CAN - 1 década do "Navio Negreiro do Cinema"

O endereço na Avenida Mem de Sá, bairro boêmio da Lapa no Rio de Janeiro, onde outrora funcionou a Atlântica Educacional, que dentre inúmeros cursos oferecidos na área de saúde possuía uma especialização para professores para educação pela lei 10.639/03 (História e Cultura Afro brasileira), hoje é ocupado por uma igreja neopentecostal.

Debate pós-sessãoDebate pós-sessãoChega a ser irônico que em 12 de setembro de 2008, o CAN - Cineclube Atlântico Negro estreasse ali com a proposta alternativa de exibir cinema da diáspora africana em um espaço educacional, em uma cidade que desde a década de 1980 veio perdendo os seus cinemas de rua para virarem palco de outros cultos que não à sétima arte.

Reflito sobre isso quando 10 anos depois me vejo, com o CAN sediado num espaço cultural denominado Terreiro Contemporâneo, voltado para as artes preferencialmente negras, situado a cerca de 50 metros do endereço de sua fundação. Não há como não pensar no significado da resistência das tradições africanas ao cristianismo imposto pelo colonizador, em um país majoritariamente afrodescendente, e onde o processo colonial se moderniza, seja em metáforas religiosas como essa, ou em seus processos de limitar o acesso aos bens que o CAN representa: a educação e o audiovisual.

O sonho do CAN surgiu 11 anos antes, em janeiro de 1997, quando saí do Brasil pela primeira vez, com uma passagem que ganhei para Washington DC. Recém-formado em Programação Visual pela UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, carreira que já decidira não seguir após a formatura, fui em busca de aperfeiçoamento técnico para o meu sonho de ser cineasta. Os 10 dias da viagem me mostrou que, mesmo estando na “capital do poder mundial”, nenhum curso que encontrei se apresentava igual ou melhor do que as ofertas no Brasil. Mas nada se comparava aos museus, alguns dos melhores do mundo, todos em uma mesma região, e onde passei oito de meus dias conhecendo ao vivo muitas das obras que via somente em slides das aulas na Escola de Belas Artes, ou em livros que não tinha dinheiro para comprar, mas folheava avidamente em livrarias especializadas. Só não esperava entrar no Smithsonian National Museum of African American History & Culture, e me deparar com uma mostra de cinema africano, numa sessão que recolhia as senhas para a entrada. Pensei: “um longa vai me tomar muito tempo de passeio, mas pode ser uma oportunidade única”. Entrei. Pela primeira vez assisti um longa realizado e escrito por um africano negro, Ousmane Sembene. O filme era Guelwaar e essa tarde marcou minha vida. Esse filme senegalês era falado em Wolofe francês, e legendado em inglês. Além do volume de informações idiomáticas, a narrativa daquele que muitos consideravam o “pai do cinema africano” me afetou profundamente. Pela primeira vez via a cultura muçulmana sendo tratada de maneira não criminosa, diferente do cinema que eu tinha acesso, bem como dos telejornais brasileiros. Vi também uma outra maneira de debater os problemas do continente africano (miséria, doença, subdesenvolvimento) tratados sobre uma nova perspectiva, de maneira crítica, e apresentando a potência desta nação. A partir daquele momento decidi que compartilharia a descoberta do cinema africano, com os brasileiros.

Ainda em 1997 fui viver em Moçambique, trabalhando com audiovisual. Ao retornar ao Brasil em 2000, comecei a realizar meus primeiros filmes autorais, em animação, mas ainda não abordava a temática étnico-racial, apesar de os produzir com personagens negros. Ingressei na política audiovisual quando me filiei à ABD Nacional - Associação Brasileira de Documentaristas e Curtas-metragistas. Neste período comecei a frequentar os Cineclubes que aconteciam em vários cantos da região metropolitana do Rio de Janeiro e dos municípios vizinhos, como o Beco do Rato na Lapa e o Mate Com Angú em Duque de Caxias/RJ. Os filmes de animação que realizei me levaram ao universo dos festivais brasileiros, e ao contato com inúmeros realizadores fora do Rio de Janeiro. A ABD Nacional concedia premiações em festivais de documentários e curtas, o que me fez acessar inúmeras produções, dentre elas as etnográficas. A partir daí comecei a pensar na possibilidade de criar um cineclube de temas relacionados à “cultura negra”.

Ao retornar de uma viagem de trabalho à Angola em 2006, fui sondado para ministrar uma disciplina na especialização em história e cultura afro-brasileira, no curso interdisciplinar da Atlântica Educacional. Naquele ano assumi o Cineclube da ABDeC-RJ (seção da ABD Nacional, no Rio de Janeiro) que acontecia semanalmente na Fundação Casa de Rui Barbosa, e foi ali onde comecei a exibir os filmes de protagonismo negro que vim pesquisando ao longo do tempo, testando assim a aceitação do público. Este cineclube tinha pouca frequência e fidelidade de público, e raras eram as pessoas pretas que o frequentavam. 

Propus à coordenadora do curso da Atlântica Educacional, fazermos um Cineclube às sextas-feiras à noite, que era véspera dos módulos de imersão em finais de semana, uma vez por mês. As sessões seriam temáticas e dialogariam com a disciplina do dia seguinte. E assim nasceu o CAN - Cineclube Atlântico Negro, na sexta-feira dia 12 de setembro de 2008, exibindo, como pré-estreia, na véspera de seu lançamento na TV pública, o documentário Devoção de Sergio Sanz, que trata de sincretismo religioso.

Jurema

Os tempos eram outros para cinematografia afro-brasileira. Neste contexto o CAN, antes da profusão de filmes de diretores pretas e pretos contemporâneos, tinha suas sessões divididas por temas, em função da dificuldade de obter obras nacionais sob nossas perspectivas. Poucas obras eram acessíveis aos exibidores. Uma das poucas fontes era o DVD de Obras Raras do Cinema Negro Brasileiro, realizada pelo Centro Afrocarioca de Cinema, em 2006, contendo as obras de Zózimo Bulbul, Antonio Pitanga e Waldir Onofre, dentre outros. Os curtas de Jeferson De que já eram premiados naquela altura, e obras ainda não digitalizadas de outros realizadores pretos e pretas dos outros estados não eram acessíveis para um cineclube sem projetor 35mm. Além disso havia uma preocupação dos realizadores com a segurança de suas obras em DVDs, que eram facilmente copiáveis, nas mãos de cineclubistas, o que, para alguns, significava uma possível “pirataria”.

Vídeo do aniversário de 7 anos do CAN

A evolução das câmeras digitais, os projetos de pontos de cultura audiovisuais implantados pelo governo do país, e posteriormente o sucesso das políticas públicas para ingresso de pretas e pretos nas universidades, mudou esse panorama. Com isso cresceu o volume e a qualidade da produção feita por pretas e pretos, o que exigiu mais do meu trabalho como curador, pois muitos desses filmes tinham suas pré-estreias realizadas no CAN. Os filmes com temática afro ainda são um tabu em função da ignorância e insensibilidade de grande parte dos curadores de festivais do Brasil (e, que infelizmente, apesar da crescente busca por visibilidade preta em todas as mídias, ainda permanece).  Durante boa parte da trajetória do CAN, ele se consolidou como um espaço aberto para exibição e lançamento dessas obras.
Em 2011 o CAN participou da Jornada Nacional de Cineclubes realizada em Moreno, município de Pernambuco. Aí nasceu minha primeira obra assinada pelo CAN, Ojù Oná, o documentário memorial sobre os cineclubistas pretos presentes nesta jornada. A partir do Ojù Oná, minhas produções autorais passaram a ter o mesmo tema dos filmes exibidos pelo CAN, e ao mesmo tempo se tornaram referência no cenário audiovisual. Até o momento o CAN já lançou 13 produções autorais, que são: o documentário O Anjo de Chocolate (longa-metragem), além de 12 curtas-metragens, sendo: 9 documentários, 2 ficções e 1 experimental.

Esta trajetória que envolve cinema, cineclubismo e educação me levaram a estar hoje no doutorado em educação na UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde pesquiso o cinema como ferramenta pedagógica para uma educação ambiental com perspectiva decolonial, através do GEASUR, grupo de pesquisa com o qual já desenvolvo uma outra atividade, fruto de parceria com o CAN, o Cinegeasur.

O Navio Negreiro do Cinema, apelido do CAN, está sediado no Terreiro Contemporâneo, mas realiza diversas ações itinerantes, com exibições em escolas e centros culturais, principalmente na periferia do Rio de Janeiro. Do “cais” da Atlântica Educacional, navegou por diversos portos da cidade como o Tempo Glauber, a Casa Porto, retornando à sua origem, na região da Lapa conhecida como Cruz Vermelha

Em 2018 o CAN comemora uma década de atividades. Em abril iniciamos o Curso “X CAN - O Cinema da Diáspora Africana – Reflexões”. O curso, realizado um domingo ao mês, remete ao início de tudo, como eram as imersões de final de semana nas aulas no endereço onde ficava a Atlântica Educacional. Hoje neste endereço, nas redondezas da nossa atual sede, as pessoas buscam milagres para suas vidas, fora de suas tradições de origem. 

cinema da diáspora africana busca nos aproximar destas tradições, ao contrário da colonização pela igreja (ou pelo cinema ocidental) e definir nossa identidade enquanto africanos em diáspora. 

O projeto futuro do CAN é usar o cinema para educação, trabalhando também com formação crítica online e atuando nas itinerâncias presenciais, formando novas pensadores para levar esse navio a outros mares. O objetivo em 2019 é realizar um curso baseado na obra de Spike Lee

Anamnese

Assim como diria Stuart Hall: “Todos nós escrevemos e falamos de um lugar e de um tempo em particular, de uma história e de uma cultura que é específica. O que dizemos é sempre ‘no contexto’ em que estamos”. O CAN “projeta” as culturas e tradições de matriz africana na tela, para nos permitir a empatia e identificação com nossas possíveis origens, nos ajudando a pensar o nosso futuro.

Tião
 

Anjo de Chocolate

 

 

por Clementino Junior
Afroscreen | 10 Setembro 2018 | Brasil, CAN, cinema negro, Navio Negreiro do Cinema