A Costa dos Murmúrios

O filme A costa dos murmúrios de Margarida Cardoso retrata com bastante realismo o ocaso da ocupação colonial portuguesa em África, centrando-se na história de dois casais. Na abertura, ouvem-se os acordes da canção “ Sol de Inverno” de Simone de Oliveira, canção da época que fica a ecoar como um prenúncio da desagregação do matrimónio que se irá consumar. O filme abre com o casamento de Evita, a narradora da história que recorda os factos em flashback, para encontrar um sentido para a história individual que vivenciou. Mas esta narrativa bem sua e dos personagens a que se ligou na cidade da Beira, no norte do Moçambique, dá voz à vivência de um povo (o português) que se vê envolvido nas contradições ideológicas e morais de uma  guerra colonial. Por isso, a história de Evita, a protagonista, é a voz colectiva dos vários interesses e tensões que se confrontavam naquele espaço recuado da África ocidental.

Mas comecemos então pelo princípio, quando Evita chega para casar com Luís, o noivo que conheceu como estudante de Matemática e que alguns insucessos académicos fizeram decidir ir para a tropa. A jovem chega aparentemente sozinha a África no dia anterior ao do  seu casamento. Intuímos que estas núpcias representam o selar de um compromisso que foi assumido na distância de Lisboa, por entre a correspondência que os noivos foram trocando entre si. A distância não fez perceber, de imediato, a Evita que estava a unir-se a um noivo que as circunstâncias bélicas haviam feito mudar. Na ingenuidade dos seus verdes anos, a que Beatriz Batarda dá corpo, a boda figura como um instante mágico de ilusão que vai prender a protagonista às exóticas paisagens africanas e ao  destino do noivo, que equivocadamente julga ainda conhecer.

Ao som dos acordes latinos muito em voga na época, os pares deslizam no terraço do Hotel Stella Maris vestidos e caracterizados como personagens da época. Com o mar Índico por horizonte, Evita tenta aclimatar os seus sentidos e sentimentos à nova paisagem natural. Nesta ambiência de aparente euforia, em que todas as atenções se concentram sobre os noivos, ninguém dá atenção ao tropel de passos que se ouvem no sentido da praia… muito menos os noivos.

Mas a notícia corre célere e a paisagem com que Evita se extasiara no dia anterior fica coberta de horrendo mistério à medida que os factos vão sendo conhecidos. De forma significativa, é com este acontecimento aparentemente macabro e inédito da morte de vários indígenas que se inicia o percurso solitário da protagonista, em busca da verdade daquela guerra e do sentido da dominação colonial.

Evita era, podemos dizer, uma rapariga despolitizada, apostada na sua felicidade individual. Mas os índices que vão sendo dados pelo marido, fascinado pela personagem sádica do capitão Forza Leal começam a obrigá-la a confrontar-se com a realidade. A própria solidão em que é deixada, bem como outras mulheres quando os maridos partem para uma grande operação militar no Norte, indu-la a novas descobertas que vão tornar-se cruciais para o desfecho do romance. Porque se, aparentemente, o discurso da mulher do capitão, Helena, alcunhada de Helena de Tróia pela sua beleza, parece não ser mais do que a expressão do pensamento cruelmente racista do marido, a sua submissão não é total. E é nesse jogo de aparente adesão ideológica àquela guerra que Helena vai revelando os atropelos que os militares cometem e a cumplicidade do tenente Luís, marido de Evita, nos massacres da população autóctone.

Helena, enclausurada por amor ao marido, torna-se no final uma ficção, idêntica à da vitória que os militares proclamam, porque aquela incursão no mato nunca poderia representar uma vitória final sobre os africanos que lutavam pela independência. Ou seja, percebemos como os militares portugueses, eles próprios atemorizados pela perspectiva da invalidez e da morte, e culpados perante as atrocidades cometidas, alimentam a ilusão da possibilidade de uma “solução final” para a guerra.  Esta é a ilusão do capitão Forza Leal, a quem mobiliza a ferocidade  cruel e a ambição de novas condecorações, vendo-se como um herói da “guerra do Ultramar”. A curto termo prova-se que é uma ilusão tal como o juramento da fidelidade da esposa que o deveria esperar enclausurada, tal Penélope à espera de Ulisses, e afinal o traiu.

Ilusão é também o encontro de Evita com o jornalista, mas essencial para ambos perceberem como a vivência tão complexa de África e das dúvidas que lhes assolam o espírito os tinham feito perder o rumo das suas vidas. Por isso Evita, depois da partida para o Continente, não irá procurar o jornalista e quando se refere a si própria retrospectivamente,  nesta narração, sublinha, por diversas vezes, no romance tal como no filme, “nesse tempo Evita era eu”.

O diminutivo representa esse tempo de ingenuidade, de despreocupação, de desconhecimento de si própria até ao doloroso confronto que África representou para a sua consciência. Afinal para a nossa consciência nacional colectiva.

Adaptado para o écran, por Margarida Cardoso, o conhecido romance homónimo de Lídia Jorge torna-se acessível ao grande público. O filme segue a trama narrativa do livro, mas reinterpreta-a nas opções que faz do texto literário. Para alguns detalhes, como o do cenário da boda, o filme segue de bastante perto o texto e sem dúvida que a caracterização das personagens adequa-se às intenções da autora. Respira-se, no filme, o ambiente da época, mesmo que com algum toque de modernidade na caracterização da protagonista. Beatriz Batarda encarna de forma magistral a avidez vital e o desamparo existencial da personagem feminina idealizada por Lídia Jorge.

Ficha do filme

Título original: A Costa dos Murmúrios
Realização: Margarida Cardoso
Ano: 2004
Argumento: Cedric Basso, Margarida Cardoso, baseado no romance homónimo de Lídia Jorge
Fotografia: Lisa Hagstrand
Intérpretes: José Airosa, Beatriz Batarda, Carla Bolito, Dinarte Branco, Monica Calle, Filipe Duarte, Sandra Faleiro, Custódia Galego, João Lagarto, Fernando Luís, Adriano Luz.
Montagem: Pedro Marques
Música original: Bernardo Sassetti
Som: Carlos Alberto
Produção: Filmes do Tejo e Les films de l`aprés-midi co-produção: ZDF/ARTE Network Movie
Duração: 120min

 

por Mariana Brito
Afroscreen | 10 Setembro 2010 | guerra colonial, Lídia Jorge, Margarida Cardoso, mulheres