Um brasileiro em terras portuguesas - Prefácio

Este talvez seja um prefácio pouco convencional. Não nos interessa fazer tão-só uma apreciação da obra e dos méritos do autor; não nos limitamos a lidar com a génese e o conteúdo do livro. Mais do que o texto, pretendemos abordar o contexto, fornecendo ao leitor uma série de elementos resultantes da nossa pesquisa e que podem contribuir para uma inteligibilidade do que está no e para além do texto. Um brasileiro em terras portuguesas1 é um dos resultados editoriais da visita de Gilberto Freyre a Portugal, às colónias portuguesas de África e à Índia portuguesa2, entre Agosto de 1951 e Fevereiro de 1952. Como o autor refere no prefácio à primeira edição, funciona em articulação com Aventura e rotina3, “uma espécie de diário de viagem”.

Os antecedentes e o contexto de produção da obra
Gilberto FreyreGilberto FreyreGilberto Freyre (Recife, 1900-1987) é internacionalmente (re)conhecido por ter escrito Casa-grande & Senzala (1933), um marco na invenção da identidade brasileira. Numa época em que o racismo se desenvolvia na Alemanha nazista e nos Estados Unidos da América; e, no seu país, os modelos deterministas raciais ainda eram muito populares, Freyre exaltou o hibridismo como processo positivo de constituição do Brasil e destacou a participação de portugueses, negros e ameríndios na sua formação.

Como mostrámos alhures (Castelo, 1999), o Estado Novo português4
, numa primeira fase, ignorou ou rejeitou a obra de Gilberto Freyre, devido à importância que conferia à mestiçagem, à interpenetração de culturas, à herança árabe e africana na génese do povo português e das sociedades criadas pela colonização lusa. Nas décadas de 1930 e 1940 o «darwinismo social» ainda moldava a forma de encarar e lidar com os «indígenas» no império português, cujo modelo económico assentava na exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra local. Apenas no campo cultural português houve uma boa recepção às teses de Freyre.

O fim da Segunda Guerra Mundial determinou a condenação do projecto de hegemonia e pureza raciais do nazismo e a consciencialização de que a liberdade e a independência não eram apanágio dos países europeus e americanos. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) a autodeterminação foi consignada como direito fundamental e a ONU passou a atribuir às potências coloniais a obrigação de prepararem os territórios sob sua administração para a independência.

O Estado Novo português, confrontado a partir de 1945 com a pressão internacional favorável à autodeterminação dos territórios coloniais, tentou delinear uma argumentação capaz de legitimar a manutenção do
status quo nas possessões portuguesas5. Esse processo de legitimação do colonialismo português exigiu alterações na legislação, uma reformulação doutrinária e medidas inéditas de modernização e fomento económico em Angola e Moçambique.

Dois meses depois da consagração da «unidade nacional» na Constituição da República Portuguesa6
, Gilberto Freyre inicia uma visita por “terras lusitanas”, a convite de Sarmento Rodrigues, ministro do Ultramar. A sugestão do convite tinha partido de José Osório de Oliveira, escritor e delegado da Agência Geral das Colónias junto do Secretariado Nacional de Informação, incansável divulgador da obra de Gilberto Freyre em Portugal. Em informação dirigida ao Agente Geral das Colónias sugere que a ideia seja apresentada superiormente, argumentando com grande convicção as vantagens que daí adviriam para Portugal:

O mundo que o Português criou […] é, sem dúvida, o mais eloquente e fundamentado elogio erguido, até hoje, ao génio colonizador do Português. Aliás, ninguém melhor do que Gilberto Freyre defende, no Brasil, o valor primacial da contribuição portuguesa, a ele se devendo, além de O mundo que o Português criou, a defesa da Cultura Lusíada que é Uma Cultura ameaçada: a luso-brasileira. A ele se deve, como Deputado, a defesa da concessão de direitos especiais, na Constituição do Brasil, aos emigrantes portugueses. Temos, no Brasil, amigos mais retóricos; não temos nenhum que, pelo estudo e pelo poder de síntese, pela base científica dos seus juízos e pela clareza da prosa de grande escritor de ideias, contribua mais para nos tornar respeitados, quer no seu país, quer na América do Norte, onde é muito grande o prestígio desse mestre de renome internacional.”7

Sarmento Rodrigues acolhe a ideia com entusiasmo. Gilberto Freyre estava num momento alto do seu prestígio: em 1948, fora um dos oito cientistas sociais convidados pela UNESCO para uma reunião sobre “as tensões que afectam a compreensão internacional”. Mas antes de tomar qualquer iniciativa, o ministro assegura-se do consentimento do presidente do Conselho e pede informações à Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Perante a garantia de que a visita seria bem vista pelas autoridades brasileiras; que Salazar aprovava o projecto; e que Gilberto Freyre aceitaria fazer a viagem e estaria disposto a escrever um ensaio sobre a colonização portuguesa em África, o convite é formalizado em carta de 26 de Maio8
. O escritor brasileiro responde, a 4 de Junho de 1951, aceitando e reconhecendo que a viagem proposta seria, para si, “ideal”. Era uma oportunidade de percorrer diversos territórios sob domínio português, geograficamente distantes entre si, e de compará-los com o Brasil.

O programa da visita, negociado entre os ‘anfitriões’ e o visitante, incluiu diversas cidades da metrópole e a ilha da Madeira (os Açores não foram visitados), e todas as possessões portuguesas, à excepção de Macau e Timor. Macau por opção de Gilberto Freyre; Timor porque Salazar assim decidiu.

A visita é amplamente divulgada na imprensa, que também seguirá todo o trajecto com notícias, entrevistas e reprodução de discursos e depoimentos. Por todo o lado, o sociólogo brasileiro é recebido com carinho e admiração. Intelectuais de diversos quadrantes políticos (da Situação, monárquicos, liberais, republicanos conservadores e democráticos) solicitam encontros com o escritor e convidam-no para as suas casas. Verifica-se um largo consenso relativamente à importância da visita de Gilberto Freyre; consenso que reflecte a sintonia do regime e de parte significativa da oposição na defesa da integridade da «nação pluricontinental portuguesa».9 Atente-se à forma como João de Barros, republicano oposicionista, se desculpa perante o “mestre e amigo”, por não estar presente nas “manifestações oficiais de justa gratidão lusíada, que lhe têm sido prestadas”:

“A elas me associo, porém, de todo o coração. Decerto sabe ou imagina os motivos dessa ausência. Não os leve, pois, a mal. Trata-se de um caso de consciência, duma imposição íntima, a que não sei já faltar, velho e teimoso como sou…

Muito e muito obrigado pela carinhosa oferta da edição portuguesa (bem haja o Sousa Pinto, que a publicou) de
O mundo que o português criou e de Uma cultura ameaçada. Nada há que se lhes compare. São insubstituíveis e magistrais. É escusado, creio eu, repetir-lhe, grande e querido Gilberto Freyre, a admiração e a devoção que me merecem, e a todos merecem, os seus trabalhos, o seu génio, a sua inteligência, e a sua compreensão da alma e do povo da minha terra.”10

O rádio-telegrama enviado a Gilberto Freyre por Norton de Matos, republicano, candidato da oposição às eleições presidenciais de 1949, antigo alto-comissário da República em Angola, a Gilberto Freyre, é bem a síntese da sintonia criada em torno da figura e do pensamento do autor de
Casa-grande & senzala: “Apertado abraço despedida segui entusiasmado sua visita altamente vantajosa lusitanismo”11.

De facto, foi num quadro de quase unanimidade nacional que decorreu a visita de Gilberto Freyre ao ultramar português. Este foi também o momento em que se iniciou o processo de adaptação pelo Estado Novo português de uma versão simplificada e nacionalista do luso-tropicalismo para servir sobretudo os propósitos da sua política externa. Paralelamente, assistiu-se à penetração do luso-tropicalismo no meio académico e científico, em particular o ligado à formação dos quadros da administração ultramarina e à ‘ocupação científica’ das colónias12
. Com o início da guerra em Angola, e a chegada de Adriano Moreira ao Ministério do Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas legislativas reformistas inspiradas no luso-tropicalismo.13 No novo contexto, procurou-se igualmente incutir nos portugueses a ideia da benignidade da colonização lusa ou, de forma mais eufemística, “do modo português de estar no mundo”. A propaganda encarregou-se disso, de forma incansável: era urgente moldar o pensamento para conformar a acção. Nas vésperas do fim do império, quando os movimentos de libertação nacional combatiam o colonialismo português em Angola, Guiné e Moçambique, o processo de apropriação discursiva do luso-tropicalismo pelo Estado Novo foi ‘radicalizado’: paradoxalmente, o Estado colonial português esforça-se por inculcar a norma anti-racista nos portugueses e adequar o comportamento dos funcionários administrativos e dos colonos ao ideário luso-tropicalista.

O texto e os paratextos

Fruto de um compromisso assumido com o ministro do Ultramar14, Um brasileiro em terras portuguesas é um trabalho de pendor mais literário que científico; não inclui citações, notas e bibliografia, embora se baseie em leitura de obras e fontes relativas à história da chamada expansão e dos descobrimentos portugueses15, e faça referência a múltiplos autores. Além de uma extensa introdução (na qual se procura uma síntese do luso-tropicalismo), inclui conferências16 e discursos proferidos por Freyre durante a visita; e um agradecimento geral pela boa acolhida de que foi alvo. Os apensos reúnem discursos de terceiros, de saudação ao visitante; fotografias; e, finalmente, “comentários de escritores e da imprensa portuguesa às ideias e à viagem de Gilberto Freyre ao Ultramar português”17.

Um brasileiro…
é um livro fundamental para o conhecimento do luso-tropicalismo tal como foi sistematizado pelo seu autor no início da década de 1950. Porém, à semelhança dos restantes textos explicitamente luso-tropicais de Gilberto Freyre é pouco conhecido dentro e fora do Brasil18. Em Portugal, o luso-tropicalismo é sobretudo glosado em segunda ou terceira mão. O que circula na opinião pública, no discurso político e até nos meios académicos é uma “vulgata luso-tropical” que começou a ser produzida pelo Estado Novo para legitimação do colonialismo português (Léonard, 1997).

Além da sistematização do luso-tropicalismo,
Um brasileiro… fornece-nos informação parcelar sobre a viagem de Gilberto Freyre pelos territórios ultramarinos portugueses, elementos para o estudo da recepção do seu pensamento em Portugal e nas colónias portuguesas e para o conhecimento da sua rede de sociabilidades neste país. É reveladora tanto para quem se interessa pela história cultural portuguesa e brasileira de meados do século XX como para os estudiosos da história do colonialismo português tardio e do pós-colonialismo.

As ideias-mestras do luso-tropicalismo já apareciam em
Casa-grande & senzala. A especificidade do carácter português: a sua predisposição para a “aventura ultramarina ou tropical”, para a miscigenação, para a interpenetração de valores e culturas; a “dualidade étnica e de cultura” da sua formação; a influência do contacto com mouros e judeus desde os primórdios da nacionalidade; e o papel do “cristianismo português” na colonização híbrida dos trópicos. As características psicoculturais que Freyre atribui ao português seriam inatas e estariam presentes em qualquer tempo e lugar19. Nas Conferências na Europa (1938), reeditadas como o título O mundo que o português criou (1940), Freyre alarga o seu campo de pesquisa do Brasil a todas as áreas de colonização portuguesa, que considera que formam uma unidade de sentimento e cultura; unidade que lhes é conferida pelas características do português já analisadas em Casa-grande & senzala. Um dos aspectos que salienta nesta obra é o lugar singular do mestiço no “mundo português”, devido à atitude positiva dos progenitores portugueses relativamente aos filhos mistos, “única em povo europeu moderno”.

No prefácio a
Um brasileiro…, tal como havia feito na conferência lida em Coimbra, Freyre confessa que na viagem sentiu confirmar-se uma “intuição antiga”: “existe no Mundo um complexo social, ecológico e de cultura, que pode ser caracterizado como «luso-tropical»”; um complexo em expansão, desde que “as nações luso-tropicais [não] se deixem envolver por alguma retardatária ou arcaica mística arianista, antes se entreguem com uma audácia cada dia maior à aventura de se desenvolverem em povos de cor, para neles e em gentes mestiças, e não apenas brancas, sobreviverem os melhores valores portugueses e cristãos de cultura num Mundo porventura mais livre de preconceitos de raça, de casta e de classe que o actual.”

Na Universidade de Coimbra, como noutras ocasiões, apresenta-se como escritor, “quanto possível independente”. Refere que nos seus livros expõe ideias que constituem o gérmen de uma tentativa de filosofia da história “inacadémica”, cujos processos de elaboração ou sistematização não são, no entanto, anti-académicos. Por isso, sente-se à-vontade para no meio académico esboçar algumas sugestões em torno de um novo conceito de tropicalismo.

“Em contacto com essas áreas tropicais [do ultramar português], irmãs do Brasil, senti eu se esclareceram ou confirmaram em mim algumas já velhas antecipações em torno de novo conceito de tropicalismo, tema que há anos me seduz tanto como a reinterpretação do lusismo, de nacional transferido a plano supranacional.

Na verdade, creio ter encontrado nesta viagem a expressão que me faltava para caracterizar aquele tipo de civilização lusitana que, vitoriosa nos trópicos, constitui hoje toda uma civilização em fase ainda de expansão […]. Essa expressão - luso-tropical – parece corresponder ao facto de vir a expansão lusitana na África, na Ásia, na América manifestando evidente pendor, da parte do português, pela aclimação como que voluptuosa e não apenas interessada em áreas tropicais ou em terras quentes.”

Afirma que os nórdicos que têm confraternizado com a gente tropical aceitando-a como irmã e não como serva são casos isolados: grandes santos ou grandes pecadores, indivíduos excêntricos ou excepcionais. Vários deles homossexuais como Lawrence da Arábia ou Gide. Nos portugueses a confraternização com os trópicos é uma prática natural e antiga, com a qual os outros povos ocidentais deviam aprender.

“Luso-tropicalismo. Velha antecipação portuguesa da ideia que hoje se aviva entre nórdicos, homens de estudo e homens de acção, quer na Europa, quer nos Estados Unidos de que o trópico é espaço fisicamente adequado ao desenvolvimento de civilizações predominantemente europeias em suas formas ou equivalentes das europeias, em sua capacidade de desenvolvimento técnico e intelectual. De que do trópico pode a civilização europeia, hoje em crise, assimilar valores de cultura e de raça que a revigorem para, em novas combinações de formas – tanto formas de homens como de convivência humana -, e através de novos portadores dessas combinações, continuar a ser civilização hibridamente vigorosa, viva e criadora: e não curiosidade de museu”.

Em
Um brasileiro…, o “parentesco sociológico do português civilizador dos trópicos com o árabe ou o maometano – dominador mais antigo do mesmo espaço” ganha ainda maior relevo. Freyre esclarece que o aprofundamento do tema surge na sequência de conversas que teve com Franz Boas, “no ano já distante de 1938”. O antropólogo alemão, que havia sido seu professor na Universidade de Columbia, chamou-lhe a atenção para “o triunfo maometano na África, […] como evidência de superioridade de [sua] técnica de assimilação”. Na sua “introdução a uma possível luso-tropicologia”, Freyre defende que o método mouro de “conquista pacífica” de povos, raças e culturas foi assimilado pelo português e posto ao serviço da expansão cristã nos trópicos. E explica: o português inspirou-se em conceitos árabes e orientais de escravidão e poligamia […] para seguir, desde os dias do Infante [D. Henrique], na sua expansão ultramarina […] uma política social de feitio tão pouco europeu que acentuou, desde então, a singularidade da posição dos lusitanos entre os poderes imperiais da Europa: uma potência menos europeia que luso-tropical nos seus métodos de expansão”. O português, como o maometano, teria primado não só pela mistura racial mas também pela adaptabilidade ecológica e sócio-cultural.

A especificidade das relações estabelecidas pelos portugueses com os povos dos trópicos obedecia, portanto, a um modelo aprendido com os mouros e diferente do adoptado pelos nórdicos. A capacidade para “confraternizar lirica e franciscanamente” com africanos, ameríndios e asiáticos, para amar as suas mulheres, para incorporar os seus valores não era partilhada por mais nenhum povo colonizador europeu.

A ideia de que a expansão portuguesa foi animada por “desígnios cristãos” conhece, no âmbito da formulação do luso-tropicalismo, novos contornos. Freyre defende que “só um povo europeu se está revelando nos trópicos mais cristocêntrico do que etnocêntrico. Esse povo é o português, desde a Ásia conhecido mais por «cristão» do que por «luso» ou por «português»”. Também esta característica lusitana é associada ao contacto do cristianismo com o islamismo na Península Ibérica. Nos portugueses, o modo de ser nacionalmente português terá sido superado pelo modo de ser cristão: um modo de ser cristão à maneira do mouro ser maometano. Conservando “a alma só de Deus”, isto é, de Cristo, os portugueses acrescentaram ao corpo, além de filhos mestiços, valores adquiridos de povos orientais e tropicais, valores que do corpo se estenderam ao móvel, à casa, à cozinha, à farmácia, ao meio de transporte, à igreja.

Ao mesmo tempo que formula explicitamente o luso-tropicalismo, Freyre propõe a criação e a introdução nos currículos universitários de uma “subciência” capaz de estudar o modo português de estar e se relacionar nos trópicos; chama-lhe “luso-tropicologia”. Estes novos estudos, eminentemente multidisciplinares, especializam-se na análise e na interpretação do conjunto luso-tropical de cultura: conjunto transnacional a que o autor aplica o critério de área20
.

Na introdução a Um brasileiro… e na conferência lida em Goa, Freyre destaca a importância da língua portuguesa dentro da área cultural luso-tropical. Atento à complexidade da língua portuguesa, detecta nela “alguma coisa de exuberante, de mestiço, de contraditório, que vem da aventura ou da experiência ultramarina: uma experiência que juntou ao passado europeu dos lusitanos outros passados – o oriental, o chinês, o indiano, o africano, o americano, o atlântico”. Defende a preservação e o desenvolvimento da língua portuguesa “sob a forma binacional ou até multinacional, de língua do Brasil, tanto quanto de Portugal, da Índia portuguesa e da inteira cultura de formação lusitana espalhada por África, pelo Oriente, pelo Atlântico”.21 Em sintonia com o seu tempo, considera que “as nações sozinhas, isoladas e estreitamente nacionalistas em suas pretensões a suficiência, já são hoje arcaísmos. Felizes daquelas com possibilidades de formar, com outra ou com outras, conjuntos transnacionais e cultura como é o caso das nações ou quase-nações de Língua portuguesa.” Não obstante os interesses do Estado português, em formulações deste género, Gilberto Freyre dava mostras de colocar o complexo luso-tropical acima das questões de soberania política, numa antevisão de uma comunidade lusófona composta por vários países independentes.

Como já referimos, Um brasileiro… é também uma colecta dos discursos do autor, proferidos ao longo do trajecto. Lê-los é uma forma de refazermos o itinerário, no tempo e no espaço, intuirmos os ambientes e apercebermo-nos de quem foram os seus interlocutores.

Os discursos, proferidos maioritariamente em ocasiões formais (como banquetes e recepções)22
, em sedes do poder político colonial, ou em associações culturais e em agremiações de base étnica23 (sobretudo em Moçambique), eram dirigidos em primeira mão a entidades oficiais, a dirigentes associativos e a intelectuais, embora muitos tivessem sido reproduzidos na imprensa. São textos curtos sobretudo marcados por palavras de circunstância, reconhecimento pelo acolhimento recebido, exaltação das relações luso-brasileiras e pelo que podemos designar de ‘formulações luso-tropicalistas’. No discurso proferido na despedida de Angola, por exemplo, refere-se à tese que há anos defende, “apoiado em estudo e não em capricho sentimental, de que mais importante do que a raça no seu puro sentido biológico ou animal, é a Cultura compreendida na sua amplitude de sentido sociológico e humano”. Diz que em Angola, onde permaneceu duas semanas, encontrou Portugal sem deixar de ter encontrado a África. Também ali diz ter encontrado “a marca das terras descobertas e colonizadas por Portugal”: “não são terras violadas ou conquistadas à força bruta mas docemente assimiladas”. Fala em “assimilação amorosa que se reflecte em tudo, a paisagem e na face dos homens, no tempero dos alimentos, nos usos e costumes das pessoas”. Ali “a presença portuguesa não significa ausência, muito menos a morte de África”.

No discurso ao governador-geral de Moçambique vaticina que os portugueses e os descendentes de portugueses irão sobreviver à derrocada dos impérios, “não porque a sua organização esteja baseada na força mas precisamente porque não está baseada nela e sim no amor”. A obra portuguesa no Brasil e nos “novos Brasis” que surpreendeu em gestação em Angola e Moçambique baseou-se no “amor fraternal” e não no poderio militar, na superioridade técnica ou nos interesses económicos.

No seu “Muito Obrigado”, elaborado
a posteriori, Freyre agradece demoradamente a todos os que lhe proporcionaram a visita a terras portuguesas, o receberam nas suas casas, o acompanharam em trechos da viagem… No extenso rol de agradecimentos figuram o ministro do Ultramar, José Osório de Oliveira, os governadores das províncias ultramarinas, administradores e chefes de posto, escritores e intelectuais de diversos quadrantes políticos, amigos, órgãos de imprensa, o presidente do Conselho e o presidente da República. Freyre faz também questão de agradecer aos seus “guias ou orientadores oficiais e oficiosos”24.

Numa rara passagem em que deixa entrever o tipo de compromissos que teve de estabelecer no quadro de uma viagem proporcionada pelo Governo português, mostra que teve de ‘negociar’ para poder observar aspectos da realidade portuguesa que lhe queriam ocultar: “Os guias e eu éramos às vezes como se fossemos diplomatas empenhados em batalhas subtis”. Na visita à Ilha de Moçambique a sua curiosidade terá ficado frustrada; já no Porto, graças à sua insistência, pôde ver as «ilhas», cuja crueza equipara às «favelas» e «mucambarias» brasileiras.

Num apontamento que denota fascínio pelo exótico, mostra-se reconhecido aos comandantes dos “quase liliputianos aviões que [lhe] permitiram ver de perto raridades da paisagem e da vida animal e até da vida humana em suas formas mais selvagens”, tanto em Angola como em Moçambique. Lamenta que na Guiné e em Goa lhe tivessem faltado esses meios para “bisbilhotices de paisagens e de vida humana e animal no meio das selvas ou no alto das montanhas”.

As duas últimas partes do livro – as saudações dirigidas a Freyre, que funcionam em espelho relativamente aos discursos do autor (em conjunto formam uma espécie de mapa alternativo para se ler e refazer a viagem, em paralelo com
Aventura e rotina); e os comentários às suas ideias e à passagem por “terras portuguesas” – mostram o caloroso acolhimento que o sociólogo brasileiro recebeu em Portugal e o amplo consenso reunido em torno da sua pessoa e do seu pensamento. A recepção a Freyre mobiliza altos responsáveis do Estado, autoridades administrativas, escritores e professores universitários (como Vitorino Nemésio, Hernâni Cidade e Orlando Ribeiro), dirigentes de associações culturais, comerciais, ‘étnicas’.

O livro termina com um texto que vai ao arrepio do carinho e da empatia presentes nos restantes comentários e discursos. Reproduzido do jornal
Ressurge, Goa!, de Bombaim, 15 de Agosto de 1952, assinado por António Simões Júnior25, “O Sr. Gilberto Freyre e a verdade sobre Portugal” é um texto frontalmente crítico. O texto rebate declarações de Freyre ao jornal brasileiro Última Hora, segundo as quais nas universidades portuguesas se dissertava livremente. António Simões Júnior lembra que em Portugal não havia liberdade de expressão, refere-se ao afastamento compulsivo das universidades de professores que defendiam ideias democráticas (Abel Salazar, Bento Jesus Caraça, Mário de Azevedo Gomes e outros), salienta a existência da polícia política, das prisões políticas do Aljube e Caxias e do campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), fala da pobreza escondida em Lisboa e no Porto, denuncia a repressão imposta por Salazar aos desejos de emancipação da maioria do povo de Goa. Sintomaticamente não faz qualquer crítica ao colonialismo português em África nem põe em causa a soberania lusa nas colónias africanas. Num tom ofensivo, afirma: “Não sabemos o que viu, mas sabemos o que declarou à imprensa, e isso nos basta para ajuizar acerca da sua idoneidade moral”. Freyre, a quem chama “representante da reação”, não podia dizer aos seus compatriotas o que se passava em Portugal: “Se o fizesse perderia a confiança que nele depositaram os dirigentes portugueses, e nunca mais lhe seria possível viajar de graça, adulado como um grande senhor, pelas nulidades da nossa época.” Como se vê, os escritores portugueses da oposição, que receberam Freyre com entusiasmo, não são poupados. António Sérgio, Ferreira de Castro e Casais Monteiro deviam seguir o exemplo da escritora brasileira Rachel de Queiroz que, na revista Cruzeiro, “desmascarara” Freyre, “sem citar-lhe o nome”.

A inclusão deste texto a fechar
Um brasileiro em terras portuguesas pode ter diferentes interpretações. A intenção é ambígua. Vontade de mostrar coragem e abertura à crítica? Incluindo apenas uma crítica negativa e violenta, a raiar o ataque pessoal, quis ‘neutralizá-la’, apresentá-la como uma excepção? Terá sido uma forma de revelar realidades que ele próprio se coibiu de mencionar? Ou pretendia ser polémico?

A visita de Gilberto Freyre a Portugal e às colónias portuguesas suscitou posições de desagrado no Brasil e, em geral, no seio do movimento anticolonial internacional, pois foi encarada como instrumento de legitimação do salazarismo e do colonialismo português26
. Para diversos intelectuais dos territórios africanos sob domínio português a viagem e os livros que se seguiram foram uma desilusão. Os cabo-verdianos do grupo da revista Claridade27 e os angolanos da Associação dos Naturais de Angola, por exemplo, punham grandes expectativas na visita. Os primeiros porque sentiam fortes afinidades entre a sociedade cabo-verdiana e a sociedade brasileira, que Freyre veio a desvalorizar28. Os segundos porque admiravam o esforço de Freyre para a reabilitação dos negros e esperavam que o sociólogo brasileiro observasse a opressão e discriminação a que estavam sujeitos e lhes desse visibilidade, o que não veio a suceder.

“Trouxe-nos, há tempos, o telégrafo, depois a Rádio e agora a Imprensa, a grata notícia de que V., Gilberto Freyre, nos iria visitar. E nós, que estamos tão pouco ou nada habituados a ter, entre nós, quem nos compreenda, quem, como V., saiba
ver a nossa Terra, – que ver não é, simplesmente, olhar –, quem, como V., Gilberto Freyre, saiba compreender o nosso Povo – o bom Povo de Angola, que tantas afinidades tem com o bom Povo do Brasil –, nas suas incertezas, nos seus múltiplos problemas; nós, que estamos habituados a ser observados como curiosidades de museu; nós, que tantas vezes nos encontramos com banais “caçadores de exotismos” ou simplórios coleccionadores de sensações novas, seduzidos por aquilo a que, comummente, se chama o mistério da África, nós, confessamos, não acreditámos à primeira.

Mas hoje, que parece que a notícia se confirmou já e adquirimos a certeza de que, em breve, – como todos os dias nos repetem as Emissoras –, o teremos entre nós, não conseguimos sofrear a nossa satisfação pelo facto e aqui estamos, prezado camarada da mesma luta, a manifestar-lhe, com toda a sinceridade do nosso desejo de compreensão; com toda a veemência da nossa aspiração por um futuro melhor, mais justo, mais tranquilo e mais feliz, para o nosso bem incompreendido e desamparado Povo, – como para todos os nossos irmãos do Mundo –, o nosso Muito Obrigado, por vir.

Efectivamente, V. não é para nós um desconhecido. Há muito que nos habituámos a admirar, no autor de “Casa Grande & Senzala” e “Sobrados e Mucambos”, um valoroso e combativo soldado da nossa causa - a reabilitação - se tal termo nos é permitido - dos nossos irmãos negros de todo o Mundo, e um velho amigo.”29

Como este trecho deixa entrever, o pensamento de Gilberto Freyre era (é) passível de diferentes leituras, identificações e apropriações, em função de quem o convoca e dos fins que tem em vista. Esta ambiguidade é parte integrante do modo de Freyre construir os seus argumentos e de comunicá-los.

As realidades desviantes

A adesão pública de eminentes intelectuais e académicos portugueses ao luso-tropicalismo esconde, nalguns casos, uma consciência crítica relativamente ao que, de facto, se passava nas colónias portuguesas. Em relatórios confidenciais, emerge a abissal distância que separava a acção colonial da teoria luso-tropical. De facto, a colonização portuguesa, como qualquer outra, assentou em barreiras raciais, gerou conflitos e promoveu a discriminação30. A discriminação racial fazia-se, em primeiro lugar, através da diferenciação jurídica do chamado «indígena» (regulada por estatuto próprio). Os castigos corporais, ministrados aos trabalhadores e serviçais domésticos pelos patrões e aos africanos «não civilizados» em geral pelas autoridades administrativas e policiais (uso da palmatória) e as rusgas (para “capturar” indígenas fugidos do contrato, remissos ao imposto, sem patrão ou fabricantes de bebidas alcoólicas) estavam na primeira linha das formas explícitas de racismo. Havia também formas mais subtis de racismo, nomeadamente a diferenciação salarial e os entraves no acesso ao emprego e à promoção social. Entre as causas de conflitos e mal-estar social contam-se o recrutamento forçado (denominado chibalo em Moçambique), que colocava à disposição dos colonos (empresas, particulares e administração) uma mão-de-obra barata, o envio de contratados para as roças São Tomé, as culturas obrigatórias (do algodão e do arroz), a ocupação de terras, o comércio de permuta explorando o indígena, a cobrança de impostos e a falta de respeito pelas autoridades gentílicas.

Freyre não se debruça sobre a maioria destas realidades, que só terá observado de fugida.31
 Aliás, não cabiam no programa oficial (de propaganda do Ultramar português e da excepcionalidade portuguesa) nem no seu próprio programa (de confirmação de “intuição antiga”). A política colonial portuguesa, no seu conjunto, não lhe merece reparos. Afirma que em Angola e Moçambique encontrou «novos Brasis» em gestação. Em Aventura e rotina, as práticas racistas da Diamang (Companhia de Diamantes de Angola), à semelhança das de outras grandes empresas capitalistas a operar no ultramar32, e as discriminações raciais surpreendidas em Lourenço Marques, capital de Moçambique, são consideradas “desvios à tradição lusa”, determinadas pela influência nefasta do Congo Belga e da África do Sul. Também nas restrições e discriminações entre portugueses da metrópole e do ultramar no funcionalismo público e no acesso ao quadro de oficiais das Forças Armadas, Freyre vê uma imitação passiva de “ingleses e belgas, cujos princípios e ritos de política e administração coloniais são, na sua maioria, incompatíveis com as tradições e tendências mais caracteristicamente portuguesas de convivência humana”.33

Gilberto Freyre procura fazer uma leitura globalizante da cultura gerada pela colonização portuguesa dos trópicos, focando-se na longa duração, nas constantes e nas tendências de fundo. Encara as tensões raciais no 3.º império colonial português como um ‘epifenómeno’ que irrompe no tempo curto, desligado da ‘vaga subterrânea’, o complexo cultural luso-tropical; opta, portanto, por não lhes prestar muita atenção.

Porém, a partir de meados da década de 50, sucedem-se os ‘avisos à navegação’ por parte de alguns cientistas portugueses que alertam para um “desvio” do comportamento dos colonos relativamente à “tradição portuguesa”34
. Como Freyre, face a práticas que desmentiam o modelo de convivência pacífica, miscigenação e interpenetração de culturas, consideram que não era o modelo que estava desfasado da realidade que pretendia caracterizar, mas as práticas que se afastavam da “tradição portuguesa”.

No relatório confidencial da viagem que fez a Goa, em 1956, e que é muito interessante ler em contraponto às impressões de Gilberto Freyre, Orlando Ribeiro revela à saciedade a reduzida influência cultural portuguesa, a fraca implantação da língua portuguesa, a debilidade da Igreja católica, o papel insignificante da mestiçagem35
. No mesmo ano, no relatório confidencial elaborado pelo antropólogo Jorge Dias, a propósito da missão de estudos das minorias étnicas das províncias de indigenato36, percebe-se que em Moçambique os mestiços são tratados como indígenas e a maioria dos colonos considera os negros seres inferiores. Em Angola, nota-se uma “evolução satisfatória” no sentido da evolução realizada pela nação brasileira, mas impõe-se a repressão dos “abusos desnecessários” e a promoção do indispensável desenvolvimento económico e social. Na Guiné, a influência da cultura portuguesa é praticamente inexistente.

Num relatório de Jorge Dias referente à sua participação numa reunião realizada em Frankfurt sobre “problemas políticos da vida em comum entre pretos e brancos em África”, o antropólogo confessa que conseguiu que a sua comunicação fosse bem acolhida pelos outros conferencistas, “porque a posição tradicional portuguesa é absolutamente defensável, quando posta em termos de evolução histórico-social, como um aspecto da história da humanidade, anterior à expansão capitalista europeia”37
. Acentua que esse facto, a estrutura social portuguesa e o carácter nacional do povo luso deram origem a “um tipo de colonização que como processo é inteiramente distinto da colonização do século XIX” (idem). Porém, alerta: “aí de nós se se descobre que na realidade nos estamos a desviar grosseiramente de uma linha de conduta tradicional para enveredarmos pela da exploração brutal e impiedosa do indígena, esquecendo aquele fundo de humanidade cristã que nos caracteriza e que nos deu fama de excepcionais colonizadores” (idem).

Um brasileiro…
meio século depois
O luso-tropicalismo foi penetrando no imaginário nacional português graças à propaganda do Estado Novo e à adesão da esmagadora maioria das elites portuguesas (da direita à esquerda). Esse processo foi facilitado porque a imagem reproduzida do português – plástico, tolerante, fraterno – tinha raízes antigas. Desde, pelo menos, o último quartel do século XIX, na imprensa e no debate político em Portugal circulava a ideia de que os portugueses tinham uma especial vocação para lidar com os outros povos. Gilberto Freyre veio dar autoridade científica a essa convicção. Julgamos que o nacionalismo português, baseado sobretudo no orgulho na história pátria e muito concretamente na história dos descobrimentos, integrou desde muito cedo a norma anti-racista e afirma-se ecuménico. Em contraponto aos ‘maus’ nacionalismos, fechados, etnocêntricos e xenófobos, o nacionalismo português reivindica-se integrador e universalista (logo, benigno). Enterradas as veleidades imperiais, provavelmente o espaço de afirmação identitária de muitos portugueses estende-se hoje à Europa, à África, ao Oriente, à América… ao mundo global.

Um brasileiro…
, como outros textos de Freyre, encerra contradições e ambiguidades difíceis de deslindar. O mesmo texto que exalta a benignidade da colonização portuguesa em África e parece legitimar o regime colonial português no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, coloca a comunidade luso-tropical (comunidade de sentimento e de cultura) acima dos estreitos nacionalismos, encarando a soberania portuguesa sobre as colónias como dispensável e transitória.38 A comunidade luso-tropical – transnacional ou supranacional – existia independentemente do império português. Ao colocar o luso-tropicalismo num plano ‘extra-colonial’, o autor assegurou a sua sobrevivência depois da descolonização. De certa forma, ele ainda hoje habita os discursos e os projectos de uma comunidade lusófona imaginada e em processo de formação/reconfiguração no quotidiano dos oito países de língua oficial portuguesa e das respectivas sociedades civis.

O luso-tropicalismo encerrava uma mensagem positiva, de elogio da capacidade criadora do português na sua relação com os povos tropicais. Porém, o hibridismo luso-tropical não é em si mesmo um elemento progressista: tanto serviu (pode servir) políticas culturais liberais e anti-nacionalistas como conservadoras e imperiais (Young, 2006). Qualquer reivindicação pós-colonial dessa “quase teoria” (como lhe chamam Burke e Pallares-Burke, 2008) não deverá esquecer a sua história.
 

 

CASTELO, Cláudia, “Prefácio”, FREYRE, Gilberto, Um brasileiro em terras portuguesas: introdução a uma possível luso-tropicologia, acompanhada de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. 2.ª ed. São Paulo: É Realizações, 2010.
Fontes
Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa, Portugal), Gabinete do Ministro, Processo n.º 29 A – Visita de Gilberto Freyre ao Ultramar Português (1951-1953).
Fundação Gilberto Freyre (Recife, Brasil), Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre.
Fundação Mário Soares (Lisboa, Portugal), Arquivo Mário Soares, Espólio documental do Vice-Almirante Manoel Maria Sarmento Rodrigues.
Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa, Portugal), Secção de Secretariado, Expediente e Arquivo, Processo n.º 477 – Gilberto Freyre (1951-1957).

Bibliografia citada:
ALEXANDRE, Valentim. 1998. “Configurações políticas”. In Francisco Bethencourt e Kiri Chaudhuri (dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol. IV: Do Brasil para África (1808-1930). Lisboa: Círculo de Leitores, p. 90-211.
BENDER, Gerald. 1980. Angola sob o domínio português: mito e realidade. Lisboa: Sá da Costa Editora.
BURKE, Peter, PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. 2008. Gilberto Freyre: Social theory in the tropics. Oxfordshire: Peter Lang.
CASTELO, Cláudia. 1999. «O modo português de estar no mundo»: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Afrontamento.
CASTELO, Cláudia. 2000. “Leituras da correspondência de portugueses para Gilberto Freyre”. Actas do VI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais: As Ciências Sociais nos Espaços de Língua Portuguesa: Balanços e Desafios, vol. 2. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 422-444.
FREYRE, Gilberto. 1933. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt.
FREYRE, Gilberto. [1954]. Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção. Lisboa: Livros do Brasil.
FREYRE, Gilberto. 1958. Integração portuguesa nos trópicos, col. Estudos de Ciência Política e Social, n.º 6. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.
FREYRE, Gilberto. 1961. O luso e o trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical. Lisboa: Comissão das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique.
LÉONARD, Yves. 1997. “Salazar et lusotropicalisme, histoire d’une appropriation”. Lusotopie, p. 211-226.
LOPES, Baltasar. 1956. Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Praia: Imprensa Nacional.
YOUNG, Robert. 2006. “O Atlântico lusotropical: Gilberto Freyre e a transformação do hibridismo”.
Joshua Lund; Malcolm McNee (ed.).
Gilberto Freyre e os estudos lationoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh, p. 99-122.

  • 1. 1.ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio, coleção Documentos Brasileiros n.º 76, 1953.
  • 2. No chamado Estado português da Índia, Gilberto Freyre visitou Goa. Na União Indiana, livre do domínio britânico desde 1947, visitou Bombaim, que caracteriza como terra ex-lusitana da Ásia. De facto, os portugueses chegaram a Bombaim (na época um conjunto de ilhas) em 1509 e conquistaram o arquipélago ao sultão de Guzerate em 1534. Em 1661 entregaram-no a Carlos II de Inglaterra como dote de Catarina de Bragança.
  • 3. 1.ª edição, Rio de Janeiro, José Olympio, coleção Documentos Brasileiros n.º 77, 1953.
  • 4. Regime político ditatorial, autoritário, conservador, católico e colonialista que vigorou em Portugal de 1933 a 1974. Surge na sequência do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República. Além da supressão da liberdade política, institui a censura e a polícia política. Até 1968, a sua figura de proa foi António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros, a quem sucedeu Marcelo Caetano.
  • 5. No continente africano, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe; na Índia, Goa, Damão e Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli; no Oriente, Macau e Timor.
  • 6. como resposta ao avanço da contestação anticolonial nos meios internacionais, na revisão constitucional de Junho de 1951, o Acto Colonial de 1930 foi integrado na Constituição da República Portuguesa e os termos «colónias» e «império colonial» substituídos por «províncias ultramarinas» e «ultramar».
  • 7. Brasil, Fundação Gilberto Freyre, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre, Cópia de informação dirigida por José Osório de Oliveira ao Agente Geral das Colónias, datada de 25.01.1951.
  • 8. Não encontrei esta carta no Arquivo Documental Gilberto Freyre. Tenho notícia indirecta dela através da resposta de Gilberto Freyre, de 4 de Junho de 1951, que figura no espólio de Sarmento Rodrigues, no Arquivo Mário Soares (Portugal).
  • 9. Apenas os anarquistas e os comunistas não partilham aquele objectivo.
  • 10. Brasil, Fundação Gilberto Freyre, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre, carta de 28.09.1951.
  • 11. Brasil, Fundação Gilberto Freyre, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre, rádio-telegrama de 30.01.1952.
  • 12. Em O luso e o trópico (1961), Freyre refere que são vários os homens de ciência portuguesa que se manifestaram solidários com a tese luso-tropicalista. Entre outros, destaca o médico Almerindo Lessa (Seroantropologia), e os professores universitários Orlando Ribeiro (Geografia), Jorge Dias (Antropologia), Adriano Moreira (Ciência Política), Mário Chicó (História de Arte) e Henrique de Barros (Agronomia).
  • 13. Adriano Moreira, a 7 de Setembro de 1961, um dia depois da publicação oficial da legislação que revoga o estatuto do indigenato e cria as Juntas Provinciais de Povoamento, envia a Gilberto Freyre um exemplar do Diário do Governo: “Creio que terá interesse em conhecer a legislação que consta do Diário do Governo que lhe envio. Chamo a sua atenção para a página 1129”. Nesta página Freyre é mencionado. Brasil, Fundação Gilberto Freyre, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre.
  • 14. Ao contrário do que sugerem Burke e Pallares-Burke (2008, p. 119), a visita implicava contrapartidas: a produção de uma obra sobre o ultramar português. Para o efeito, o Ministério do Ultramar deveria disponibilizar bibliografia. Numa carta datada de 16 de Setembro de 1952, Sarmento Rodrigues diz a Gilberto Freyre: “Precisamos de liquidar estes nossos negócios. Eu vou propor-lhe uma fórmula. Os livros que lhe têm sido enviados são oferta do Ministério do Ultramar. Os onze mil escudos [a quantia acordada como pagamento?] ficarão às suas ordens e serão entregues onde quiser, talvez em qualquer livreiro com quem se entenda, para suas novas encomendas, directas. Valeu? Diga-me quem há-de ser o livreiro”. Freyre tinha-lhe escrito, a 28 de Fevereiro, dizendo que pretendia que os onze contos fossem empregues na compra de obras indispensáveis à preparação do seu livro que, embora “impressionista”, não dispensava “o conhecimento de certas fontes portuguesas e depoimentos ou interpretações estrangeiras”. Mostrava-se desapontado com os livros que lhe tinham chegado através da Agência Geral do Ultramar, e enviava duas listas com os títulos que desejava que fossem adquiridos com aquele orçamento.
  • 15. Veja-se a lista de obras que Gilberto Freyre solicita ao Ministério do Ultramar para a elaboração do seu livro. Portugal, Arquivo do Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa), Processo n.º 477 – Gilberto Freyre.
  • 16. “Uma cultura moderna: a luso-tropical” (Goa, Nov. 1951); “Palavras na Real Sociedade Asiática de Bombaim” (Nov. 1951); “Em torno de um novo conceito de tropicalismo” (Coimbra, Jan. 1952); “A propósito de Oliveira Lima” (Porto e Lisboa, Jan. 1952). Nas conferências lidas em Goa e em Coimbra encontramos já a formulação do luso-tropicalismo.
  • 17. A edição portuguesa, publicada em Lisboa pela Ed. «Livros do Brasil», em 1955, não inclui o conjunto de ilustrações nem os comentários publicados na imprensa, embora o prefácio aluda a ambos.
  • 18. O luso-tropicalismo é posteriormente desenvolvido nos livros: Integração portuguesa nos trópicos, col. Estudos de Ciência Política e Social, n.º 6, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1958 e O luso e o trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961. A primeira destas obras é bilingue português / inglês. A segunda teve edições em português, francês e inglês. O facto de terem sido publicadas em Portugal por organismos oficiais ajuda a explica o seu fraco conhecimento no Brasil.
  • 19. Burke e Pallares-Burke sustentam que Freyre afirma em Casa-grande & senzala que o português tinha há muito tempo perdido a sua plasticidade (2008, p. 63). Porém, a longa citação que fazem de uma passagem da obra não se refere à plasticidade ou adaptabilidade climática, biológica ou cultural do português aos trópicos (2008, p. 186-187); remete sim para a decadência política e económica que, desde finais do século XVI, Portugal atravessava, para a falta de poder entre as demais potências coloniais europeias, para a incapacidade de investimento produtivo, para as “pretensões de grandeza do português”, para o facto de viver “parasitariamente de um passado cujo esplendor exagera”, alimentando-se “da fama adquirida nas conquistas do ultramar” (cf. Freyre, 1933, p. 161 e segs.).
  • 20. O critério de área é um critério moderno na época. A área luso-tropical resulta de um conjunto descontínuo em termos geográficos, mas marcado por uma unidade psicocultural, biossocial e linguística.
  • 21. Porém nas colónias portuguesas de África, a língua era uma barreira entre colonizadores e a maioria dos colonizados. Nas colónias, só muito tardiamente – década de 1960 adentro – se começou a investir na escolarização em massa dos africanos. A falta de investimento público numa rede escolar também afectava as comunidades imigrantes. O discurso de saudação da comunidade chinesa de Manica e Sofala aborda esse problema.
  • 22. Das 19 fotografias da visita incluídas no livro, cinco são com altos dignitários do Estado colonial em ocasiões solenes.
  • 23. Em Aventura e rotina, Freyre afirma que lhe parece “errado, em qualquer das Áfricas portuguesas, estimular-se entre os portugueses de cor qualquer espírito de associação de base étnica que separe negros ou mestiços, de brancos […] Nada de «naturais de Angola», de «nativos de Moçambique», de «homens de cor de Lourenço Marques, tratando-se de africanos e descendentes de africanos já participantes de culturas luso-tropicais em suas expressões sociologicamente nacionais, isto é, portuguesas.” ([1954], p. 405-406).
  • 24. O tenente Teixeira da Mota (a quem chama “o príncipe dos meus guias oficiais no Ultramar Português”), que o acompanhou na Guiné; o advogado Júlio Monteiro Júnior, que o orientou na visita às ilhas de Cabo Verde; o Prof. Pissurlencar, director do Arquivo do Estado da Índia em Pangim, cicerone em Goa; os directores de Economia e de Educação de Angola, Ramos de Sousa e Ávila de Azevedo, designados pelo governador-geral Silva Carvalho para acompanharem o visitante nas principais excursões que fez naquela província; o agrónomo Gomes Pedro, designado, para o mesmo efeito, pelo governador-geral de Moçambique.
  • 25. Escritor (Olhão, 1922-Argentina, 1990). Foi pintor da construção civil, integrou o MUD Juvenil e aderiu ao Partido Comunista Português (na clandestinidade). O medo de ser preso pela PIDE leva-o a fugir para Marrocos e depois a fixar-se na Argentina em 1949, onde o pai era emigrante e possuía uma pequena fábrica. Nos anos 50, colabora com jornais e revistas progressistas da Argentina e do Brasil, no diário Ressurge, Goa! e em Cultura (Angola) (http://www.olhao.web.pt/Personalidades/Antonio_Simoes_Junior.htm, acedido em 17 de Junho de 2010).
  • 26. Alguns anos mais tarde, os dirigentes dos movimentos de libertação africana, como Mário Pinto de Andrade (MPLA) e Amílcar Cabral (PAIGC), fariam uma leitura muito crítica do luso-tropicalismo. Caberia a Charles Boxer, historiador inglês, inaugurar a crítica histórica do luso-tropicalismo no início dos anos 60, seguida nomeadamente por Gerald Bender (1976).
  • 27. Teixeira de Sousa lembra que na década de 30 os elementos do grupo da Claridade começaram a familiarizar-se com o movimento cultural brasileiro e Gilberto Freyre foi dos escritores mais discutidos e apreciados. “O entusiasmo foi tanto que houve quem dormisse com Casa-grande & senzala na banquinha de cabeceira e o manuseasse com o mesmo fervor com que os crentes lêem as Sagradas Escrituras” (“Uma visita desejada”, in Cabo Verde, Dez. 1951, p. 31).
  • 28. Um dos mais conceituados escritores cabo-verdianos acusa Freyre de ter visitado o arquipélago a correr e transmitido uma visão superficial e deturpada das realidades cabo-verdianas. Vd. Baltasar Lopes. 1956. Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Praia: Imprensa Nacional – Divisão de Propaganda.
  • 29. Carta de Mário de Alcântara Monteiro, em nome do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, para Gilberto Freyre, datada de Luanda, 22.09.1951 (Brasil, Fundação Gilberto Freyre, Arquivo Documental Gilberto Freyre, Correspondência de portugueses para Gilberto Freyre).
  • 30. Sobre “Barreiras raciais, conflito e discriminação”, ver Cláudia Castelo. 2007. Passagens para África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da metrópole (1920-1974). Porto: Afrontamento. Cap. VII.
  • 31. A viagem de Freyre por tantas terras, tão variadas e distantes entre si, num intervalo de tempo limitado, atendendo à dimensão dos territórios, dificilmente se pode considerar uma viagem de estudo. Se nalguns locais, Freyre teve oportunidade de consultar arquivos (em Lisboa, em Pangim, em Lourenço Marques), em nenhum local fez inquéritos ou outro tipo de trabalho de campo assente numa metodologia científica.
  • 32. “O estado de «trabalhador nativo» do africano destribalizado, dentro das grandes empresas capitalistas instaladas na África, é uma situação de condenado sociologicamente à morte. Baseia-se na concepção de ele ser inferior ao branco, não transitoriamente - como cativo de guerra ou devido a outro acidente – mas como raça. Biologicamente. Fatalmente.” (Freyre, [1954], p. 357-358).
  • 33. Freyre, [1954], p. 294
  • 34. A propalada “tradição portuguesa” não era nada de inato ao povo português, como se quis fazer crer, mas antes um modelo geográfica e historicamente situado, reportando-se à situação política e social das elites locais que até à segunda metade do século XIX serviram de suporte ao poder colonial em pontos precisos da África, isto é, antes da implantação do Estado colonial moderno e do estabelecimento de correntes migratórias da metrópole em direcção ao império (vd. Alexandre, 1998, p. 207-208).
  • 35. Orlando Ribeiro. 1999. Goa em 1956: relatório ao Governo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
  • 36. Jorge Dias. 1956. Missão de estudos das minorias étnicas do ultramar português: relatório de campanha de 1956. Lisboa. Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, AOS/CO/UL – 37, Pt. 1.
  • 37. Relatório datado de 7 de Julho de 1958. Foi enviada cópia ao governador-geral de Moçambique pelo director-geral de Administração Política e Civil do Ministério do Ultramar, em 31.1.1959. Portugal, Arquivo Histórico Ultramarino, MU/GNP/084/pt. 33.
  • 38. A propósito do separatismo goês, afirma: “Deixasse Goa, amanhã, de ser província ultramarina de Portugal […] e continuaria tão luso-indiana em sua cultura, que a sua situação dentro da União Indiana talvez viesse a ser, senão a de um corpo estranho, a de uma alma estranhíssima. […] Mas o assunto devem resolvê-lo os luso-indianos. Eles é que sabem com quem melhor se ajusta politicamente a sua alma.” “A verdade é que pouco me preocupa ou interessa o aspecto simplesmente político da situação do luso-indiano: se ele entender que só pode ser politicamente feliz como cidadão da União Indiana, que adopte essa cidadania. Se a índia Portuguesa, por maioria absoluta, assim entender, que a Índia Portuguesa se torne, toda ela, província da União Indiana. É movimento ou atitude de superfície: sem sentido de profundidade. O que me parece é que, como ser cultural, o luso-indiano, é um luso-tropical. É membro dinâmico e vivo da cultura luso-tropical de que o Brasil, mesmo separado politicamente de Portugal, continua parte viva e dinâmica” (Freyre, [1954], p. 275 e 406-407).

por Cláudia Castelo
A ler | 31 Março 2013 | antropologia, Brasil, colonialismo, Gilberto Freyre, lusotropicalismo