Suores frios e escuta furtiva em Angola
Durante a década de 1960 e início de 1970, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) faziam regulares transmissões de rádio para Angola a partir de suas localizações no exílio. Os angolanos - a maioria dos quais vivia sob a autoridade repressiva do regime colonial português - sintonizavam os seus aparelhos de rádio para receber essas transmissões ilegais.
Como descreve a historiadora Marissa Moorman no seu livro Poderosas Frequências: Rádio, Poder do Estado e Guerra Fria, 1931-2002, os angolanos que escutavam as transmissões de guerrilha planeavam com cuidado a escuta da rádio. Ouvir furtivamente exigia preparação. Manuel Faria descreveu que conduzia o carro para o meio de um campo de futebol e só o sintonizava quando a escuridão ao redor o fazia sentir-se seguro. A adolescente Ruth Mendes ouvia o programa “Angola Combatente” com as amigas, constantemente apavorada de ser apanhada pelos adultos. Outros angolanos lembram-se de surpreender os pais ouvindo em segredo, o volume baixo, preocupados que os filhos ouvissem demais. Nessas lembranças, Moorman descreve o consumo de rádio como uma experiência corporal mais ampla. Os angolanos que sintonizaram transmissões ilegais nos seus rádios suavam com os nervos. Preocupavam-se ser apanhados — pela polícia, pelos pais, pelos filhos — e, no entanto, persistiram em ouvir porque se identificavam com o conteúdo. Ao mesmo tempo, as transmissões continuadas preocupavam o governo colonial que não raramente falhava em controlar as transmissões. Podemos imaginar membros da PIDE agonizando enquanto ouviam, imaginando quem é que em Angola estaria sintonizado.
O que um suor frio revela sobre a história da rádio? Como o desconforto de um estômago nervoso e a sensação de mãos molhadas nos dizem algo novo sobre a prática da política moderna?
Quando avaliadas como práticas tecnológicas - ou seja, práticas baseadas na aplicação de habilidades técnicas - a radiodifusão e as leis modernas compartilham trajetórias históricas notoriamente semelhantes. Durante o século 20, as transmissões e os estados modernos expressaram mutuamente poder, acedendo a emoções e percepções das populações que no seu alcance. A rádio e as estatísticas surgiram como tecnologias que podiam permear os sentidos pessoais das pessoas. Como Moorman escreve, “[as] tecnologias não determinam resultados mas, do modo como operam, há consequências materiais” (p.69).
Tal como o poder do Estado moderno, a tecnologia da rádio manifestou-se nos sentidos das pessoas. Ao assinalá-lo, Moorman efetivamente lida com o assunto e responde a uma das questões históricas mais fundamentais, mas também bastante complicadas: o que é um Estado? Para Moorman, a resposta virá por diferentes camadas e será melhor percebida desfiando a genealogia da rádio em Angola. Como ela descreve, o Estado moderno em Angola (tal como as transmissões de rádio do país) uniu-se na segunda metade do século 20, aventurando-se como tecnologia útil para produzir categorias de pertença, exclusão e dissidência. Produtores e ouvintes de rádio invariavelmente entendiam essas idéias previamente aos líderes do Estado. De fato, os primeiros clubes de rádio privados formados na década de 1930 contribuem para os colonos portugueses produzirem as suas distintas identidades brancas. As primeiras estações de rádio patrocinadas pelo Estado só surgiram na década de 1960 como componente da maior contra-insurgência e luta militar liderada por um estado colonial em declínio.
Como Moorman demonstra em Poderosas Frequências, a história do rádio e a história do poder estatal são inseparáveis. A autora entende que os angolanos perceberam o Estado (e a rádio) com todos os sentidos em alerta máximo. Frequências Poderosas captura cuidadosamente todas as experiências sensoriais que se acumularam, à medida que a radiodifusão e o poder estatal se expandiram e se foram redefinindo na Angola colonial e pós-colonial. Os leitores que lerem o livro em busca de uma experiência auditiva rapidamente se apercebem que Moorman reúne variadíssimos modos de percepção. A rádio existia no século XX em Angola como uma tecnologia muito ampla: continha fundamentos estéticos (edifícios de construção, espaços de estúdio cuidadosamente projetados, anúncios); atingiu o sistema nervoso (de indivíduos e de estados); invocou emoção (medo, orgulho, participação, ansiedade); moveu-se fisicamente (com exércitos, frequências, sinais cheios / bloqueados); e articulou projetos intelectuais concorrentes (conteúdos da difusão, vigilância do poder).
Seria possível ler Poderosas Frequências como uma história direta do conteúdo da rádio numa Angola do século XX. Da mesma forma, também se pode ler Poderosas Frequências para ter uma visão distinta da complexa história política de Angola. Moorman acompanha cuidadosamente os principais eventos do passado recente de Angola. Aqueles que apresentaram conteúdo por rádio, que sintonizaram transmissões, que tentaram bloquear sinais rivais e que comunicaram conteúdo bloqueado a amigos e camaradas, todos compõem um lugar essencial na dinâmica da política de Angola.
Separadamente, essas histórias detalhadas do rádio e da política em Angola já justificavam ler este livro. No entanto, o livro de Moorman traz algo ainda mais ambicioso. Ao longo do livro, ela não representa apenas o conteúdo de rádio como um tipo específico de texto histórico (pense em transcrições de transmissão, playlists, programações), nem se pergunta apenas como e por que os ouvintes consumiram e usaram determinadas transmissões. Em vez disso, Moorman pensa amplamente na rádio como um tipo muito particular de tecnologia moderna, cujas técnicas se sobrepõem — muitas vezes de modo inquietante — às técnicas do poder estatal moderno.
Na avaliação da rádio por Moorman, descobrimos que a rádio também deve ser pensada como algo afetivo, não apenas como eficaz tecnologia. Sim, a rádio é eficaz para alcançar pessoas em áreas abrangentes, para compartilhar notícias e informações e inculcar idéias e práticas de identidade nacional. Mas a rádio também permeia o nosso próprio sentido de ser. Mesmo quando os ouvintes consumiam rádio em Angola, também eram frequentemente consumidos —no corpo e na mente— pela tecnologia de rádio. O que tal significa?
Em Poderosas Frequências, Moorman demonstra que a rádio funciona como tecnologia porque atua sobre e através de nós. Quando desligamos o dial num aparelho de rádio, a transmissão não termina. As ondas de rádio, embora imperceptíveis, fluem continuamente. O conteúdo que acabamos de ouvir continua a circular — dentro da psique das pessoas que ouvem e, novamente, quando os ouvintes compartilham com os outros o que acabaram de ouvir. Estados modernos muitas vezes tentam obter as mesmas formas de influência.
Moorman permite-nos ver a história dos estados no cruzamento de tantas projeções, desejos, experiências, conflitos e trabalhos criativos diferentes. Ela recusa-se a confiar numa única estrutura para contar essa história —não se trata apenas de como as “pessoas comuns” (na formação clássica da história social) encontraram o Estado, ou como as elites do governo implementaram a autoridade. Em vez disso, ela projeta a arte estatal como um conjunto abrangente e em constante mudança de existências.
Na introdução a Radio Benjamin, uma coleção das transcrições de Walter Benjamin de 1927 a 1933, Lecia Rosenthal escreve: “Como definimos os limites inconstantes do trabalho de rádio - como evento histórico e texto sobrevivente, desempenho singular e artefacto reproduzível, transmissão ao vivo e material publicado?” Como, por outras palavras, capturamos e criticamos algo que é simultaneamente temporário e permanente? Em Poderosas Frequências, Moorman responde meticulosamente a este problema através de uma leitura atenta da história da rádio em Angola. Na análise de Moorman, a rádio não existe apenas pelo conteúdo, existe como tipo específico de tecnologia moderna, cujo próprio poder decorre da sua capacidade de agir (e de ser acionado) pelos seus públicos.
Somente os receptores de rádio podem sentir as ondas de rádio. Mas as pessoas sentem a rádio. A rádio, lembra-nos Moorman, percorre as nossas vidas em todos os lugares para onde vamos e está ao lado de tudo o que fazemos. Sob muitos aspectos, é assim que funciona a arte de governar moderna. Envolve-nos de maneiras, muitas vezes além da percepção imediata. As Poderosas Frequências dizem-nos como e porque precisamos de ajustar os nossos receptores, atender a essas diversas formas de poder e, esperançosamente — tal como os angolanos que ouviram com tanto cuidado — encontrar novas maneiras de inovar e de protestar.
Artigo publicado originalmente em inglês no Africa is a Country.