Reprimindo demónios do passado: a reinserção identitária africana e racial nas representações
Como tem sido produzida a identidade do africano na história, qual é o papel dos media nas novas percepções, representação e discurso sobre os africanos e negros? A globalização cultural traz novos modos de representação identitária que vão para além do que é visível, englobando aspectos simbólicos e de fraternidade em relação às diferentes raças. As identidades visíveis entram num caos globalizado.
De onde viemos se come à mão
É muito fácil hoje ligarmos os televisores e nos depararmos com videoclipes onde o negro aparece economicamente abastado, ver um filme com Denzel Washington ou Will Smith transmitindo a imagem de um herói negro, ou outros actores negros a representarem negros cheios de poder e autonomia. Também encontramos transformações políticas em que o negro é figura central (caso de Obama).
Acabamos por simplesmente absorver tais imagens sem nos perguntamos se realmente é verdade aquilo que estamos a ver. Será que somos protagonistas na história ou apenas vítimas passivas?
O negro enquanto raça foi objecto de várias especulações que, na sua maioria, levaram a construções de românticas a deploráveis. São imagens que envolvem discursos religiosos, científicos e literários. Podemos então considerar o negro um personagem histórico em construção.
Para esclarecer isso talvez possamos voltar a distinguir duas escolas de pensamento que, apesar de hoje defender-se que não mais se distinguem, elas permanecem vivas: 1) A perspectiva eurocentrista, 2) A perspectiva afrocentrista. A primeira defende maioritamente que a cultura, os valores e a fotografia ocidentais oferecem uma melhor imagem do que o negro ou o africano foi e é, por ter contribuído para melhorar o conceito de civilização. A segunda defende o contrário, que o africano possui os seus valores e que o Ocidente de forma alguma melhorou a sua imagem, pois quem melhor pode descrever a imagem do negro é ele mesmo, o africano, e mais ninguém.
A construção de imagens sobre o africano/negro provém destas duas visões e, apesar de cada uma querer reservar para si a justiça, a imagem do africano permanece uma incógnita. Ou seja, as imagens provenientes da arte (fotografia, pintura, literatura e música) permanecem inseguras, não permitindo um melhor acesso à identidade real do africano.
O artigo divide-se em três partes:
1. A construção do africano pelo imaginário europeu, com base no discurso religioso.
2. A construção imaginária do africano pelos africanos no auge das independências.
3. Compreensão das imagens produzidas por filmes, videoclipes e fotografia.
Para melhor percebermos o tema, vou associar o conceito de identidade a factores culturais e elementos comuns a um determinado grupo, podendo estar relacionado com elementos raciais.
Porque nascem os negros com as palmas das mãos brancas?
Por volta do séc. XVII alguns missionários entraram em contacto com os povos negros da África subsahariana como resultado da expansão mercantil. O principal objectivo desses missionários era o de levar a mensagem do evangelho ao pagão africano com o intuito de poder cristianizá-lo e torná-lo filho de Deus.
Ou seja, a primeira imagem do africano era a de um homem perdido, pagão e pecador, que não conhecia Deus e cuja religiosidade estava baseada na adoração a demónios e outros espíritos malignos. Na maior parte das vezes os pintores retratavam o africano com tangas, musculado, extremamente escuro, produzindo uma ideia de violência e paganismo inatos ao africano.
Alguns missionários defendiam que os africanos eram descendentes de Cam, filho de Noé, que foi abnegado pelo pai, indo para as terras baixas após o dilúvio. E outros ligavam o negro aos animais selvagens como o leão, o tigre e a pantera, deixando transparecer a idéia, segundo a qual, o africano é um habitante da selva e, por isso, não tinha acesso à racionalidade nem a um conhecimento perfeito de Deus. Por essa razão cabia aos missionários o papel de pedagogos da cristianização.
O padre italiano Romano defendeu de tal forma a existência do pecado no africano que, na sua perspectiva, o africano nascia branco mas, por causa do pecado, a sua pele escurecia. E para que o africano pudesse ser redimido devia aceitar o Cristianismo e o baptismo nas águas, a fim de que o seu nome pudesse ser escrito no livro da vida.
Se observarmos os quadros do Renascimento e do Barroco, e do pré-Iluminismo, não encontraremos a presença de negros, nem de africanos. Ainda eram considerados seres pecaminosos e distituídos da glória de Deus. Apenas tentava-se exaltar a África branca (Marrocos, Líbia, Tunísia, Argélia), pois a Bíblia citava essa região de África como tendo contactos comerciais com o médio oriente.
Contudo se, por um lado, a ideia era a de restaurar a glória de Deus no africano, havia a necessidade de fazer-lhe uma lavagem cerebral, transformar o seu vocabulário, retirar a árvore do solo e semear num vaso para que uma nova identidade pudesse emergir.
Vejamos que antigamente o pecado estava fortemente ligado à cor negra, a magia maldosa era a magia negra, a impureza (nódoa num lençol) era negra, o diabo era negro. Implícita e explicitamente, o negro estava associado à maldade e à maldição de Deus.
Havia uma construção identitária imposta ao negro que passou do campo religioso ao campo científico. Muitos estudiosos acabaram por adoptar uma perspectiva negativa em relação ao negro. Era-lhes negado o estatuto de racionalidade e, consequentemente, o estatuto de humanidade. As condições climáticas em África, permitiam que se desenvolvesse um tipo de ser capaz de resistir às mais altas temperaturas e dominação, restando-lhe apenas o estatuto de escravo. E, fora disso, apenas alguns negros foram agraciados com uma educação e catequismo que lhes permitiram o acesso à assimilação e à civilização, a uma aceitação no outro lado do mundo. Em alguns casos, chegava-se mesmo a questionar a diferença entre o chimpanzé e o negro.
A repetição da imagem do negro nú representava a verdadeira oposição à do homem ocidental vestido, significada uma manifestação de inferioridade e de irracionalidade total. Era pôr em foque a sua condição selvagem que necessitava de ser domada e civilizada, para poder eventualmente aceder à condição de homem e a uma posição de respeito, na qual, após a absorção dos padrões ocidentais, o negro era convidado a pertencer a uma parte da comunidade.
O que estava a ser pintado? Quem eram aqueles homens e mulheres nús com estacas nos pescoços e correntes nos pulsos? O que eram aquelas mulheres pretas semi-nuas, de peito de fora e ancas desnudas?
Pensemos também na feminilidade africana, na perspectiva eurocentrista. A mulher negra era vista apenas como mero objecto sexual, afrodisíaco, selvagem e tentador, com uma mentalidade inferior que serviria para o bel prazer do homem branco.
Em resumo, as imagens descritas sobre o negro, eram de seres logicamente inferiores, com necessidade de civilização e exploração e, para melhor fazer servir as necessidades do dominador, as imagens produziam algo de inferior. Contudo, por outro lado, a imposição da leitura da imagem leva a perceber o diferente enquanto diferente. Mas será que, para o africano, tais imagens não reflectiam o real?
Se voltássemos mesmo ao passado saberíamos o nosso nome?
A violência das imagens produzem outras leituras, na representabilidade eurocentrista. Imagens de uma África selvagem, moldada à moda ocidental, onde o pintor pretendia evidenciar a irracionalidade do africano e a sua impotência, a sua nudez.
Escritores com Leon Damas, Aimé Cesáire, Leópold Senghor, José Craveirinha, começam a abordar a exploração e o sofrimento do negro devido à perda da sua real identidade. Os temas giram em torno da resistência, regresso às raízes perdidas e valorização do passado. Retratam a glória do negro e da sua civilização. Tenta-se reaver a cultura pré-expansionista negra ou pré-colonial. Os afro-americanos (Black Consciosness, Black Personality) com o blues, o jazz, Langston Hugues, William Dubois, Marcus Garvey, Sylvester Williams, o movimento no Harlém. Retoma-se os temas da black slavery tales, com tendência para exaltar uma nova cultura negra baseada em valores antigos e vingar a ideia de um regresso a África. Africanos intelectuais como Senghor e Césaire tentam revalorizar o passado com a sua Negritude.
A Negritude torna-se o símbolo intelectual e emocional de oposição à ideologia da superioridade branca e afirma, ao mesmo tempo, uma autenticidade que eventualmente se expressasse a si mesma como uma negação radical: rejeição da humilhação racial, rebelião contra a racionalidade de dominação, e revolta contra todo o sistema colonial. Essa violência simbólica consequentemente vai germinando a idéia de Nacionalismo que, por sua vez, leva à luta política pela libertação.
Slogans como Black is beautiful, revalorização da escultura, mensagens de elevação da auto-estima dos afro-americanos e negros, aqui o uso das capulanas.
Invocava-se o africano antes de ser escravo, antes de ser construído enquanto estereótipo da civilização ocidental. Era preciso desconstruir a visão da maldade presenteada pelos missionários e pelo discurso colonial, para que fosse possível criar um novo modelo nos quais os africanos se sentissem donos de si mesmos e senhores do seu espelho, da sua imagem. A ideia de revalorizar esse passado, reconstruir a imagem desconhecida e revitalizar os símbolos e seu significado para o africano, requeria o emprego de um novo vocabulário e a manifestação do signo da liberdade.
A escultura africana é um meio de compreender a identidade e sua significação opostas à visão ocidental. A natureza e a valorização dos totens torna-se o centro do que era concebido como tradicional, negligenciado e africano. Os modelos corporais da escultura africana apareciam opostos aos da representação ocidental, e a concepção das máscaras demonstrou abertamente essas divergências, os deuses já não são representados por faces lindas e cores belas. Contudo, a oposição artística revelada no auge das independências demonstrou abertamente que havia uma capacidade do africano se auto-retratar. Mas as belas histórias manifestas nas esculturas, pinturas, músicas e contos, abençoar o passado, vangloriar os nossos totens, exaltar o que se perdeu e glorificar o tradicional, revelava apenas o lado positivo ou tradicional do retrato identitário do africano, não podendo abrir-se ainda para a compreensão contemporânea do que realmente pode ser o africano.
Ser preto está na moda, mas e se a moda passar?
Depois da queda do muro de Berlim as coisas nunca mais foram as mesmas. A massificação da informação, a abertura para diálogos possíveis demonstrou que os demónios que nos perseguem serão dificilmente exorcizados. E por mais ocidental que seja a cruz ou por mais fortes que sejam os búzios dos nossos sangomas, as diferenças que nos contrapoem apenas moldaram a existência de espíritos errantes, seres sem destino à mercê da contingência do seu tempo.
As artes sofriam uma transformação interna que não poderia fechar-se à brutal onda de mudanças que aconteciam, com a ascensão da democracia e do capitalismo.
Os atributos ao negro mudaram. Até na moda, certos estilistas optaram por levar a cor preta e fazer dela temática chique das suas criações e exibições.
Vemos uma geração de actores, autores e cantores negros reivindicarem a importância da sua raça, da sua identidade e da sua história. Muitas músicas foram escritas acerca do negro incentivando-o a reconhecer que é uma criatura divina com direito aos tesouros divinos. Vemos filmes como “A arma mortífera”, “Os Bravos do Pelotão”, “I am Legend” e o mais famoso de todos “Man in Black”, a demonstrar que o negro está habilitado ao raciocínio, à coragem e à ciência. Factos estes que os ocidentais tentaram rejeitar durante muitos anos, negando sempre que o negro/o africano pudesse contribuir de forma valorativa para a própria humanidade ao mesmo nível do homem branco/ocidental.
Também os músicos tendem a representar as imagens do seu cotidiano em relação à sua identidade, na tentativa de descolonizar as imagens e os demónios ocidentais deixados entre os africanos.
E ainda é bom salientar que hoje vemos pessoas de outras raças a imitarem o comportamento dos seus ídolos negros (cortes de cabelo, vestes, tranças e até o modo de falar) na tentativa de promover a concepção identitária, num ideal segundo o qual “você é negro não importando a cor da sua pele”, é uma escolha.
Este sentimento de empatia em relação aos negros consegue alegrar-nos até um certo ponto. Como ninguém quer estar fora da moda, até os antigos defensores da dominação colonial percebem que devem filiar-se nessa iniciativa na qual todos devem “ser negros”.
A arte está a contribuir para a revalorização do que era valioso para o próprio negro, abrindo-lhe as portas do mundo e uma nova forma de comunicação com as outras culturas, sem recear que ele possa ser descriminado pela arrogância de outras raças.
Contudo, apesar deste movimento, será que o negro deixou de ser uma representação manipulada para fins políticos e conquistas? E se a moda passar para onde ele irá? Será que a arte representa na íntegra o que realmente o africano/negro é? Será que o africano/negro sabe aquilo que é?
Acredito que as tendências raciais centradas numa identidade estática (afroncentrismo e eurocentrismo) estejam obviamente fadadas ao fracasso no mundo actual, pois não existe uma essência branca, amarela, vermelha ou uma essência negra. De momento, os demónios que se pretendiam expulsar podem estar em nós mesmos. Temos de nos opor à identidade-essência enquanto construção identitária. A arte e seus demónios necessitam de abster-se de tal conceito de identidade-essência, na qual os africanos são o que são porque existe qualquer coisa dentro deles que permita que eles todos se identifiquem. Participando de um elo vital comum que permita que todos os negros pensem e ajam da mesma forma. Há que compreender que, para além de factores geográficos, a identidade é afectada por factores sócio-económicos e culturais, o que nos faz a todos diferentes. Agora, é certo que há também uma identidade colectiva, onde participamos por meio de uma luta pelo reconhecimento.
As artes mostraram, através de diversas manifestações, que a identidade pode ser moldada pelo tempo, mas o tempo nem sempre permite uma melhor compreensão da própria identidade.
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