Non, ou a Vã Gloria de Mandar
Entre os filmes que se reportam à história nacional, um dos mais discutidos é, sem dúvida, Non ou a vã glória de mandar. Para alguns críticos tratar-se-ia de uma obra-prima que consagra o cineasta; para outros, há um simplismo reprovável na forma como a história nacional é abordada. Na controvérsia destas duas posições antagónicas, relevante será destacar as motivações implícitas ao projecto cinematográfico, tal como se substantivou. A ideia do projecto emergiu, nos finais da década de 70, na sequência da Revolução do 25 de Abril, mas só ganhou forma, cerca de doze anos depois, na década de 90.
Este lapso de tempo, para amadurecer o projecto, denota bem a ambiguidade dos próprios sentimentos do realizador face ao aniquilamento do extenso Império português. Com o fim da guerra no Ultramar e a descolonização, encetou-se uma nova página na lusa história, pois o país ficou confinado à dimensão europeia, sem a inclusão dos antigos territórios coloniais além-mar. Se o regime salazarista/marcelista tinha criado nos portugueses a ilusão de “uma grande nação plurirracial e multicontinental”, é natural que a descolonização, com os milhares de “retornados” a fugirem para o continente, fosse encarada como o fim trágico da grande epopeia que Camões cantara nos Lusíadas, obra de glorificação dos Descobrimentos. Verdade é que, mesmo naqueles que se opunham à dominação colonial, o redimensionamento do território pátrio não deixou de provocar uma saudosa melancolia, mesmo que oculta e porventura ainda não extinta no inconsciente colectivo.
De um ponto de vista da sua construção, este filme pode dar razão aos que criticam a Manoel de Oliveira a verborreia dos seus filmes. Não haja dúvida que é a muitas das suas perplexidades, perante o destino português, que o cineasta procura responder, nas discussões que encena entre os militares em palco de guerra. Assim é que fazendo eco das discussões comuns à própria intelectualidade da época, os combatentes vão passando em revista os marcos mais significativos de construção da nossa identidade, para encontrar o próprio sentido de patriotismo e a razão da sua luta. O confronto ideológico que o país viveu, face à guerra colonial, corporiza-o Oliveira nos diálogos entre os militares, uns partidários do regime e outros forçados à tropa. Se cepticamente, o Furriel Manuel, representado pelo actor Diogo Dória, comenta: “o soldado está sempre obrigado nas guerras”, o outro companheiro, que encarna a facção do regime, recorda a conhecida frase salazarista de que “os portugueses estão orgulhosamente sós”. Descrente e contrário a este isolamento lusitano, o Furriel Manuel não deixa, todavia, de reconhecer e questionar a questão da ingerência dos interesses estrangeiros, na disputa pelo território africano que havia estado na nossa posse, durante cinco séculos. A posição pragmática e realista do Furriel, em que decerto se revê o próprio Oliveira, afasta-o de todos os radicalismos, seja daqueles que defendem acerrimamente o regime, como o soldado Salvador, seja dos que se posicionam num combate ideológico frontal que esquece as próprias raízes nacionais.
Pois é no entretecer desta disputa ideológica que o filme vai evocando os factos e figuras que marcaram a construção da nossa identidade como povo. De forma exemplificativa, a própria figura de Viriato é perspectivada como a de um “patriota trágico” , que não compreendia as vantagens civilizadoras da romanização. Por analogia histórica, serve o episódio de Viritato para despoletar uma discussão mais actualizada sobre o sentido da herança colonial em territórios africanos. A personagem do cabo Brito, figurativa de uma certa corrente de opinião política, manifesta profundas dúvidas sobre a missão civilizadora do colonialismo; de forma contraposta e mitigando esta posição mais radical, o Furriel Manuel, invoca, a favor do legado histórico colonial, o sentido de nação que foi dado às tribos africanas. Como diz a personagem, “os portugueses, reunindo as tribos, criavam a formação de uma pátria”, que até aí não tinha qualquer perspectiva de configuração. O mote está dado para uma discussão de fundo sobre a missão histórica dos Portugueses, emergindo o sentimento de derrotismo como uma ameaça insidiosa ao orgulho nacional. Derrotismo que o desastre histórico de D. Sebastião faz ecoar como paradigmático da nossa perda de identidade e que Manoel de Oliveira quer superar, quando pela boca do Furriel Manuel, transfigurado nos campos de batalha de Alcácer Quibir, declara: “Portugal tem um destino maior”. No entanto, é manifesta a complexa ambiguidade que realça da leitura que é feita da História de Portugal.
Afinal há quem repare que a palavra “Non”, que dá o título ao filme, é uma palavra temível que parece dar crédito a uma certa descrença sobre a nossa própria identidade fragmentada, pois é uma palavra que pode ser lida ao contrário. Seja como for, neste percurso narrativo sobre a nossa portugalidade, com todas as contradições que lhe são inerentes, o realizador manteve-se fiel à reflexividade que caracteriza o seu cinema muito longe dos ditos filmes de acção.
Ficha do filme
Título original: Non, ou a Vã Gloria de Mandar
Realização: Manoel de Oliveira
Ano:1990
Argumento: P. João Marques e Manoel de Oliveira
Texto: (Histórico) João Marques
Diálogos: Manoel de Oliveira
Fotografia: Elso Roque
Intérpretes: Luís Miguel Cintra, Diogo Dória, Miguel Guilherme, Luís Lucas, Carlos Gomes, Ruy de Carvalho, Leonor Silveira, António S. Lopes, Mateus Lorena, Lola Forner, Raul Fraire, Teresa Menezes, Paulo Matos, Francisco Baião, Luís Mascarenhas
Conselheiro: Aurélio de Oliveira, Manoel de Oliveira (Voz Off Final).
Montagem: Manoel de Oliveira, Sabine Franel
Música original: Alejandro Masso
Som: Aura Films
Produção: Madragoa Filmes; Tornasol Films (Espanha), Gemini Films, SGGC Films (França)
Produção Ex: Paulo Branco
Duração: 110min