Uma selvajaria civilizacional [o caso da Escola Portuguesa da Praia]
Hoje, dia internacional da língua materna*, volto à liça com um novo artigo de denúncia da violação continuada dos direitos linguísticos (logo, direitos humanos básicos), protegidos constitucionalmente (artigo 9, ponto 2, da constituição da República de Cabo Verde), por uma entidade estrangeira, a Escola Portuguesa da Praia.
O caso, que volto a denunciar (depois de tomar conhecimento dele através do jornal cabo-verdiano A NAÇÃO, nº 785, de 15 de Setembro de 2022) é o da proibição pela Escola Portuguesa da Praia, entidade estrangeira autorizada pelo estado soberano de Cabo Verde a ministrar o ensino do programa/curriculum oficial português em território cabo-verdiano (Despacho nº 41/2016 do Ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades, página 1284, II Série, nº 43, B. O. da República de Cabo Verde, 24 de agosto de 2016).
Sucede que, desde a sua implantação, inflada dos seus fantasiosos pergaminhos de superioridade civilizacional, aceite pela grave alienação identitária ou simples inconsciência dos pais e encarregados de educação cabo-verdianos, a Escola Portuguesa, na pessoa da sua diretora, Susana Maximiano, decretou a proibição do uso, pelos alunos cabo-verdianos, da língua cabo-verdiana no estabelecimento, inclusive nos espaços e tempos de lazer. O facto, jurídico e diplomático, é que a Escola Portuguesa não goza de estatuto de extraterritorialidade, logo está sujeita às leis cabo-verdianas, mormente as emanadas da Carta Magna, a constituição da República de Cabo Verde, que no artigo 9, número 2, decreta, perentoriamente «todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.» O seu atropelo e violação, reiterada, pública e assumidamente terá de levar, necessariamente, a uma tomada de posição, diplomática ou outra, por parte de um estado soberano digno desse nome.
A República, que em matéria relacionada com a língua nacional cabo-verdiana se tem pautado por gritante laxismo e imperdoável omissão, inclusive constitucional, terá a moral, sobretudo a coragem para tomar a atitude que se impõe, dado que a autorização concedida para a instalação da Escola Portuguesa não implica a violação descarada e altaneira de um direito humano básico das crianças e dos jovens cabo-verdianos: o de falarem, sem qualquer mordaça supremacista neocolonial, a sua língua materna, esteio e veículo da sua identidade primeira?
Por ser público, confesso e continuado o crime, pois que de um direito natural se trata, não precisando de estar positivado em qualquer dispositivo legal (mas neste caso está plasmado na Lei Magna da República, a sua constituição), irá o senhor Procurador Geral da República, pressuroso defensor do Estado de Direito, tomar as providências cabíveis, ainda que a desoras? Não o creio (queira o diabo que ele me desminta), porquanto é toda a elite cabo-verdiana (uma minoria, é certo, que os últimos dados da Afrosondagem sobre a questão linguística em Cabo Verde colocaram em sobressalto e alvoroço) que está interessada em manter um estatuto de diferenciação (e de subalternidade da língua materna cabo-verdiana), que é uma das razões da instalação da Escola Portuguesa em Cabo Verde, estado que se notabilizou desde os alvores da sua independência política, em 5 de julho de 1975, precisamente pelo seu ensino público universal, ainda que com alguma queda nos anos mais recentes, mas esse não é um fenómeno exclusivo de Cabo Verde.
O português em Cabo Verde, uma herança viva do processo histórico, será, soberanamente, aquilo que os cabo-verdianos queiram que seja, quer nos seus modos pragmático-funcionais, quer na sua feição literária. Curioso, para não dizer sumamente caricato, é no momento em que a maré social virou inexorável e decisivamente a favor da institucionalização da língua materna cabo-verdiana, como é dever de um estado civilizado e cumpridor dos direitos humanos mais básicos, apareçam iniciativas vindas de quadrantes que nunca sopraram uma única vírgula (nem em simples peido se manifestaram) a favor da sua língua de sangue, em prol da consagração da língua segunda, e por vezes de herança, como património imaterial de Cabo Verde. Nada contra, bem pelo contrário, contudo, não há maior rabo com gato de fora nesta iniciativa. Como disse há algum tempo «é connosco, os impenitentemente crioulófonos, nós os resolutamente lusógrafos, com o nosso espírito bailando entre duas (ou mais) bandeiras linguísticas que o bilinguismo efetivo trilhará as estradas do futuro na imortal pátria dos nossos ancestrais, e que esperamos continue a ser dos nossos filhos, ainda que espalhados no mapa, ou caminhando sobre a terra.»
Não devemos fazer das nossas particularidades identitárias, mormente a linguística, um armário de pequenez e vaidade nacional. Nação peri-africana, saheliana e insular, Cabo Verde deve encontrar formas criativas de se relacionar com a África e com o mundo, mas não é alienando práticas diplomáticas históricas, tidas como justas e proveitosas no quadro da nossa pertença e vizinhança africana, como o reconhecimento do direito à autodeterminação do povo sarauí, no quadro da ONU, nem com a negação da sua atormentada história (matéria do meu próximo livro), como fez há poucos anos o atual primeiro-ministro, torcendo quinhentos anos de sangue e sujeição e transformando-os em amistoso e fraternal convívio entre senhor e escravo, entre colono e colonizado, entre dominador e dominado, entre opressor e oprimido, que é o quadro histórico da relação entre Cabo Verde e Portugal, entre portugueses e cabo-verdianos, até às vésperas de 5 de julho de 1975.
Mais: não é vendendo a soberania nacional, ou simplesmente hipotecando as suas prerrogativas, que seremos respeitados pelo mundo. Portanto, urge pôr cobro a tamanha selvajaria civilizacional e humilhação nacional, a tal nefando crime e tão inaceitável violação da soberania territorial cabo-verdiana. Fá-lo-á Portugal da única forma que entendemos razoável, demitindo a diretora da Escola Portuguesa, Susana Maximiano, e pedindo desculpas aos cabo-verdianos?
Fá-lo-á Cabo Verde, se assim não se proceder, denunciando o protocolo que permitiu a instalação da Escola Portuguesa? Não o creio, volto a reiterar, porquanto o estabelecimento da Escola Portuguesa visa objetivos, legítimos da parte do estado português, que não estão à vista; e da parte de Cabo Verde (de alguns dos seus governantes) e da sua elite lusotropicalizada há um assinalável grau de ressentimento pela devolução do destino histórico aos seus filhos, o povo soberano das ilhas meso-atlânticas.
Nós cá aguardamos com o nosso inconformismo, a nossa lucidez e radicalismo de poeta. Esperando também que, por exigirmos respeito e dignidade na nossa terra, nos apodem de sermos contra a língua portuguesa. Que lhes apodreça a língua peçonhenta, ou a obra consistente que venho edificando em tal idioma (de Luiz, José, e de Luís, de Camões) lhes caia sobre a boca mentirosa e inculta, até que ela se transforme em simples lodo.
NECESSÁRIO POST-SCRIPTUM ILUSTRADO POR OUTROS CASOS DA MESMA INDISFARÇÁVEL NATUREZA BEM COMO ASSINALADOS CASOS DE LOUVOR E GLORIFICAÇÃO
O caso da Escola Portuguesa não é com as línguas europeias diferentes do português (se os alunos cabo-verdianos falassem inglês, espanhol ou francês seriam impedidos de se expressarem nesses idiomas?), é, historicamente, com esta nossa língua materna em particular, porquanto no campo da disputa pela hegemonia social ou formal ( e porque terá de ser isso, e não um equânime e saudável relacionamento e complementaridade?) sabe que a língua cabo-verdiana leva vantagem quer no campo simbólico, quer no utilitário-instrumental.
Um deputado português ligado à atual maioria governativa em Portugal, e bom amigo de Cabo Verde, com quem abordei esta questão, disse-me espirituosamente: poeta, não leves este assunto tão a peito; em todos os países existem dez por cento de «malucos», e este affair deve ser obra dessa gente. Ao que lhe respondi: no que tange a mim, nesta matéria, a mim têm-me saído ao caminho os cem por cento desses dez.
Senão vejamos: há sensivelmente cinco anos, num périplo literário por alguns países da América Latina, num jantar oferecido a mim e à escritora Lídia Jorge, o representante diplomático de Portugal chamou-me para ao pé dele, iniciando conversa sobre a questão linguística cabo-verdiana, dizendo-me se não achava eu que Cabo Verde estava a ficar demasiado crioulizado. A primeira parte da resposta, por totalmente antidiplomática, não a reproduzo aqui, mas concluí dizendo que a sua observação equivaleria dizer que por se falar português em Portugal o país estava demasiado aportuguesado, o que seria um dislate monumental, se dito por um nacional, e uma afronta ou ignorância tremenda, se dito por um estrangeiro. Ainda tentou retorquir que não era bem aquilo que queria dizer, mas fiquei a perguntar-me como é que naquele contexto, dito a mim, cujas posições sobre este assunto são públicas e conhecidas, um diplomata experimentado não teria querido dizer aquilo que disse com todas as letras.
De teor ainda mais grave foi o que me sucedeu há dois anos quando a representação da União Europeia em Cabo Verde (tendo sempre à frente um natural da antiga potência colonial, Portugal) encomendou a uma empresa portuguesa um livro para celebrar determinado número de anos do Acordo de parceria especial Cabo Verde/União Europeia, ou o estabelecimento da sua representação em Cabo Verde, não tenho presente agora qual dessas efemérides. A tal empresa pediu aos escritores cabo-verdianos contactados que recontassem uma estória tradicional cabo-verdiana. Eu escolhi recontar não uma, mas escrever um texto onde Nhu Lobu (re)contasse as suas vastas e atoleimadas peripécias, dado que ele nunca contou a sua história. E dado que Nhu Lobu não fala português, a sua fala teria de ser em língua cabo-verdiana.
Tudo acertado, e como o texto iria ser traduzido para inglês, e o tradutor não dominava o cabo-verdiano, acedi fazer uma versão portuguesa para esse fim, não importando que a publicassem, desde que o texto de referência em língua cabo-verdiana fosse também publicado. Algum tempo depois a empresa avisa-me que o livro ia sair, mas apenas com o texto em português e inglês. Por mim, nada feito: ou saía o texto em cabo-verdiano, ou retirava-me do projeto. Este relato chegou-me em segunda mão, dado que nunca contactei com ninguém da representação da União Europeia, mas esta atitude é tão plausível, tão vista e recorrente, que não me custou a acreditar nela, até porque quiseram censurar a parte da estória do lobo onde ele teria arrancado as mamas a uma toninha ou baleia que o teriam salvo ou dado uma boleia, consoante as versões. Quem teria interesse que o cabo-verdiano não aparecesse como língua do território? Um inglês, alemão ou holandês não teriam nenhum problema com isso, mas no caso foi uma portuguesa.
[Essa encomenda acabou por dar origem ao livro É Ka Lobu Ki Fase, em cuja estrutura as peripécias acima descritas acabaram por entrar].
Ciclicamente aparecem sumidades portuguesas a botar faladura sobre política linguística em Cabo Verde num certo jornal da praça, sempre o mesmo, que atualmente parece mais um cinzento boletim oficial, do que um jornal que reflita o antagónico pulsar da vida social, política e cultural.
De uma das vezes foi o Morais Sarmento, cuja competência em matéria linguística deve resumir-se aos discursos no parlamento, ou torcer a lei, legitimamente, para o lado de quem lhe paga mais. É a chamada «hermenêutica do carcanhol».
Duma outra vez foi uma historiadora portuguesa, Maria de Lurdes Caldas, que em entrevista ao mesmo citado jornal, e sempre pelo mesmo jornalista (que nunca rebateu as mentiras, fantasias e intromissões desses portugueses), que falou em parricídio linguístico em Cabo Verde, quando historicamente é o contrário que aconteceu: a tentativa de um glotocídio, mais especificamente um filicídio linguístico, esquecendo-se, lampeiramente, que o português é o que é porque houve um parricídio linguístico, o que nunca será o nosso caso. Mas essa mentira não é original: ela é propalada e alimentada contínua e recorrentemente por certos setores geográficos e/ou culturais cabo-verdianos, esses onde a suposta diluição de África os faz pretender serem aquilo que nunca serão. Bastaria meia dúzia de dias nesta Europa de todas as fronteiras, todas as xenofobias fenotípicas e culturais para perceberem o que são e a que mundo identitário pertencem.
É certo que a língua portuguesa se encontra num estado lastimável em Cabo Verde (mas a cabo-verdiana está ainda bastante pior), porém o estado crítico em que se encontra também em Portugal é porque os portugueses querem acabar com ela, ou será ainda culpa desses parricidas cabo-verdianos e seus descendentes guetizados que mantêm a sua língua materna ou de herança como a mais alta das bandeiras?
Mais recentemente, em janeiro deste ano, durante o lançamento do livro bilingue de poesia para adultanças, De Neve e de Bruma|Di Nevi i di Serason, o primeiro do género na literatura cabo-verdiana, voltei a abordar a candente e inaceitável questão da Escola Portuguesa. Atordoada ou agoniada pela contundência da minha intervenção, uma senhora (que vim a saber depois ser portuguesa e professora na referida escola) não se conteve, interrompendo-me dizendo que tinha vindo para um lançamento e não para ouvir política. (Vejam a pobre defesa da patifaria, mas ele há oportunidades que nos caem do céu, pois naquele momento eu tinha ali um alvo materializado na minha frente). Com recrudescida contundência, de pé, disse à criatura que não permitia que me interrompesse, e que, ademais, eu sou um homem livre, que expresso e digo o que bem entender, aonde for, sobretudo na minha própria terra. Que mordaças ela coloca nos alunos cabo-verdianos da escola portuguesa. Que ela tinha duas opções: ou se calava, e ouvia, ainda que agoniada, ou fizesse o favor de abandonar a sala; e assim fez, ladeada por mais duas comparsas. Já fora da sala, ainda a ouvi remocar «depois vão pedir vistos para Portugal.»
No final da sessão, alguém foi comentar comigo que tinha achado aquilo estranho, pois a senhora era a portuguesa mais cabo-verdiana que conhecia na cidade da Praia. Pois, cabo-verdiana enquanto não apareceu um pretinho atrevido e furibundo a disputar-lhe o poder da fala, a despi-la do privilégio da branquitude e da condescendência neocolonial de quem se acha ridiculamente acima, podendo até presumir-se a mais cabo-verdiana de entre os da sua laia. Bastou ter-lhe sido retirado o privilégio da voz para reencarnar a sua condição de branca e europeia, ameaçando num incontido furor racista «depois vão pedir vistos para Portugal», pois, apesar da minha pele negra, a criatura não sabia quantas ou que nacionalidades possuo. Posso declarar aqui que apenas uma, e com que tremendo orgulho.
A constante de todos estes casos (maluquices, chamar-lhes-ia o bom do deputado) é haver um português pelo meio. São eles a única comunidade estrangeira em Cabo Verde a não querer aprender a falar a língua cabo-verdiana, na presunção (auto ou inculcada pelo rebaixamento dos próprios cabo-verdianos) de que o português é língua do território.
Contudo há notabilíssimas e gratas exceções académicas e científicas como Francisco Adolfo Coelho, autor do estudo pioneiro «Os dialectos românicos ou neo-latinos em África, na Ásia e na América Latina, publicado na Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1880, revista essa que também publicou em 1888 os «Apontamentos para a Gramática do Crioulo que se Fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde», do cabo-verdiano António d’Paula Brito, que propôs para a escrita do cabo-verdiano um moderníssimo alfabeto de base fonético-fonológica (muito antes da existência formal da ciência da fonologia), muito próximo do alfabeto hoje utilizado oficialmente para a escrita da língua cabo-verdiana. De louvar também é o incansável magistério de incontáveis portugueses, que aqui personifico na pessoa da professora reformada, Dulce Pereira, que têm dado um inestimável contributo científico para a dignificação da língua cabo-verdiana.
Outras notabilíssimas exceções, populares desta vez, são o português algarvio e poeta em língua cabo-verdiana conhecido por Ariki Tuga, autor do livro «Kauberdi Sen Mantxontxa», publicado ainda no antigo alfabeto fonético, mais conhecido pelo «alfabeto do chapéu», com o qual gozávamos na minha juventude dizendo que nem em «tira-chapéu» tirava o chapéu (depois, com o pseudónimo Badiu Branku publicou o livro Kunba, inteiramente vazado em ALUPEC) e o meu amigo Carlos Português, frequentador da taberna do Juvino na Fazenda, papiador di kriolu sima ki el prende-l na bersu. (Um caso extraordinário de adaptação linguística são os chineses, essencialmente comerciantes, dominando em tempo recorde quase todas as nuances sociais da língua cabo-verdiana).
Vimos pelo Facebook o gáudio e o furor com que a Escola Portuguesa da Praia comemora os novecentos anos (e o dia) da língua portuguesa. Razão? Há séculos atrás houve um gesto visionariamente soberano de um rei declarando o português língua do Reino de Portugal e dos Algarves, em detrimento do latim. Com a sua atitude civilizacionalmente monstruosa, cognitivamente ignorante, pedagogicamente torpe, territorialmente ilegítima, diplomaticamente invasiva e violadora, culturalmente castradora e humanamente desprezível, a Escola Portuguesa tenta negar esse mesmo legítimo direito de soberania à língua cabo-verdiana.
Eis porque volto a perguntar: permiti-lo-ão os cabo-verdianos livres e conscientes? Continuará a permiti-la uma nação que se crê fundada no valor universal da liberdade e da dignidade humanas, logo extensíveis a todas as esferas da vida em comunidade, nação essa nascida do crime inumano e torpe da escravatura, da sujeição e da denegação da dignidade de povo, coisa que jamais deveríamos voltar a permitir, sob que pretextos ou forma for?
Há pouco tempo os jornais portugueses noticiaram fartamente e com assinalável alarido a agressão à chapada que a diretora da Escola Portuguesa, Susana Maximiano, tinha sofrido, tendo apresentado queixa junto das autoridades competentes. Fez ela muito bem, pois Cabo Verde é (ou deveria ser) um país de lei e justiça, e por isso repudiamos qualquer tipo de agressão ou coação física (ou psicológica, como tem estado a acontecer com os alunos cabo-verdianos da EP). No entanto, a senhora Susana Maximiano e a Escola Portuguesa vêm esbofeteando contínua e impunemente, com a conivência duma elite bronca e sem brio identitário ou de cidadania, milhares de cabo-verdianos, perante a placidez das autoridades, que se fingem adormecidas, porquanto todos têm (ou ambicionam ter) filhos, netos, sobrinhos, et caterva, nesse estabelecimento de industriação neocolonial. Que lhes faça bom proveito. Contudo, não nos deixamos de interrogar: até quando? A desfaçatez é tanta que, confessa a senhora Maximiano, apesar da proibição, os alunos transgressores não sofrem castigo. Gratos somos pela vossa iluminada magnanimidade, senhora Maximiano, pelo menos não voltamos aos tempos das grilhetas e da chibata colonial, mesmo se outras pouco subtis chibatas tentam domar ou amesquinhar ainda a nossa identidade secular.
Convém dizer aqui também que diante das novas histerias identitárias, e do seu pendor bastas vezes absolutizante e retrógrado, mãe dos genocídios mais hediondos, convém declarar, axiologicamente, o primado da humanidade. Contudo, ao indivíduo como ser em devir, deve subjazer aquele núcleo irredutível de traços distintivos, sobretudo em agregados humanos e civilizacionais de formação historicamente recentes e politicamente saídos de situações de dominação colonial, dentre os quais a língua autóctone, que constitui, sem sombra de disputa, o traço primeiro da sua singularização e autonomização política e cultural.
Este manifesto é antes de tudo uma acusação ao estado cabo-verdiano, por permitir tal monstruosidade humana, tal selvajaria civilizacional, tal desconsideração cultural, tal violência e humilhação aos cabo-verdianos e à sua soberania nacional. É ainda contra os cabo-verdianos, novos ou velhos lusotropicalistas ou tropicalizados, perdidos nas brumas da alienação e outras derrotadas ilusões históricas.
Não vale a pena pedir um assomo de dignidade, autoridade e orgulho pela soberania nacional, porque, digo-o de novo, todos têm lá os filhos, sobrinhos ou netos. Até o cão de companhia mandariam para lá, se o aceitassem: olha o cão, tão civilizado que até fala o português!
Que fará diante desta nova denúncia o Presidente da República de Cabo Verde, ele que na ordem interna é o garante do cumprimento da Constituição da República, e na ordem externa é o Representante Máximo do estado cabo-verdiano? Que fará o Presidente de Portugal? Obrigará o Governo português a demarcar-se publicamente o quanto antes (e já é tarde!) dessa horrenda façanha, com as respetivas consequências de demissão da direção da Escola Portuguesa e o banimento dessa prática que não cansaremos de apelidar de monstruosidade civilizacional?
Não tenho grandes nem pequenas expetativas ou ilusões. Só espero não restar apenas a indignação solitária deste pobre poeta vivendo aqui na boca do lobo, onde até pode sofrer represálias, mas não cedendo a vez nem calando a voz quando é a dignidade humana e a soberania que são espezinhados por esse continuado e vil ato anticivilizacional que desonram tanto Cabo Verde como Portugal por o permitirem.