O regresso de Chica Xavier
Quem assistiu a um dos grande sucessos de bilheteria de 2010 Nosso Lar, teve uma grata surpresa. Além da qualidade hollywoodesca da produção, com efeitos de pós-produção executados no Canadá, e do universo espírita representado no estilo de ficção científica retrô, no ápice da trama emotiva do filme, uma grande atriz rouba a cena em sua única aparição com fala, Chica Xavier.
E não é à toa que ela está nesta obra. Anos antes, ao encontrar Renato Pietro numa homenagem ao centenário da Umbanda (da qual é adepta), que interpreta o protagonista (o espírito André Luís) deste blockbuster brasileiro, surgiu o comentário sobre o projeto do filme: ele achava que ela deveria estar presente. Daí até se concretizar o convite por parte da produção foi uma questão de tempo.
Vinda de Salvador, na primeira metade da década de 50, para trabalhar no serviço público e se formar como atriz, acompanhada do seu futuro e até hoje marido Clementino Kelé, Chica Xavier, após estudar arte dramática com Paschoal Carlos Magno, estreou com pompa na produção histórica de Vinícius de Morais, Orfeu da Conceição, no papel da “Dama Negra” que simbolizava a Morte.
“Eu tenho minha primeira carteira de trabalho assinada por Vinícius de Moraes. E não dei baixa na carteira porque ele não rescindiu o meu contrato. Acho que até hoje ele está me esperando…” - afirma com saudosismo.
Este foi um momento importante não só para a sua carreira, mas para todo o ator negro (Clementino Kelé também estava no espetáculo, protagonizado por Haroldo Costa) pois, pela primeira vez, um palco com a dimensão e importância do Teatro Municipal do Rio de Janeiro cedia espaço para um espetáculo com elenco afro-brasileiro.
Sua carreira no teatro foi curta, no mesmo ano de Orfeu, Chica e Kelé se casaram, e no ano seguinte ela se tornou mãe, a primeira de três filhos. A partir daí, por julgar que o teatro lhe tiraria o prazer de jantar com a família e saber como foi o dia, se manteve na arte dramática em outras áreas: cinema e TV, que não lhe ocupariam a noite. Na verdade o cinema a levou para a TV, quando o então diretor da TV Globo Fábio Sabag a viu descer o morro com lata de água na cabeça, em sua única aparição no clássico Assalto Ao Trem Pagador (direção de Roberto Farias, e em outro dos raros trabalhos que fez com seu marido) e a convidou para repreentar na televisão, onde se estreou numa pequena participação em A Cabana do Pai Tomás.
Ao longo de sua carreira televisiva, que deiaria o cinema para segundo plano, fez dezenas de novelas (segundo o site IMDB, mais de 40, incluindo seriados), a grande maioria das vezes em papéis de empregada, governanta, escrava. Mas a figura imponente da atriz e sua capacidade de aproveitar as pequenas participações, sempre a levaram a dar volta e convencer os seus autores a escrever uma estória para a sua personagem, aumentando assim o seu protagonismo.
Hoje ela é uma das “Damas Negras”, juntamente com Ruth de Souza, Lea Garcia e Zezé Motta, mas sempre questionou o rótulo que a imprensa atribui às atrizes afrobrasileiras:
“No jornal, nas revistas, ninguém se refere à atriz loira, atriz branca ou atriz morena? Então porquê atriz negra? Eu sou uma atriz e só me sentirei uma atriz completa quando for reconhecida desta maneira!”
Seu papel mais marcante na TV foi o da mãe-de-santo Magé Bassã, da série Tenda dos Milagres, adaptado da obra de Jorge Amado. Para conquistar o papel, Chica teve que fazer teste, pois eles a julgavam muito nova para a personagem e queriam alguém com o porte “avantajado” das mães-de-santo baianas. No teste, ela buscou o gestual típico das mães-de-santo baianas (terreno do qual é conhecedora, por também ser sacerdotiza, só que de Umbanda), e com a voz rouca entoou um cântico em nagô. Acabaram-se os testes e nasceu sua personagem mais marcante e predileta.
Mas outras personagens vieram e ganharam o gosto do público, como a Bá (Virgínia) da primeira versão de Sinhá Moça, e a Inácia de Renascer, todas da Rede Globo. Outro personagem de destaque, em uma das poucas incursões na TV antes da Globo, foi na TV Bandeirantes (atual Band) na novela de sucesso Os Imigrantes, onde fez um dos seus primeiros personagens que tinham uma história, um romance e que, mesmo com um fim trágico, trazia uma consistência pela qual ela sempre batalhou em seu trabalho: a Biá.
A cena descrita anteriormente, remete para o último capítulo de Renascer, onde a Inácia sente a presença de seu amado patrão que chega, lhe dá um beijo e pede que ela cuide de seus netos como sempre fez com os filhos. Para os mais radicais seria uma cena que reforça os esteriótipos racistas, onde a função da serviçal seria morrer fazendo o que justifica a sua presença na estória, mas a citação de momentos de mediunidade sempre se fazem mais presentes quando Chica Xavier está no papel, e a beleza e emoção da cena marca a despedida do personagem do Antonio Fagundes, com o mesmo peso de emoção da despedida de Ismália de seu patrão André Luiz, em um filme em que nenhum outro personagem “vivo” demonstrou conexão com o plano astral.
E sendo um dos elementos responsáveis pelo sucesso desta obra cinematográfica, adaptada da literatura espírita, que ultrapassou em bilheteria o Chico Xavier de Daniel Filho, e liderou a votação popular para a indicação do Brasil ao Óscar, Chica Xavier tem uma carreira longínqua e brilhante, para uma mulher afro-brasileira criada na Roça da Sabina (hoje Quintas da Barra, em Salvador) que “bolou” no santo aos 11 anos, trabalhou ainda jovem como mecanógrafa na Imprensa do Estado da Bahia, e que seguiu atrás de seus sonhos impossíveis na “cidade maravilhosa” da década de 50.