimativas para os anos seguintes apontam para a continuação desta tendência.
Impactos sociais / culturais
As remessas têm também um importante papel na transformação das estruturas sociais dos países. Sabemos que a emigração pode criar situações menos boas, como a separação de longo prazo entre os cônjuges, pais e filhos. No entanto, as remessas provenientes desses mesmos emigrantes podem contribuir para a melhoria das condições de vida das suas famílias e para a educação das suas crianças.
As mudanças sociais e culturais afetadas pela migração e remessas são elas próprias suscetíveis de afetar as tendências futuras de migração. Neste contexto, é habitual falar-se de uma “cultura de migração”, muito presente em Cabo verde, em que a migração internacional está associada com o sucesso pessoal, social e material, onde a migração quase se tornou a norma e não a exceção, e ficar em casa está associado ao fracasso.
Também podemos pensar no papel que a migração e as remessas podem ter no papel das mulheres na sociedade, pois alguns autores assumem que por vezes, que a migração dos homens incentiva a emancipação das mulheres que ficam para trás, no entanto outros autores defendem até agora existem poucas evidências empíricas que provem que a migração e as remessas têm apenas um impacto estrutural limitado. No entanto, em particular, a longo prazo, pode haver ganhos para as mulheres.
Vários autores propõem a hipótese de que, além de fatores como casamento em idades mais avançadas, o aumento da participação da força de trabalho feminina e melhoria da educação, a migração para países europeus tem contribuído para a difusão e adoção de padrões de casamento europeus e normas de pequenas famílias, e por isso tem desempenhado um papel na aceleração da transição demográfica. Isso indica a importância de ter em conta o contexto cultural específico das sociedades de destino e as diferenças relativas com as sociedades de origem na avaliação dos impactos sociais e culturais da migração.
No entanto, a fuga de cérebros constitui um problema. A emigração em Cabo Verde não tem trazido apenas benefícios ao país, de facto, tem criado um problema bastante grave, trata-se da alta taxa de fuga de cérebros. Uma das situações mais comuns dá-se quando jovens estudantes decidem ir estudar para outro país (como Portugal, por exemplo), e após acabarem o ensino superior não regressam a Cabo Verde, e podemos mesmo distinguir o caso de que entre 1997/98 e 2002/2003, cerca de 77% dos estudantes (cerca de 5.382) saíram do país e não voltaram a regressar.
No que toca à emigração altamente qualificada, Cabo Verde possui dos valores mais elevados de todo o Continente Africano, segundo estudos realizados, concluiu-se que entre 1990 e 2000 se registou um aumento de cerca de 10,7%, passando de 56,8% para 67,5%.
Consequentemente, acredita-se muitas vezes que a migração é um obstáculo ao desenvolvimento porque priva os países pobres dos seus valiosos recursos humanos. Este grande fluxo migratório acaba por ser a representação da emigração como a causa dos problemas de desenvolvimento que são bastante graves, especialmente no caso da emigração de trabalhadores de saúde, é um caso frequentemente mencionado como extremamente prejudicial para os países de origem.
No entanto, por um lado, a fuga de cérebros altamente qualificados pode ter benefícios a longo prazo, na forma de fluxos de contador de remessas, investimentos, relações comerciais, novos conhecimentos, inovações, atitudes e informações a médio e longo prazo. Este tipo de emigração e a consequente receção de remessas pode ter também um efeito motivacional, potencialmente permitindo que os membros da família e da comunidade dos emigrantes queiram e tenham possibilidades para estudar.
É importante não enfatizar demasiado o impacto das políticas orientadas para evitar a fuga de cérebros, pois se as suas causas estruturais persistirem, é provável que este problema possa continuar. E acontece que certos autores argumentam mesmo que a abordagem coerciva à fuga de cérebros poderá apenas intensificar o nível de descontentamento entre os potenciais emigrantes qualificados. Nestes países, incluindo o caso de Cabo verde, é comum existir uma elevada taxa de desemprego entre os trabalhadores mais qualificados, e isto é, muitas vezes, o resultado de políticas de educação erradas, ou mal executadas, e uma melhor abordagem deste assunto só é possível com a educação e formação, de modo a conseguir orientar as verdadeiras necessidades de um país.
Certos autores argumentam que uma resposta mais realista à emigração requer abandonar a abordagem da “fuga de cérebros” e de tentar evitar que pessoas altamente qualificadas fiquem nos seus países de origem, impondo esta ideia. Em vez disso, os governos dos países de origem devem incentivar um “ganho” de cérebros reverso através de garantir emigrantes a aumentar seu compromisso e incentivar as remessas, investimentos e a sua participação no debate público. Certos países, como a Índia e Taiwan parecem ter mostrado um sucesso considerável com estas políticas destinadas a promover laços com as comunidades de emigrantes e efetivamente transformando a fuga de cérebros em um “ganho” de cérebros. Portanto, o que podemos concluir é que a melhor opção para inverter a fuga de cérebros é mesmo o desenvolvimento nacional.
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