"Passageiros da Liberdade" de STANLEY NELSON
Mais do que um episódio pontual dentre tantos nas lutas pelos direitos civís americanos, as poucas semanas de 1961 em que os Passageiros da Liberdade tomaram as capas dos jornais na América e no mundo, não podiam ser esquecidos, e este filme do grande documentarista americano (cuja obra vai muito além da questão afro-americana) Stanley Nelson, resgata e traz novas tintas ao episódio.
Para começar pelo domínio de uma narrativa clássica e cronológica, com um trabalho de pesquisa no mesmo porte de outros feitos por Michael Moore e sua network de mídia independente, onde ele buscou muitos filmes amadores e profissionais e registros fotográficos dos eventos da época, e com um clima criado pela trilha sonora e poucas cenas de simulação para ilustrar a estória na voz de poucos historiadores e muitos sobreviventes do episódio.
Stanley Nelson consegue com esta tensão natural da história e com sua edição contundente, te colocar dentro do ônibus…. e qual ônibus?
Em 1961, com todas as “leis” segregacionistas no sul dos E.U.A. que, entre outras barbaridades, não permitiam que negros e brancos dividissem do banco do ônibus aos bebedouros e assentos em bares e restaurantes (relacionamento amoroso nem pensar), um grupo de negros e brancos, homens e mulheres, ingressam em ônibus de turismo para chegar a Nova Orleans passando pelos Estados mais racistas da América.
Treinados previamente pelo CORE (Congress of Racial Equality) para aguentar todas as gamas de agressões típicas da época, sem revidar, durante a viagem pelo país eles paravam nas cidades, entravam em restaurantes e faziam pedidos juntos (que eram prontamente negados, quando não conseguiam sequer descer dos ônibus).
Visando atrair a atenção para o racismo naquela parte do país, anunciando previamente a viagem para a imprensa, eles seguem pela estrada. Mas como no futebol, “treino é treino, jogo é jogo”. As agressões e tentativas de assassinato sofridas por estes militantes durante poucos dias de viagem e o movimento de proporções monumentais que esta ação gerou, envolvendo dos irmãos Kennedy (então presidente e procurador-geral da república) aos governadores racistas e o grande líder em ascenção Martin Luther King, tornam este episódio uma das cicatrizes dos Estados Unidos da América pré-vietnã.
O depoimento do ex-governador do Alabama John Patterson, hoje um idoso que lembra do episódio do qual foi o principal vilão com serenidade, sem desmentir nada, chega a incomodar, mas dá um valor fundamental ao documentário.
Como numa cena do filme, nas palavras de Bob Kennedy, que acreditava que “os negros estão progredindo bastante neste país…” e “…este país ainda poderá ter um presidente negro”. Quem lê as frases anteriores pode ter impressões erradas sobre o filme, mas o profissionalismo e isenção de Stanley Nelson em conduzir a história, as opiniões e os fatos, mostra o quanto os Kennedy aderiram à defesa dos direitos civís apenas depois deste episódio, o quanto o reverendo Martin Luther King Jr. se absteve de maior envolvimento com a ação por diversos motivos, mas alguns questionáveis para o movimento da época, e os raros casos de compaixão pelas vítimas da violência Red Neck, como a filha do comerciante que, diante do desespero dos militantes que fugiam do ônibus incendiado, lhes oferecia água.
Muitas cenas trazem reflexão para aquele momento, como o resgate da notícia das agressões chegando aos países comunistas, e como estes trabalhavam para ressaltar seu regime em detrimento desta ferida aberta na sociedade norte-americana.
A recusa dos motoristas em prosseguir viagem (impulsionados pelo então lider sindical dos motoristas: Jimmy Hoffa, personagem de outro filme famoso, Hoffa, com Jack Nicholson no papel e Danny De Vito na direção, desaparecido em 1975 e dado como morto em 1983) e os “jogos de empurra” e negociações entre Bob Kennedy (o único dos irmãos a lidar direto com as negociações entre a segurança dos ativistas e a violência dos populares e policiais sulistas), foram obstáculos maiores do que qualquer barreira ou quebra-molas que poderiam se colocar naturalmente no trajeto dos ônibus.
A maior dor vem dos (reforço o termo) sobreviventes do episódio, os ainda vivos “riders”, ou passageiros, que contam o quanto aguentaram humilhação e violência para, depois de dias de sofrimentos, espacamentos e prisões, saberem que aquilo chamou a atenção do mundo (meus pais contam como foi na época receber aquelas notícias, vivendo num país que tinha de uma maneira diferente as mesmas questões de preconceito) e serviu para pequenas e fundamentais conquistas nos anos que se seguiram.
Um deles descreve a cena onde eles apanhavam de centenas de populares racistas furiosos, e quando o agente do governo que os acompanhava tenta sair, eles pedem que ele não se envolva, pois foram treinados para isto…
Em outro momento, uma estudante, que se tornará lider de um segundo movimento de Passageiros da Liberdade organizado por estudantes negros, responde ao agente do governo que os alerta de que poderiam haver mortes, ela responde que “todos assinaram seus testamentos no dia anterior….”. Fica evidente o quanto que, para defender determinados ideais em momentos que pontuais da história, militantes vão às últimas consequências para obter o benefício comum.
O filme é tenso e a ação mostrada é um ato que tinha muito para dar errado, mas que se mostrou uma semente fundamental para a conquista dos direitos civis, a qual teve episódios muito mais violentos fora do ambiente sulista, como o que aconteceu em outro filme narrado por aqui, dos eventos em Watts em 1966, onde dezenas de mortos num bairro negro foram o resultado de dias de embate entre população e forças armadas federais (o Doc Wattstax).