"Uma extensão da busca política por novas perspectivas", entrevista a Juliano Gomes sobre Vazante
Vazante, filme que estreou no Brasil no Festival de Brasília em 2017, é uma co-produção Brasil/Portugal realizada pela diretora Daniela Thomas que se passa em 1821, numa fazenda do interior de Minas Gerais chefiada pelo rico colono português António que, após perder esposa e filho, casa-se com a sobrinha de doze anos. Antônio vive em sua propriedade com a então jovem esposa Beatriz e seus escravos. A ocupação ecônomica gira em torno da criação de gado.
Este texto move-se em direção à efeméride da conversa protagonizada entre a diretora e o público após a exibição no referido festival. O que se seguiu à exibição do filme Vazante foi um debate entre a diretora e o público especializado, nomeadamente a crítica de cinema, que marca estruturalmente as transformações do campo cultural e político brasileiro dos últimos anos, principalmente após o Inverno quente de 2013 e os desdobramentos que possibilitaram o Golpe Parlamentar de 2016.
A dinâmica social dos últimos anos no Brasil acirrou as tradicionais formas de arranjos sociais e manutenção das diferenças, sobretudo a partir de 2013 com a crise econômica que inicia, e por outro lado, tal dinâmica possibilitou, de forma contraditória, o aparecimento de organizações sociais e movimentos civis ligados a questão do racismo estrutural da nossa sociedade, além do aparecimento do feminismo negro nos últimos anos. Muito do cinema da Retomada voltou-se para a favelização das vidas e sua relação com a racialização dos corpos e sujeitos nas grandes metrópoles brasileiras, distante visualmente das formas adotadas pelo sucesso Cidade de Deus. É preciso trazer para a centralidade do debate filmes produzidos nesta perspectiva, como a produção dos grupos Nós no Morro, Afroreggae, Baixada Filma, como a recente plataforma audiovisual Afroflix, entre tantos outros. Reviver um Brasil colonial onde negros e negras, silenciados, assistem a carnificina e a sujeição de seus corpos como projeto político de destruição social, tornou o filme Vazante uma voz anacrônica, para dizer o menos. É nesse sentido que o filme de Thomas está contido no interior de um complexo debate que se move em direção a novos rearranjos identitários e históricos do nosso cinema contemporâneo: um confronto entre um cinema do tipo imperialista industrial com cada vez mais imagens contra-discurso. Vazante tornou-se um filme -chave na compreensão de tais antagonismos.
Entrevista ao crítico de cinema Juliano Gomes, da Revista Cinética / Rio de Janeiro - Lisboa, 15 de outubro de 2018
Entre os textos publicados pela imprensa acerca da polêmica em torno do filme Vazante, de Daniela Thomas, a diretora nomeou, em alguns desses textos, você, enquanto crítico, como um espécie de censor, alguém que supostamente teria sugerido que o filme não fosse lançado. Gostaria de perceber como você interpretou essa acusação.
Juliano Gomes (JG) - Isso foi um espécie de “telefone sem fio” que se formou a partir de algo que disse no debate dos filmes no festival. O jornalista Luiz Zanin repercutiu no Estadão essa fala minha sem contexto, e daí formou esse ruído.
No texto que escrevi na época (Quem controla os silêncios?) explico o que rolou:
“E foi a primeira vez que vi alguém que dirigiu um filme, num espaço de debate – lugar de desdobramento do filme – optar por, além de não expor elementos que permitam que o público conheça melhor as hipóteses de trabalho da obra, adotar um ponto de vista que sugere renegar a crença do próprio trabalho. Diante dessa situação inusitada, reagi, por certo com alguma ironia. Estava perplexo com a postura inconsequente de uma artista experiente que decidiu narrar um episódio central na formação no nosso país e do nosso cinema. No texto publicado no blog da Piauí, Daniela Thomas se diz arrependida de ter pedido desculpas pelo filme, mas em seguida me recrimina justamente por ter reagido a este mesmo comportamento que, como ela, julguei absurdo. Como o filme de maior orçamento do festival, apoiado pela Globofilmes – e possivelmente amparado em sua produção com todos os meios para buscar sua consistência própria – é apresentado como algo a partir do qual se pede desculpas? Ao retirar, novamente, sua responsabilidade do debate, Daniela Thomas cria uma narrativa onde há consequências, mas não causas.
Frente a esta situação inédita, após fazer uma longa análise sobre a relação entre economia, escravidão e as sobrevivências destes processos, perguntei se ela tinha obrigações contratuais de lançar o filme, uma vez que se dizia arrependida de tê-lo feito desta maneira. Está gravado. Gostaria muito que vocês leitoras checassem os textos que cito e os vídeos que indico, e tomem vocês suas conclusões. Estamos em plena era do pós-fato, que vem se configurando como uma eficiente ferramenta de poder.”
Não me interessa muito individualizar esse acontecimento em nenhuma esfera. O que aconteceu é uma conjunção de fatores, de presenças novas, conceitos novos, situações novas ali naquele espaço, que puderam responder com mais ferramentas questões muito antigas. A D. Thomas já disse algumas vezes que não estava acostumada a um ambiente de debates vivos. No susto, as pessoas usam o que tem. Nesse sentido acho bem mais grave um jornalista se aproveitar disso para produzir pequenos factóides. Ele tava no auditório, tava entendendo o que tava acontecendo.
No contexto do debate, muito se falava nas redes sociais sobre como o filme Vazante, e a própria diretora, haviam sofrido “duras repressões” de um movimento social que tem o cerne da questão em torno da legitimidade do lugar de fala. Vi alguns diretores brasileiros e europeus a criticarem a repressão sofrida por “não mais poderem falar sobre qualquer tema”. Como você percebe essa discussão?
Hoje vivemos intensamente a questão de estender o terreno da ação política para zonas que estavam mais “protegidas” anteriormente. Não há exatamente ideias novas nessa conversa, há uma extensão da busca política por novas perspectivas. É uma ampliação. Na medida em que pudemos notar gritantes homogeneidades (seja em perfis de personagens, ou perfis de profissionais que conseguem lançar um longa, por exemplo), temos que agir sobre elas. Esse processo é antigo. Os elementos é que vão mudando. Já podemos perceber que esta atitude de quem clama por uma posição onde tudo parece estar igualmente acessível é uma performance social que possui uma história, e um perfil racial e de classe também. E essa ideia do “não poder” é uma fantasia cômoda, porque isso nunca esteve realmente em jogo. Mesmo em casos de ações mais diretas, a situação real de grupos historicamente marginalizados inviabilizarem a carreira de uma obra me parece uma fantasia distante. Quem não está acostumado a conviver com incômodos, quem está habituado a um sistema de aprovações automáticas desde muito cedo, acaba sentindo muito fortemente a presença de um questionamento verdadeiro, onde se é colocado em questão. A distribuição da autonomia artística não é equânime, naturalmente. Os fluxos financeiros são decisivos nisto. É preciso estar inserido em certos circuitos de financiamento e institucionais para poder gozar de uma margem ampla no que se pode fazer artisticamente. O que quero dizer: as arestas que delimitam o que os artistas podem fazer são muito variadas. Por exemplo, que lugar tem ou teriam os trabalhos de artistas negras que, com originalidade e vigor, não lidassem diretamente com questões raciais? Há um imenso controle tácito em relação a isso. Da delegacia ao festival de cinema, negras e negros são de quem se espera que “falem a verdade”. Isso me parece um problemão, porque existe uma restrição expressiva implícita aí. “Falar sobre qualquer tema” é uma fantasia branca, que retroalimenta uma configuração de hegemonia e supremacia branca, onde qualquer interrogação viva se metamorfoseia em “dura pressão”. É uma falsa questão. Devemos sempre nos perguntar sob que horizontes uma mulher vinda da periferia, por exemplo, consegue um projeto de longa ser aprovado hoje, por exemplo. Há imensas barreiras para isso, de linguagem, de repertório, de networking… O pensamento reacionário tem um certa tara por uma “liberdade sem limites”, que nada mais é uma fantasia egóica de um mundo sem história, que possa zerar o que formou toda essa malha sutil de segregações. O que vivemos mais intensamente hoje é uma radicalização de um politização da história e de uma historicização do discurso e práticas políticas.
No texto crítico publicado na Revista Cinética sobre o filme Vazante você comenta a atuação da personagem Feliciana e a construção subjetiva desse personagem no filme, a maneira com a qual ela é silenciada e ao mesmo tempo esconde uma convulsão. Poderia desenvolver um pouco mais essa ideia?
Não lembro de ter falado de “convulsão”. Não voltei a rever o filme, mas na minha memória ficou que havia em Feliciana uma enorme oportunidade perspectiva para o filme, porque ela é quem transita, é uma espécie de mensageira silenciosa. Mas o filme parecia não se interessar muito em desdobrá-la.
Há um caminho aberto para que outras narrativas explorem essa personagem e sua ampla capacidade de falar em várias línguas (a África é o mais poliglota dos continentes, se não me engano), em circular em vários ambientes. Esse trânsito é muito brasileiro. Porque os subalternizados são obrigados a se tornar exímios observadores daqueles que os subjulgam. Isso produz um material subjetivo muito interessante. A Feliciana seria um exemplo em potencial disso, desse grande conhecimento. Seria rico aquela história sob o ponto de vista dela. Caso as instituições de fomento não sejam dizimadas ou desidratadas, acredito que filmes com esse tipo de desejo tendem a ser feitos. Há cada vez mais material crítico e estudos em torno desses elementos no Brasil hoje. O ambiente aponta para esta ampliação do imaginário.
De que forma você relaciona o filme Vazante com a produção cinematográfica contemporânea brasileira?
É um filme de 6 milhões de reais, com co-produção europeia e com amplo apoio da Globo Filmes. Tem o seu nicho, e tentou abordar temas fundamentais da formação brasileira que têm sido discutidos de forma cada vez mais rica em vários espaços e esferas. Acabou conseguindo de uma maneira inesperada, como efeito de tudo o que aconteceu. É uma vitória que um festival de cinema ou um evento de arte possa produzir reverberações que são mais do que uma simples treta ou suposta polêmica. Foi muito positivo como acontecimento. O filme fez o papel dele, disparando uma série de respostas que, pelo interesse ainda hoje suscitado, me parecem importantes. Tá cumprindo sua missão. Particularmente, acho que não seria mal que tivesse sido mais visto no cinema (lembro de ter checado há algum tempo e não tinha chegado a 10.000 ingressos). Mas é um filme que carrega características da geração da chamada Retomada, características técnicas e conceituais. E agora isso entra em certo choque com uma outra geração, que vai perceber com mais nitidez um matiz elitista que boa parte da produção da Retomada demonstra, uma espécie de impulso sociológico desimplicado e distante ligado a certa cartilha de bom gosto plástico baseado nos festivais classe A europeus. Mas a produção brasileira é muito variada. Acho que será bem vindo um filme que possa reestudar a escravidão e colonialismo brasileiro a partir de matrizes estéticas e conceituais que emergiram com mais visibilidade nos últimos anos. Mas o filme histórico carrega em geral uma barreira financeira muito complexa de ser dissolvida, custa dinheiro, arte, fotografia, locações. Isso toca aquela questão do “poder falar de tudo”. A Thomas de certa maneira é alguém numa posição que pode propor projetos com uma ampla gama de de características e viabilizá-los financeiramente. De uma maneira geral, o filme parece ter sinalizado uma transição, uma movimentação. Que não sabemos claramente no que vai dar, por conta do risco institucional, em especial da Ancine e sua associação com o grande capital audiovisual, as grandes produtoras e players, em detrimento dos médios e pequenos, que é a faixa que trouxe novidades estéticas e políticas pro panorama na última década, amplamente ligados a políticas públicas de inclusão no âmbito educacional, cultural e, portanto, existencial. Caso estivéssemos num cenário sem ameaça de brusca ruptura institucional, eu diria que o cinema brasileiro que vem daria uma resposta muito vigorosa à discussão sobre o colonialismo em nível mundial. Está difícil apostar quem poderá estar filmando daqui a 5 anos com condições dignas. A Daniela Thomas provavelmente poderá, mas nem isso podemos ter plena certeza. É um momento muito delicado. Porque estamos na iminência de um lindo salto qualitativo ou de um retrocesso brutal, em termos principalmente de financiamento e viabilização. Entretanto, as ideias, é difícil de tirá-las do mapa. As discussões estão na rua. Mesmo com o governo autoritário e miliciano, uma certa energia de ideias, de certas conexões, não deixarão de se fazer. Mas a questão é se as instituições vão catalisar isso ou vão se contrapor.
Mais recentemente, o debate em torno da representação do negra e da negra no cinema brasileiro tem ganhado espaço no universo acadêmico, confrontando a historiografia clássica do nosso cinema com um olhar profundamente eurocêntrico e/ou americanizado senão branco e excludente. Por outro lado, a questão da auto-apresentação, faz despontar inúmeros jovens realizadores negros e negras, ou afrobrasileiros, que não só questionam a representatividade - do ponto de vista cultural e imagético - mas a participação efetiva na produção do filmes, imprimindo um olhar “de dentro”. Como você observa esse processo?
É uma questão complexa. Não acho que a auto-apresentação fez os novos realizadores despontarem. Isso é resultado de amplo número de ações. Como a política de regionalizar os recursos, as políticas afirmativas na educação e na cultura e o apoio mais dedicado os profissionais estreantes ou em começo de carreira. Enfim, não se pode contar a história do cinema brasileiro tirando os negros da cena. Para começo de conversa, no mínimo dois dos maiores atores do nosso cinema, dois gigantes que mudaram uma gramática no cinema, Grande Otelo e Antonio Pitanga, são negros. É necessário uma historiografia que faça justiça em especial à contribuição estética que estes criadores imprimiram no que viria a ser o cinema brasileiro depois deles. Desde o final dos anos 40 temos diretores negros trabalhando. E ainda há uma discussão sobre as características raciais do Luis de Barros, um dos maiores cineastas do período inicial do cinema brasileiro. O avança da discussão racial no cinema brasileiro precisa ser acompanhando de um intenso esforço de requalificação da história do nosso cinema. É crucial militar em relação ao passado. Trazendo à discussão artistas negros em relação aos dilemas de seu contexto. Temos exemplos em todas as décadas. Não podemos olhar a história buscando situações idealizadas, cada tempo tem seus limites e possibilidades de avanço. Não devemos temer as ambiguidades, por exemplo, do diálogo com as tradições de matriz africana no cinema de Glauber Rocha, por exemplo. È possível fazer isso sem idealização, nem ímpeto puramente destrutivo. Porque nesse caso há um diálogo muito rico que vai bem além do campo temático. Era um artista buscando uma epistemologia descolonizada. São perguntas muito atuais. Entretanto, se você pegar algumas falas e textos, elas expressam também os limites de seu próprio tempo. E algo que convenientemente passou despercebido em épocas passadas, hoje grita: não é possível que negros e negras estejam tão flagrantemente distantes das funções de maior poder criativo no campo do cinema. Isso atravessa um festival de cinema, mas também a SOCINE, ao circuito comercial ou à crítica, é geral. Então, a missão é estender o raciocínio político à questão de que corpos ocupam espaços de decisão, de movimentação efetiva do campo. Não acredito exatamente nesta ideia do “olhar de dentro”, porque ela parece supor uma repetição literal da experiência vivida e do que imprime na tela. Pra mim, ela implica em um certo essencialismo, em uma certa uniformidade, que vendo os filmes que estão saindo , não consigo verificar. Entretanto, na medida em que você amplia o perfil de classe, raça, território, de quem faz filmes e consegue circular, é natural que apareçam contribuições perspectivas inéditas, material subjetivo muito novo e rico. O que quero dizer é não é que tanto faz quem faça um filme, mas o resultado da riqueza de ampliarmos as oportunidades institucionais de poder produzir ele será sempre deliciosamente inesperado. Devemos desejar o inesperado e não uma confirmação, como efeito dos avanços. Não espero que negros venham falar de raça, ou que indígenas venham me mostrar rituais que não conheço, espero que eles possam fazer minha forma de ver o mundo virar do avesso, de um jeito que eu não imaginava. A tarefa do artista continua a mesma, e sempre renovada.