A Tanga Rota da Pandialetalidade [ou os propósitos supremacistas/bairristas de dona Dominika e suas nacionais e desalmadas ajudantas, ora erigidos como vera língua do povo das ilhas]

     1.

Acabo de regressar ao meu exílio criativo em Portugal, de Cabo Verde onde fui lançar um livro, uma compilação de escritos de combate em defesa da língua cabo-verdiana, mais concretamente contra o supremacismo linguístico interno e externo, filho do lusotropicalismo amargurado e da grave alienação identitária duma certa franja do povo das ilhas. 

Como sempre nos últimos tempos, deparei com tentativas de silenciamento mediático, rompidas, porém, por dois órgãos de comunicação nacionais e a agência de notícias cabo-verdiana, apesar de, a contrário, e nem por acaso, o autor ser o único a ser procurado por órgãos estrangeiros e ouvido lá fora, naqueles dias, no meio das muitas atividades comemorativas do dia internacional da língua materna. Meditem eles sobre isso, se quiserem, que este escritor segue imperturbável na sua senda, na perseguição dos seus propósitos, quer literários, cívico-identitários, ou, mais latamente, civilizacionais .

     2.

Depois da selvajaria civilizacional da Escola Portuguesa, temos os delírios [pan]dialetais da dona Dominika (acolitada, é certo, pelas nacionais e brasilenhas ajudantas Eliane Semedo, Elvira Reis, Maria do Céu Baptista, e ainda por duas parteiras-ajudantes, cognominadas de revisoras científicas, Amália Melo e Ana Karina Moreira), ainda que patranhosamente revestidos de celofane científico, pago a peso de milhões do Banco Mundial, que depois todos nós, os pobres cabo-verdianos, teremos de desembolsar.

Curioso é que sempre que a selvajaria é praticada por europeus na nossa terra querida, contra o nosso povo e a sua língua, essa selvajaria é apodada de ciência. No caso da Escola Portuguesa chamou-se «imersão linguística». No caso deste pulakes-kabverdian dá pelo pomposo nome de pandialetalidade (que mais à frente demonstraremos não ser pan coisa nenhuma, mas apenas uma variedade diatópica recente, camuflada sob tal retumbante jargão, uma enorme língua de pau para tentar enganar os incautos). E para pôr a nu o absurdo da situação e o menosprezo por todo um povo, ou uma parte significativa dele, que é o presente caso, colocamos a hipótese reversa: tal seria permitido a um cabo-verdiano na Polónia, por mais canudos doutorais que carregasse? Sim, na Polónia, um dos países mais nacionalistas e xenófobos do mundo, sobretudo em relação a africanos ou deserdados doutras partes do planeta, onde foi impedida a entrada a estudantes africanos que fugiam da guerra, aquando da invasão russa da Ucrânia. Voltamos a perguntar: tal seria permitido a um cabo-verdiano em tal terra?

Para que não se fuja à acusação contundente que é feita em todo este artigo, vindo apodar este poeta indignado até ao tutano de xenofobia, este cuja poesia é um exemplo reconhecido de hospitalidade cosmopolita, e, vivendo ele há quase quatro décadas em terra alheia, tem sempre presente estes versículos do Deuteronómio 23:11 «não oprimirás o estrangeiro (…) porque também fostes estrangeiros na terra do Egito», devo eu declarar ainda que três dos meus grandes mestres em poesia são, nem por acaso, polacos: Wislawa  Szymborska, Zibgniew Herbert (o único livro que levei comigo para Cabo Verde nesta última viagem foi a tradução para português dos seus Poemas Quase Completos) e Adam Zagajewski, autor também desse notável «Sobre o Fervor» (fervor que é apanágio deste poeta, como vê se neste artigo), em que ele desenraíza a criação literária e reafirma a literatura como um conjunto de peças moventes que orbitam os sujeitos, a dúvida, as democracias e a presença, e onde ele nos ensina que «talvez, o verdadeiro fervor não divida, mas una. E nem leve ao fanatismo, nem ao fundamentalismo»(…) Talvez algum dia o fervor volte às nossas mentes». E ainda esse grande e inclassificável mestre da iconoclastia, Witold Gombrowicz, autor desse brutal desmonte lírico que é a conferência «Contra os Poetas», e cujos diários, um misto de reflexão filosófica, panfleto político, testamento existencial e porrada ética acompanham-me para todo o lado. Portanto, por essa porta não haverá escapatória. 

Se grandes estudos científicos e engajamentos têm vindo, inegavelmente, de estudiosos estrangeiros, senão veja-se o caso desse notável estudioso que é Jürgen Lang (cuja parte da sua monumental gramática ainda não traduzida deve ser uma prioridade nacional nos próximos tempos), ou o caso das portuguesas Dulce Pereira, Nélia Alexandre ou Fernanda Pratas, dentre outros, do francês Nicolas Quint, grandes patifarias também têm vindo de certas personagens estrangeiras, ainda que naturalizadas, vivendo na nosssa terra, como é o presente caso, ou de instituições cá sediadas, como é o caso da Escola Portuguesa, ainda que nesses dois casos devidamente acolitados ou incentivados pela alienação identitária, ignorância ou indignidade nacionais, ou simplesmente a subjugação a interesses comezinhos.

                                                  3.

Não sou cientista da língua cabo-verdiana, nem técnico, teórico ou coisa que o valha,  nem carrego retumbantes canudos doutorais, mas apenas alguém abalizado no seu uso, quer pragmático-funcional, quer na sua faceta mais sublime, e que, por isso mesmo, consegue cheirar quando lhe querem impingir (e a toda uma nação) absurdas patranhas bairristas por ciência, ou o querem simplesmente comer por preto parvo (nem falo dos três «b» de ignóbil memória).

Porquê este preâmbulo? 

Acontece que por estes carnavalescos dias uma trupe benzidamente científica, bastamente canudada, louvara a deus, apresentou à sociedade cabo-verdiana, com luzentes pompas ministeriais, num invólucro ataviado que dá pelo nome de Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana (10º ano), um bicharoco batizado de pandialetalidade. 

Nós, sempre ansiosos por conhecer novas espécies doutros ou mesmo deste nosso universo, exultamos naturalmente. Supusemos que o bicharoco, dada a denominação estrambótica, fosse espécie alienígena. Contudo, ao desataviarmos o invólucro, com cuidado, não fosse o bicho morder-nos, deparamos com um bicharoco de espécie nossa conhecida, engendrado nestas plagas meso-atlântico-sahelianas, que uns querem rotundamente africanas, outros placidamente macaronésias, outros ainda manhosamente europeias. Conhecemos-lhe a anatomia  e a fisiologia, certa semelhança de família, idade e local de nascimento. Tudo pacífico, não se desse o caso de à espécie, perfeitamente reconhecível, ainda que com traços alienígenas, ter sido atribuída, ilegítima e abusivamente, por uma testa polaca, acolitada por nacionais e desalmadas ajudantas, a faculdade de reunir os atributos de todas as outras espécies endémicas existentes, doravante com direitos de precedência e soberania sobre todas, incluindo a mãe matricial, que passariam à situação de clandestinidade ou desterro, mesmo na sua pátria de origem, deitadas assim aos limbos e monturos da história.

                                       4.

Isto parece o início duma fábula, mas garanto-vos que não é. É só o preâmbulo a uma mui séria fantochada carnavalesca, contudo com consequências sociais bem reais, e que as suas autoras (nacionais e estrangeiras) sequer conseguem antecipar. A não ser que o propósito fosse mesmo esse, mas tenho de cogitar a hipótese de estas aranhas de laboratório não terem pesado a gravidade que esta tentativa de golpe encerra. É o único desconto que terão – e já é muito – porquanto agiram maliciosamente, com premeditação e dolo, à socapa e com traiçoeiro propósito, contra um povo, uma nação e civilização, resumidos na sua língua natural.

Não permitiremos o assalto e o confisco, ainda que por quadrilhas canudadas compostas por pomposas cabeças mecânicas (como Kant lhes chamaria) nacionais e estrangeiras, dos legítimos e inalienáveis direitos linguísticos da grande maioria do povo destas ilhas. Ainda que fosse uma minoria, como implausível e patranhosamente se quer inventar, não seria aceitável, porquanto direitos básicos e inalienáveis não são uma questão de números. Se quase todos se calam por cobardia, alienação ou ignorância identitária, ligações ou quiçá interesses, materiais ou outros, haverá sempre dois ou três que farão ouvir a sua voz. Eu estarei alevantado entre eles, para dizer que a tanga rota, malcheirosa e mal-enjorcada da pandialetalidade, nós os cidadãos conscientes destas ilhas do meio do mar e suas diásporas não a vestimos. Então, pés ao caminho, que a jornada é dura, o trajeto pedregoso, mas sumamente gratificante por o propósito ser cívico, e não para nenhuma glória pessoal, que este que escreve dispensa perfeitamente.

                                               5.

Creio não me equivocar demasiado se disser estarmos, neste caso concreto, em presença duma verdadeira patologia científica: um abuso de um suposto conhecimento, e um desvio ao propósito para que foram contratadas. Mas é a longa manus do bairrismo supremacista, no seu avatar polaco-brasileiro e cabo-verdiano-nortenho, que mais consterna neste gravíssimo caso. Uma inaudita tentativa de assalto aos direitos dos naturais falantes do idioma destas ilhas, um escabroso e escandaloso caso de polícia e de psiquiatria forense, em suma, uma panbarbaridade, uma violenta violação que o povo destas ilhas não consentirá nem engolirá, nem embalada e edulcorada pela cantilena duma pseudociência na sua desfaçatez divisionista, para melhor atingir os seus objetivos supremacistas. Isto é apenas um prolegómenos do que farão no futuro, se consentirmos agora esse veneno bairrista, ainda que sob a capa de experimentação e com o selo de ciência.

O caminho da liberdade, igualdade e dignidade linguísticas não pode ser trilhado sob a bota retumbante da desonestidade, nacional ou estrangeira, ou com a bússola dos interesses supremacistas/bairristas, de uns poucos, diga-se em abono da verdade, que configuram uma autêntica traição à causa. Mas estava escrito que um tempo viria em que o combate seria entre combatentes, pela definição e não instrumentalização dessa mesma causa. Possivelmente, nem combatentes são, mas apenas gente a fazer naturalmente pela vida, sem os devidos escrúpulos, numa matéria que tem tremendas consequências sociais e civilizacionais, e por isso deveria ser mais do que fonte de alimentação de egos, currículos ou estômagos. 

A contrário, é a minha razão para este tipo de enfrentamento: a ausência de qualquer tipo de ambição, o que me torna completa e desassombradamente livre, ainda que sempre clandestino na ditadura do mundo. Nem aquilo que me fez conhecido foi uma ambição minha, mas apenas simples necessidade. Ainda que fosse, há um momento na vida em que um homem tem que escolher uma causa maior do que a soma de todas as suas legítimas ambições. Nem preciso de dizer que o meu lugar, quer no âmbito estrito da literatura cabo-verdiana, ou no da língua portuguesa, está, sem falsas modéstias, definido. Pelo que o engajamento neste combate, hoje pela clarificação, não visa nenhuma glória pessoal, mas tem como premissa e esteio um chamamento cívico, comunitário e civilizacional.

                                               6.

 Nestas ilhas sempre se fez da natural variação linguística um bicho de sete cabeças, para vir culminar agora neste golpe contra a matriz histórica e a pluralidade dialetal da língua cabo-verdiana, contra a demografia e a natural prudência social e científica que deve guiar todos numa questão de tão alto melindre, pelas suas repercussões presentes e futuras, e que, neste caso, cabe ao poder soberano pôr travão imediatamente, porquanto essa inusitada engenhoca linguística, engendrada por umas mentes mecânicas, cospe na antropologia, na história e na sociologia destas ilhas.

Agora se percebe porque era necessário afastar o Manuel Veiga das cercanias da ALMA. Provavelmente a marosca já estava pensada, e precisavam apenas da presença de uns crédulos para dar ares de seriedade e abrangência à coisa. Esses que aderiram em genuína boa-fé devem mostrar agora a essa gente que estava enganada, que não são cegos acólitos desta missa malsã, e pôr também travão desde dentro a esta traição organizada. Também o senhor ministro da educação deve vir imediatamente a público descartar esse aberrante projeto incendiário, e o senhor Presidente da República deve pôr-se a milhas institucionais desta trapaça bairrista/supremacista, que é a verdadeira substância desse manual.

Na história das tentativas de dotar a língua cabo-verdiana duma grafia moderna já tivemos, entre outras originalidades, o muito gozado alfabeto do chapéu, que deus o tenha, e agora temos o monstruoso pandialeto, que só não é totalmente alienígena ou caído do céu, porquanto tem fundas raízes  no bairrismo endógeno e num projeto de supremacismo diatópico convenientemente camuflado até surgir a oportunidade do golpe. No caso de o ministério da educação insistir em prosseguir com esta monstruosidade insana, para além doutras iniciativas cabíveis, os cidadãos cabo-verdianos, pais e encarregados de educação conscientes, devem interpor ações cautelares em tribunal para proteção de direitos, e nas ilhas onde as variedades linguísticas têm realização fonética completa os professores boicotarem corajosa e ativamente o pandialeto, se outra solução entretanto não surgir.

O pandialeto é tão pan que tenho andado a fazer uma experiência (com um semimétodo que chamo de «empirismo rebelde», que bebe, nalguns pontos, no anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend) pedindo a pessoas de várias regiões do nosso Cabo Verde aqui na diáspora, pessoas de diferentes estratos sociais e culturais, diferenciados níveis habilitacionais, com ou sem conhecimentos formais da escrita do cabo-verdiano, para ler este ilustrativo naco do referido manual 

Em vinte pessoas inquiridas não houve uma única que não tenha referido a mesma ilha específica; quando não foi a ilha, foi a mesma região específica indicada como o lugar onde se falaria o suposto pandialeto. Este é o chamado, na linguagem popular, o teste do algodão, e o algodão nunca engana.

Se esse fosse o caminho (mas ainda não é o tempo), há uma variedade de confluência natural do falar do povo das ilhas, ainda assim apenas como hipótese académica, mas não se pode exigir tanto a quem provavelmente apenas domina atomisticamente, e em sede de tese (especulo), a variante mais recente dessa língua, e entregou-se apenas à comilança: comer-nos a todos por pretos parvos e aos santificados milhões com que aconchegam e confortam a pança, o que nem seria problema, desde que nos não vendessem golpe e falsificação por ciência.

Há um santo da cultura cabo-verdiana, muito invocado, e justamente, no norte do nosso arquipélago a propósito de quase tudo. Na questão linguística é convenientemente esquecido, porque escreveu uma grande verdade inconveniente: que certas variedades não poderiam nunca servir de base ou padrão, em razão da sua incompletude vocálica e do encontro consonântico áspero, lição essa que temos bem presente quando abordámos esta questão, mas as mestras falsificadoras da pandialetalidade fingem desconhecer, porque ficam sem pé, mesmo na região lá onde os fincaram manhosamente, mas não triunfarão.

O golpe diatópico, disfarçado de pandialetalidade, vem levantar uma tormenta num processo de acalmia e esclarecimento, um trabalho de décadas, que agora fica seriamente comprometido pela gula supremacista/bairrista de uns, e pela indisfarçável cobardia ou conivência de outros que, conscientes da golpada, ainda assim a acobertaram, em nome dos seus mesquinhos interesses. Mas como diz o dito popular «é tão ladrão aquele que vai à horta, como o que guarda a porta».

Como disse, há momentos na vida em que um homem está obrigado a escolher um desígnio maior do que a soma de todas as suas legítimas ambições. E o nosso hoje, abandonando o conforto de poeta reconhecido num outro idioma (vaidade por vaidade, debaixo dos céus só existe vaidade), é a língua cabo-verdiana na sua pluralidade de matizes diatópicas, que não se confunde com qualquer esquema de subtração fraudulenta dos legítimos direitos linguísticos de qualquer ilha ou parte do povo desta terra. Logo, este artigo, sendo o desmascarar duma tentativa grotesca de golpe linguístico, é também um manifesto pela pluralidade, que nem a necessidade futura de adoção de uma norma-padrão natural, ou supra/interdialetal de qualquer feição deve eliminar do quotidiano linguístico do povo das ilhas e suas diásporas. Afinal, andaram anos e anos  a agitar o inexistente fantasma da tentativa de imposição da variante/matriz de Santiago, e à primeira oportunidade (pensaram elas) foi o que se viu. O fantasma era apenas o pano vermelho para o touro (para não enxergar mais nada), ou a mão do prestidigitador que prende a atenção do espetador, enquanto a outra executa a verdadeira operação, tida por magia. Mas vão perceber, mais cedo do que tarde, que se enganaram. (Que oiçam uns versos da célebre canção «joaninha namorada», do extinto agrupamento Tulipa Negra). No entanto, terão destruído com esse ato calculado e despudorado as pontes de confiança e acalmia que se vinham construindo entre as regiões linguísticas do nosso país arquipelágico, nação una, ainda que por necessidade reconhecidamente diasporizada.


                                               7.

A cavalo do tesão da pandialetalidade (tesão foi o adjetivo com que o conhecido antropólogo cabo-verdiano, Mesquitela Lima, classificou a tese de João Lopes Filho na sua arguição doutoral na UNL-FCSH), acabaram apenas por se revelar umas pequeníssimas beatas bairristas, penosamente arrastando o jargão duma liturgia endrominante, aconchegadas pela quentura dos milhares ou milhões, numa calafetação de inanidades que farão a montra de um futuro museu de monstruosidades paridas por tais mentes polaco-brasilenhas-verdianas.

Razão tinha Fernando Pessoa quando escreveu que o deus pã não morreu. Não, passeia-se por Cabo Verde, brilhante no seu bronze polaco-brasilenho-arquipelágico, altaneiro na tanga rota da pandialetalidade, última moda em matéria de vestes linguísticas. Como pensaram que com a tese da imposição badia martelada ad infinitum já tinham amaciado os índios recalcitrantes e remetido os renitentes à defesa, as devotas desta estranha deusa ou religião (a pandialetalidade) sem sustentação na história do povo das ilhas passaram afanosamente à fase do golpe. Não imaginam elas que tempestade (de neve polaca, borrasca brasileira e cieiro destas ilhas sahelianas que tentam lançar aos nossos olhos) terão elas levantado. O pavio que acenderam há de aplacar-lhes a sede ou a gula de glória. A corda que esticaram será a corda onde se enforcarão, civilizacional e cientificamente, é claro, diante do tribunal da história e da verdade da língua do povo das ilhas, em todas as suas variedades, sem supremacismos escondidos debaixo do capotão roto da pandialetalidade, essa hidra matreira cuja cabeça polaca e imenso rabão regional/bairrista se divisa sem o auxílio de quaisquer lupas ou sofisticadas lunetas linguísticas. 

É previsível que amanhã as devotas dotóras da pandialetalidade, concitando o beatério da indignação, virão em pressurosa procissão fazer-se de virgens vítimas deste vate impiedoso, tentando assim fugir a prestar contas por este grave atropelo civilizacional. Beatas serão do seu bairrismo supremacista doentio (ainda que encarnadas em polacas, brasilenhas ou cabo-verdianas criaturas), apenas não tendo professado os votos de pobreza, da coragem e honestidade intelectuais, pois tudo se passaria doutra forma se tivessem tido a frontalidade de dizer «escolhemos esta variante ou variedade por tais e tais razões», e aí a discussão far-se-ia nessa base. Não concordaríamos na mesma, porque com toda a certeza as senhoras dotóras não receberam um mandato para estabelecer uma variedade padrão, suponho eu, nem a título meramente experimental, com que nos tentam amansar e comer-nos por tolobaskus

Os nossos filhos, sobrinhos e netos e compatriotas conscientes de todas as ilhas não serão cobaias deste antipatriótico bairrismo. Isso, a ser feito, será o culminar de todo o processo, e não um tosco, ainda que malicioso, golpe de antecipação na secretaria, ab initio, perpetrado por um grupo que se reproduz endogamicamente da Uni-cv para a ALMA, desta para o Ministério de Educação, e vice-versa, na organização de congressos e captura de fóruns, encontros, simpósios, presença nos media, etc. Mesmo na falta de chuva, que assolou a nossa terra escalavrada na última década, esta gente tem-se reproduzido prodigiosamente, louvara deus, moda gente dakel país ta dze, como se referem os mindelenses à sua querida ilha do Porto Grande e do monte cara.

                                                      8.                           

Num ponto antecedente falávamos de golpes e de vítimas. Vítimas querem tornar-nos a todos nós, os usuários naturais da língua destas ilhas. A língua natural de um povo é o seu maior tesouro civilizacional, e aquele que o perder jamais o recuperará. É à tentativa glotofágica diatópica, pouco encapotada, diga-se, que nos opomos vigorosamente, com a nossa verve de poeta, em nome do povo destas ilhas, que não nos concedeu nenhum mandato, e nem é preciso, dado que é pressuposto, por sermos naturalmente uma parte desse todo. E mesmo que recuem hoje, há que manter viva a vigilância, porque o que não conseguirem enfiar-nos agora a pronto vão querer enfiar a prazo, fatiado e dissimulado mais à frente.

A normalização linguística não compreende apenas aspetos puramente linguísticos, mas deve considerar também fatores sociais e políticos. Portanto, a codificação legal ou a escolha duma norma/variedade é reservada ao poder soberano, com o aconselhamento da ciência, é certo. O processo de normalização linguística, como as senhoras dotóras sabem bem melhor do que eu, simples poeta que sou, deve ter um carácter prospetivo de resposta ao conflito linguístico, e na sua dinâmica não deve contribuir para o acirramento do conflito, como ora fazem as mentes proponentes, as autoras materiais, as consultoras cientificadas e revisoras do manual, benza-as deus, com a sua tentativa pouco encapotada de golpe. 

A normalização linguística, se não erro, deve implicar dois processos paralelos: o social e o linguístico propriamente dito. É a confusão deliberada, com finalidades supremacistas diatópicas, que inquina todo o processo e faz com que seja inaceitável e, por isso, deve ser liminarmente rejeitado o disfarce pandialetal, sem deixar de ponderar quem deverá ressarcir o estado de Cabo Verde pelo investimento feito, se o que foi pedido foi um projeto de didatização e não de padronização, que não deve ser feito por estrangeiras contaminadas pelo bairrismo, nem apenas por nacionais usuárias naturais da variante diatópica mais afastada da matriz. O que podia ser apenas uma imprudência, quando analisada à luz de outros dados, como a tomada de posição da dona Dominika sobre a construção do Campus da Uni-cv em Santiago, revela-nos um esquema bairrista de contornos ainda mais amplos, sempre inaceitável, por profundamente ilegítimo, bastamente traiçoeiro e perniciosamente divisionista para a pátria que a acolhe. 

                                                9.

 Além da miserável falsificação científica, há outra miserável falsificação, a literária. É certo que a maioria dos linguistas são incompetentes em matéria de literatura (poderão dizer o mesmo de mim em matéria de linguística, no que estariam carregadíssimas de razão, e até podem atestá-lo neste artigo), e para ilustrar o que digo temos o facto de há poucas semanas se ter organizado um conclave na presidência da República (estive por perto, mas nem meti lá os pés, para não apanharem um susto, nem eles compareceram ao lançamento do meu livro no mesmo espaço dias depois, no que também é justa e saudável retribuição) em que se elidiu altaneiramente (diria até mais: ignorantemente) a vertente da língua como suporte da criação literária e musical, e estas como esteio da sua perenidade. Mas que fiquem sabendo, se não soubessem já: esta língua é de Pedro Cardoso e Eugénio Tavares, Ana Procópio e Bibinha Cabral, B. Leza e Nácia Gomi, Rodrigo Peres e Tibau Tavares, Manuel de Novas e Norberto Tavares, Daniel Rendall e Anu Nobu, Princezito e Jorge Humberto, Tomé Varela e Kaká Barbosa, até ao fim dos tempos, mesmo na eventualidade de já não haver povo que a fale, e não de nenhuma das novéis dotóras, por mais ungidas que venham de lustrosa ou sebosa ciência. 

Estribada no comadrio e no bairrismo regionalista, uma doença que acomete naturais e naturalizados, essa trupe maliciosa tenta trazer para o plano de escritora em língua cabo-verdiana a maior fraude literária que esta terra alguma vez conheceu. Estamos a falar da mediocríssima e façanhuda Vera Duarte. Alguém que se gaba imenso dos lugares jurídicos para onde foi sendo chutada de barganha em barganha política, mas nunca usou o alfabeto oficial cabo-verdiano, e quando muito escreveu meia mão de ridícula versalhada tribunícia/militante, montada no cavalo do género, uma mina que hoje rende louros a qualquer aldrabãozeco que invoque a condição feminina, historicamente vitimizada, é certo, nos seus risíveis ou lacrimejantes escritos. Isto num país que tem poetas em língua cabo-verdiana como Kaká Barbosa, N’Zé di Santiagu, Danny Spínola, Ymez, Tomé Varela, Princezito, Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares, inúmeros jovens que vêm escrevendo, com maior ou menor acerto, em língua cabo-verdiana, não como fácil refúgio, mas por opção consciente, ou ainda este que escreve, quer em criação direta ou na autotradução para a língua cabo-verdiana, ou ainda na tradução de clássicos estrangeiros, além dessa notável Eneida Nelly, precoce e tragicamente desaparecida. Até naqueles que reconhecemos valia, a bússola aponta sempre para o mesmo norte.

                               10.

 Escrevendo sobre todas estas coisas hoje, vem-me à memória o fórum de dezembro de 2008 que deu o agrément para a oficialização do ALUPEC como alfabeto cabo-verdiano, AK. A minha participação derivara dos muitos poemas-canções que eu publicara no jornal eletrónico Liberal (que coligidos resultaram no livro Tenpu di Dilubri, vencedor do prémio Pedro Cardoso 2009) e das traduções de clássicos portugueses, nomeadamente Camões e Pessoa, para a língua cabo-verdiana usando o ALUPEC.

Outras das razões de âmbito pessoal para essa evocação é que conheci ali a minha atual companheira, que então coordenava o fórum da parte do IPC, e também porque fiz uma das mais firmes amizades que hoje tenho: com o Tomé Varela, poeta, ficcionista e investigador em língua cabo-verdiana e introdutor desassombrado do cabo-verdiano como língua de intervenção na antiga Assembleia Nacional Popular.

Por outro lado, esta evocação é para também recordar que «chapeladas» científicas não é a primeira vez que acontecem no processo de institucionalização da língua cabo-verdiana, e só o retomo aqui porque o facto é do conhecimento público há bastante tempo.

Um dos pontos de mais acesa discussão nesse fórum foi sobre o elemento de cópula, que então era «y», e o ponto era se se mantinha tal como estava, ou se mudaria para o «i» vocálico, sendo que a economia linguística e a univocidade intrínseca do alfabeto cabo-verdiano recomendavam a mudança para «i». Tudo bem discutido e argumentado, ficou estabelecido a recomendação do fórum que se adotasse o «i» vocálico como elemento de cópula. Sucede, porém, que no decreto-lei que institui o alfabeto cabo-verdiano o «y» volta a aparecer miraculosamente, ao contrário daquilo que tinha sido a recomendação. Ponderados os prós e os contras, optámos por não levantar demasiadas ondas, dado que os estragos seriam maiores do que os benefícios. Se falo nisso agora é porque o «y», que foi de facto eliminado, através do uso, apesar de continuar na lei, foi agora repescado pelas novas padrecas da língua cabo-verdiana (nada contra os novos padres e sacristãos, seja de que género forem, pois isto quer dizer que as gerações se estão renovando) num processo cuja metodologia estamos longe de conhecer, e também para dar nota do pedido de muitas pessoas que considero e respeito vivamente e com quem tenho falado sobre esta grave patifaria, mas cujos argumentos seus de não «partir» o andor com o meu artigo, sob pena de fazer tombar também o santo, não posso acolher, pois, no presente caso, esta perpetração inominável é o cúmulo dos malefícios, e terá efeitos que nem podemos prever ainda. Que caiam os santos falsos, entronizados fraudulentamente, por estrangeiras ou nacionais, e que os cacos esvoaçantes se lhes colem às fuças para que fiquem para sempre marcadas por esta traiçoeira indignidade.

Como uma das acólitas enche a boca, a barriga e o currículo de hermenêutica filosófica, e já que estamos em maré de evocações, recomendava-lhe caridosamente a leitura ou a releitura de Wahrheit Und Methode, de Hans Georg-Gadamer, o grande institucionalizador da hermenêutica como disciplina e método propriamente filosófico, com quem tivemos o grato prazer de conversar num seminário em Lisboa, ia ele quase nos noventa anos de idade. Vale a pena a visitação ou revisitação, para esclarecer a questão do método e da verdade e suas implicações ético-axiológicas. Ou então a teoria da falsificabilidade do sempre instigante Karl Popper, um dos expoentes do ceticismo moderno.

Lembro-me de alguns participantes nesse fórum de dezembro de 2008, e recordá-los aqui hoje é uma justa homenagem, através deles, a todos aqueles que têm lutado abnegada e  desassombradamente pela dignidade da língua cabo-verdiana na sua pluralidade diatópica: Adelaide Monteiro, linguista, natural da ilha de Santiago; Alice Matos, professora, natural de S. Vicente; Carlos Almeida, professor universitário nos EUA, natural de S. Nicolau; Carlos Delgado, atual reitor da Universidade Lusófona de Cabo Verde, natural de Santo Antão; Dora Pires, professora universitária, atual deputada da UCID, natural de S. Vicente; Humberto Lima, historiador, natural de S. Vicente; Manuel Gonçalves, professor nos EUA, natural do Fogo; Nezi Brito, professora, natural do Fogo; Toni Pires, divulgador, natural de Santo Antão; Tomé Varela, escritor, natural de Santiago; Steve e Tina Graham, estudiosos e divulgadores, EUA. Isto para dizer o quê? Que aquando do processo da oficialização do alfabeto cabo-verdiano não se juntou gente apenas duma ilha, duma região geográfica, e até estrangeiros mergulhados em esquemas de dominação regional, para executar um golpe, como aconteceu com o manual de língua e cultura cabo-verdiana para o 10º ano de escolaridade, o mais grave golpe contra a língua cabo-verdiana, em benefício de um bairrismo bafiento e de um supremacismo irredento, aos quais respondemos: não passarão.

                                             Sintra, 04 de fevereiro de 2025

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

por José Luiz Tavares
Vou lá visitar | 11 Março 2025 | Cabo Verde, caboverdiano, crioulo, linguística, supremacia