Programa Amérika: Gestos Cinematográficos para Reencantar o Mundo
Ciclo de projecções e conversas. 2023-2026 I Hangar - Centro de Investigação Artística I Rua Damasceno Monteiro 12, 1170-108 Lisboa
Uma proposta de Raquel Schefer, com o apoio da DGARTES
O cinema experimental e o cinema etnográfico foram historicamente considerados como práticas autónomas. Em Experimental Ethnography: The Work of Film in the Age of Video, Catherine Russell debruça-se sobre os seus cruzamentos e examina a função da etnografia na “renovação” do cinema experimental. O ciclo de projecções e conversas Amérika: Gestos Cinematográficos para Reencantar o Mundo explora, nessa linha, os cruzamentos entre o cinema experimental e a etnografia através de uma cartografia de práticas e gestos cinematográficos desenvolvidos histórica e contemporaneamente na América Latina. Dos filmes de Bruce Baillie e Chick Strand realizados no México ao cinema amazónico, que supera e desloca o terreno de intersecção entre o cinema experimental e a etnografia, e da obra do etnógrafo Jorge Prelorán à do cineasta experimental Bruno Varela, passando pelas peças pioneiras de videoarte de Juan Downey e pelos “poemas etnográficos” (Nicole Brenez) de Raymonde Carasco e Régis Hébraud, as treze sessões deste ciclo de três anos propõem um percurso representativo da diversidade visual e epistemológica do continente latino-americano. Centrando-se paralelamente nos modos de produção e distribuição, o programa inventaria um conjunto de declinações do processo de descolonização do olhar, das representações e da própria praxis cinematográfica.
Na primeira sessão do ciclo, o cineasta Régis Hébraud, companheiro e colaborador constante de Raymonde Carasco, apresentará e comentará alguns dos filmes que realizou com a cineasta francesa.
I sessão: Um cinema-Tarahumara: os filmes de Raymonde Carasco e Régis Hébraud
Segunda-feira, 9 de Outubro de 2023, 18-20h
Projecção seguida de uma conversa presencial entre Régis Hébraud, Salomé Lopes Coelho e Raquel Schefer.
Los Pascoleros - Tarahumaras 85, 27’, França-México, 1996.
Ciguri 98 - La Danse du peyotl, 40’, França-México, 1998.
Em 1976, Raymonde Carasco e Régis Hébraud partem pela primeira vez para o México em busca de traços do processo de produção de ¡Que viva México!, filme inacabado de Eisenstein. Seguir-se-ão, até 2001, outras 17 viagens — “o acontecimento de uma vida”, nas palavras de Carasco — guiadas pelas escritas, literária e cinematográfica, de Artaud e Eisenstein.
Realizado em 1979, Tarahumaras 78 é o primeiro filme consagrado ao povo Tarahumara da Sierra Tarahumara, no Estado de Chihuahua, no Noroeste do México. Carasco e Hébraud compõem, a partir de então, um “fresco” (Nicole Brenez) da vida social e dos ritos Tarahumara, sobre o pano de fundo dos textos de Artaud (de Voyage aux pays des Tarahumaras de 1936 ao poema Tutuguri de 1948), em que se dissolve a separação entre a esfera material e a esfera ritual. A démarche dos dois cineastas não é simplesmente etnográfica ou poética, mas “etno-poética”, expressão de Brenez. Produzem “escritas do ver” (Carasco) que, situando-se nas margens do cinema etnográfico e do cinema experimental e redesenhando o seu traçado, conferem uma elaborada expressão formal ao encontro da alteridade e tornam visível aquilo que é do domínio do invisível — o encantamento, a experiência xamânica, a alucinação, a sensação, o mundo do ciguri, planta sagrada Tarahumara. Na obra de Carasco e Hébraud, a dimensão ontológica do cinema enquanto escrita do visível é indissociável da sua capacidade para transfigurar o real e expandir a percepção, produzindo imagens mentais e re-estruturando os modos perceptivos e cognitivos dominantes. Assente em modos de produção contingentes e filmada preponderantemente em 16 mm, a filmografia de Carasco e Hébraud emerge de uma relação dialógica com a alteridade, método que, ao estabelecer um complexo jogo temporal e espacial e uma ecologia de perspectivas dinâmica, desloca radicalmente a relação entre sujeito e objecto.
Os filmes de Carasco e Hébraud são pela primeira vez exibidos em Portugal depois do ciclo “Figuras da Dança no Cinema”, comissariado por Ricardo Matos Cabo na Culturgest, em 2005.
A projecção será seguida de uma conversa aberta ao público entre Régis Hébraud, a investigadora Salomé Lopes Coelho e Raquel Schefer, curadora do programa.
Los Pascoleros - Tarahumaras 85
16 mm, preto e branco e cor, som óptico, 27’, França-México, 1996.
Escrita e realização: Raymonde Carasco.
Imagem e som: Régis Hébraud.
Montagem: Raymonde Carasco e Régis Hébraud.
Excertos de textos de Antonin Artaud lidos por Raymonde Carasco.
Sonoplastia: Didier Lesage.
Sinopse:
“Los Pascoleros - Tarahumaras 85 foi filmado durante as celebrações da Páscoa de 1985.
Mostra o reverso, os bastidores, das encenações da Paixão na aldeia de Norogachic, no México.
Estamos perante as pinturas corporais de três tipos de dançarinos das festas pascais: fariseos, pintos, pascoleros. Os ritos de iniciação, secretos, de dois Pascoleros, filmados pela primeira vez, constituem o cerne deste documento.
A alternância entre sequências nocturnas, filmadas a preto e branco, e pinturas e danças diurnas, filmadas a cores, conferem aos textos de Antonin Artaud a sua dimensão escritural. A versão de 1936 de Voyage au Pays des Tarahumaras é reescrita na última fase da vida de Artaud, em 1947, sob a forma de um novo Théâtre de la Cruauté e de um novo corpo: Para viver, é preciso ter um corpo…, O teatro da crueldade quer pôr a dançar pálpebras par a par com cotovelos, rótulas, fémures e dedos dos pés e ser visto.
(Raymonde Carasco e Régis Hébraud)
Ciguri 98 - La Danse du peyotl
16 mm, preto e branco e cor, som óptico, 40’, França-México, 1998.
Escrita e realização: Raymonde Carasco.
Imagem: Régis Hébraud.
Montagem: Raymonde Carasco e Régis Hébraud.
Sonoplastia: François Didio.
Fragmentos do texto La danse du Peyotl, de Antonin Artaud, lidos por Jean Rouch e Raymonde Carasco.
Cópia da Cinémathèque de Toulouse.
Sinopse:
“A primeira série de filmes realizados por Carasco e Hébraud entre 1977 e 1985 na esteira da Voyage au Pays des Tarahumaras (Viagem ao País dos Tarahumaras) de Antonin Artaud em 1936 constitui aquilo a que o poeta chama a Rota do Tutuguri, primeira etapa de iniciação nos ritos Tarahumara do peiote. Tarahumaras 78, Tutuguri, Los Pintos, Yumari e Los Pascoleros pertencem a essa primeira série. São ritos de Verão e de Primavera.
Filmado no Inverno de 1995-1996, Ciguri 96 vai ao encontro do último grande xamã do peiote e dos ritos secretos de cura. São os ritos de Inverno que abrem a Rota do Ciguri. A escolha do preto e branco dá conta do primeiro relato da Experiência Tarahumara de Artaud, no fim da sua estadia no México, em Dezembro de 1936, e aquando do seu regresso a Paris em Fevereiro-Março de 1937, no texto de Voyage au Pays des Tarahumaras intitulado La Danse du Peyotl. Texto visionário, no limiar do desmoronamento e da decisão de viajar para a Irlanda, da experiência catastrófica de Dublin.
‘A possessão física continuava ali. Esse cataclismo que era o meu corpo… Depois de vinte e oitos dias de espera, ainda não tinha voltado a mim, ou melhor, saído até mim. Até mim, esta composição deslocada, este pedaço de geologia avariada.’
Ciguri 98 vem juntar aos sons e às músicas rituais de Ciguri 96 a voz de Rouch a ler La Danse du Peyotl, criando-se uma singular ressonância com o acontecimento de um transe captado pela câmara.”
(Raymonde Carasco e Régis Hébraud)
Biografias:
Raymonde Carasco
Cineasta, teórica do cinema e professora universitária, Raymonde Carasco (1939-2009) desenvolveu uma investigação sobre o conceito de “fora de quadro”, elaborado por Eisenstein, no âmbito da sua tese de doutoramento (1975), orientada por Roland Barthes. Realizou mais de vinte filmes, entre os quais se contam Gradiva Esquisse I (1978), Rupture (1989) e 17 curtas-metragens e médias-metragem sobre o povo Tarahumara do México. Exemplificando a articulação entre teoria e prática, a cineasta experimenta na sua filmografia as noções desenvolvidas em torno do “fora de quadro” na sua tese, publicada em 1979 com o título Hors cadre Eisenstein (Paris: Macula). Publicou diversos artigos sobre Barthes, Pasolini, Resnais, Durais, Bousquet e Artaud, entre outros.
Régis Hébraud
“Nascido em 1938, em França.
Encontrei Raymonde Carasco em 1955 e casei-me com ela em 1960.
Estudos de Matemática em Montpellier e em Paris (1958-1964).
Estudos de Informática de 1979 a 1985.
Professor de Matemática (e de Informática a partir de 1985) de 1964 a 1999.
Formação em cinema durante a rodagem (operador de câmara Bruno Nuytten) e a realização de Gradiva -Esquisse I (1977-78).
Acompanhei Raymonde Carasco nas 18 viagens ao México entre 1976 e 2001. Tornei-me, a partir de 1977, no seu operador de câmara e de som e no seu montador e realizámos juntos toda a série de filmes Tarahumara.”
Raquel Schefer
Raquel Schefer é investigadora, realizadora, programadora e Professora Associada na Universidade Sorbonne Nouvelle, onde concluiu o seu doutoramento em Estudos Cinematográficos em 2015. Publicou a obra El Autorretrato en el Documental. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT no CEC/Universidade de Lisboa, no IHC/Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Western Cape. É co-editora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana e conselheira de programação do International Film Festival Rotterdam (IDFA). No Hangar — Centro de Investigação Artística, programou, entre outros eventos, o ciclo Seeing Being Seen: Territórios, Fronteiras, Circulações (2020-2022).
Salomé Lopes Coelho
Investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Comunicação da NOVA - FCSH/Universidade NOVA de Lisboa, com um projecto sobre os ritmos da matéria vegetal e inorgânica no cinema experimental latino-americano. Doutorada em Estudos Artísticos (FCSH - UNL), com uma tese sobre ritmo e filosofia, no cinema de Chantal Akerman, Raymonde Carasco e Régis Hébraud. Foi investigadora visitante e leccionou na Universidade Nacional de Artes, Buenos Aires. É co-editora de La Furia Umana - Revista de Teoria e História do Cinema.
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