Daqui e acolá: poéticas relacionais na produção cinematográfica africana e afrodiaspórica

Sessões de cinema no ciclo “Para nós, por nós”: produção cultural africana e afrodiaspórica em debate 

 I 4 a 8 de Dezembro, 2018. Lisboa

O programa reúne um conjunto de filmes – oito curtas-metragens e uma longa-metragem – que encontra na noção de “circulação” um denominador temático e formal comum. As posições espaciais – e também temporais – estáticas são questionadas através de procedimentos narrativos e estéticos inventivos que fazem emerger perspetivas plurais e móveis sobre o presente, a história geral – e, em particular, a história colonial e anti-colonial – e a história das formas representativas. Centrado na produção cinematográfica africana e afrodiaspórica recente – ainda que incluindo um filme de Sarah Maldoror, considerada como a matriarca do cinema africano –, o programa procura questionar o eixo centro/periferias culturais e artísticas e as estruturas binárias associadas e examinar as circulações e os intercâmbios Sul/Sul.

Num contexto teórico marcado por um crescente debate em torno da centralidade africana (a noção de “afrotopia”, de Felwine Sarr, ou ainda a conceção, defendida pelo economista e escritor senegalês e por Achille Mbembe, de África como cenário do “devir do planeta”), o programa coloca a hipótese de estéticas africanas e afrodiaspóricas em contraponto às formas visuais dominantes, apelando mesmo a uma releitura das declinações históricas do par dialético hegemonia/subalternidade. Nestes filmes, o ato de centrar decorre, em larga medida, de um processo de descentramento: descentramento histórico e formal, acompanhado do descentramento das posições enunciativas e cognitivas convencionais através de poéticas relacionais que deslocam a reflexão sobre as categorias de identidade e alteridade rumo a um pensamento da relação nos sistemas de representação.

Se o primeiro filme do programa, Fogo, Ile de feu (1977), de Sarah Maldoror, traça uma cartografia histórico-poética da Ilha do Fogo, Dois Duas (2011), da artista e mezzo-soprano moçambicana Mariana Carrilho, leva a cabo uma reflexão sobre a condição feminina através da exploração, temática e formal, de um princípio de contiguidade espacial entre Moçambique e Portugal. Release/Libertação(2013-2015), da artista moçambicana Maimuna Adam, dissolve as disjunções espaciais entre os dois territórios e debruça-se sobre as tensões e interdependências entre a parte e o todo, procurando conciliar formalmente o geral e o particular, o idêntico e o dissemelhante. Concrete Affection - Zopo Lady (2014), do artista angolano residente em Lisboa Kiluanji Kia Henda, inspira-se livremente no primeiro capítulo de Mais um dia de vida (1976), do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński, relato auto-biográfico poético sobre o verão de 1975 em Angola, para abordar as resignificações do processo de independência através dos seus sucessivos horizontes temporais. Se os processos de construção e de organização do ponto de vista e a reflexão sobre as formas visuais modernistas são centrais, o filme é estruturado narrativamente por temporalidades múltiplas e difusas, do período anti-colonial ao presente.

Em Casa Portuguesa (2016), a artista portuguesa de origem angolana Mónica de Miranda encena percursos deambulatórios através das zonas rurbanizadas da periferia de Lisboa com o intuito de extirpar a carga ideológica e histórica e, logo, resignificar a expressão que dá título ao filme. O corpo do ator converte-se num dispositivo de visão que assegura a transição entre o espaço distópico referencial e os espaços utópicos convocados. 

Kbela (2015), Yasmin ThaynáKbela (2015), Yasmin Thayná

Kbela (2015), da cineasta afro-brasileira Yasmin Thayná, contribui para a ampliação, tal como assinalado por Lúcia Ramos Monteiro num artigo publicado na Folha de São Paulo, das “possibilidades de reconhecimento da população negra nas telas”. Desmontando os estereótipos associados à representação audiovisual da população negra, Kbela afirma uma estética cinematográfica afro-brasileira, inscrita, porém, numa genealogia do cinema daquele país, do barroquismo de Glauber Rocha ao psicodelismo pop do Cinema Marginal. O filme baralha as distâncias e aproxima os contrários por meio de personagens arquetípicas e de procedimentos narrativos e estéticos que suprimem toda a separação rígida entre a esfera material e a esfera ritual.

Beautiful People Know (2017), KeyezuaBeautiful People Know (2017), Keyezua

Tal como em Beautiful People Know (2017), da artista angolana Keyezua, Kbela insiste na importância do cabelo afro como forma de empoderamento e de luta contra as convenções “ocidentais” de beleza. Em Beautiful People Know, depois de pentear longamente o cabelo afro, a personagem rasga as páginas de um livro, enrola-as e enreda-as nas madeixas, fazendo do corpo um dispositivo político de profanação das categorias e dos saberes instituídos. 

Relato de uma rapariga nada púdica (2016), Lolo ArzikiRelato de uma rapariga nada púdica (2016), Lolo Arziki

Relato de uma rapariga nada pudica(2016), da realizadora cabo-verdiana radicada em Lisboa Lolo Arziki, afirma a reivindicação da sexualidade e da livre disposição de si como ato eminentemente político através de uma busca estética correlativa, à qual não são alheias as problemáticas do autorretrato como género transdisciplinar.

A longa-metragem Independência (2015), de Mário Bastos, produzida pela Associação Tchiweka de Documentação e pela Geração 80, surgiu do Projeto “Angola nos Trilhos da Independência” (2010-2015). Ao longo de 57 meses, os responsáveis pelo projeto recolheram 900 horas de material audiovisual em Angola e no estrangeiro e reuniram cerca de 700 depoimentos de protagonistas da luta anti-colonial com o objetivo de preservar a memória desse processo histórico.  Independência transpõe esse objetivo à esfera cinematográfica, oferecendo uma perspetiva “angolana” sobre a luta anti-colonial, em contraponto às narrativas ainda dominantes em Portugal. A riqueza dos arquivos – visuais (fotográficos e cinematográficos), textuais, sonoros, musicais; públicos e privados (nomeadamente, do acervo da jornalista italiana Augusta Conchiglia) –  e as variadas modalidades de representação da história – apropriação de arquivos, reconstituição, testemunhos, animação – fazem deste filme um valioso documento histórico. O filme é também um importante indicador da maneira como a luta anti-colonial é vista hoje pela geração de combatentes e por aquela que nasceu depois da independência, da sua “vivência intergeracional”, nas palavras de Marta Lança numa entrevista ao general Paulo Lara, mentor do Projeto “Angola nos Trilhos da Independência”, publicada no portal Buala.

Independência debruça-se sobre as formas estéticas do cinema anti-colonial, apropriando alguns dos seus traços estilísticos nas sequências de montagem de arquivos. “Esta é a nossa memória”, diz o intertítulo final, memória da luta anti-colonial, mas também das suas representações cinematográficas. 

Num momento histórico em que assistimos à expansão de ideologias totalitárias, é urgente multiplicar os espaços de resistência. Ao opor-se às narrativas e às formas visuais dominantes e ao deslocar as categorias binárias próprias da modernidade ocidental, os filmes deste programa contribuem para a proliferação dos espaços de resistência. 

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Sessão de curtas-metragens  

Livraria Tigre de Papel I 7 de dezembro I 18h30 - 21h

Conversa com Maria do Carmo Piçarra, Raquel Schefer, Catarina Alves Costa (antropóloga e realizadora) e Lolo Arziki (realizadora).

Fogo, Ile de Feu, Sarah Maldoror, 1977, 23’

Dois Duas, Mariana Carrilho, 2011, 7’

Release/Libertação, Maimuna Adam, 2013-2015, 4’

Concrete Affection - Zopo Lady, Kiluanji Kia Henda, 2014, 12’

Casa Portuguesa, Mónica de Miranda, 2016, 5’

Kbela, Yasmin Thayná, 2015, 22’

Beautiful People Know, Keyezua, 2017, 15’

Relatos de uma rapariga nada pudica, Lolo Arziki, 2016, 4’  

Independência, de Mário Bastos, Geração 80, 2015, 110’

Livraria Tigre de Papel I 8 de dezembro I 18h30 - 21h.

Conversa com Marta Lança e Victor Hugo Lopes (cinéfilo).

A 11 de Novembro de 1975 Angola proclamou a independência, 14 anos depois do início da luta armada contra o domínio colonial português. O regime de Salazar recusava qualquer negociação com os independentistas, aos quais restava a clandestinidade, a prisão ou o exílio. Quando quase toda a África celebrava o fim dos impérios coloniais, Angola e as outras colónias portuguesas seguiram um destino bem diferente. Só após o golpe militar de 25 de Abril de 1974 ter derrubado o regime, Portugal reconheceu o direito dos povos das colónias à autodeterminação. Os anos de luta evocados em “Independência” determinaram o rumo de Angola após 1975. Opções políticas, conflitos internos e alianças internacionais começaram a desenhar-se durante a luta anti-colonial. As principais organizações (FNLA e MPLA e, mais tarde, UNITA) nunca fizeram uma frente comum e as suas contradições eram ampliadas pelo contexto da Guerra Fria. A independência foi proclamada já em clima de guerra, mas com muita emoção e orgulho, como é contado no filme.

por Raquel Schefer
Afroscreen | 30 Novembro 2018 | afrodiáspora, ciclo Artafrica, cinema africano, Independência