Entrevista a Jeanne Waltz a propósito de O Vento Assobiando nas Gruas

Gosto de dar liberdade aos espetadores 

O Vento Assobiando nas Gruas, o mais recente filme de Jeanne Waltz, teve estreia mundial no Mill Valley Film Festival (Califórnia, EUA) em outubro de 2023, nas salas de cinema em Portugal e na Suíça em fevereiro de 2024 e voltou a ser exibido, no mês de abril, em três universidades da costa Leste dos EUA. Esta história ficcional da autoria de Lídia Jorge, passada no Algarve durante o boom imobiliário dos anos 90, agora tornada filme, aborda várias dimensões da realidade portuguesa contemporânea: o desengano pós-revolucionário, a imigração cabo-verdiana, a herança colonialista e o racismo. 50 anos decorridos da Revolução dos Cravos, e num momento político em que os valores democráticos estão constantemente a ser postos à prova, este filme convida a uma reflexão sobre o discurso de Portugal como uma sociedade não racista e sobre o imperativo de respeitar todos os seres humanos independentemente das suas diferenças, quaisquer que elas sejam. Foi a propósito desta longa-metragem, com um extraordinário elenco de atores, que conversámos com a realizadora sobre o seu percurso biográfico e os temas que atravessam a sua filmografia.

 

Jeanne Waltz (Basileia, 1962) é uma realizadora suíça estabelecida em Portugal desde 1989. Durante a sua carreira profissional, colaborou com vários realizadores portugueses e desempenhou diversas funções para além do papel de realizadora, nomeadamente, gerente de sala, argumentista e diretora de arte. A sua filmografia inclui diversos títulos, entre os quais, três longas-metragens (Daqui p’ra alegria, 2004; Pas Douce, 2007; O Vento Assobiando nas Gruas, 2023), dez curtas, sendo uma delas de animação (Nós, os Lentos, 2020), produzida no âmbito do mestrado em Artes da Animação (Universidade Lusófona de Lisboa). Embora até hoje não tenham tido a devida atenção por parte da crítica, os seus filmes receberam diversas nomeações e prémios em festivais de cinema internacionais, entre os quais destacam-se o Prémio Revelação para Daqui p’ra alegria (Caminhos do Cinema Português, Coimbra, 2004), e os prémios FIPRESCI (50º Festival de Cinema de San Francisco, 2007) e Melhor Argumento Original (Swiss Film Prize, 2008) para Pas Douce. O conflito existencial, a perda, os deslocamentos, as relações familiares e intergeracionais são algumas das temáticas que atravessam a sua obra.

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Nasceu na Suíça, na parte francófona, viveu em Berlim, estudou japonês, vive em Portugal há mais de três décadas. Considera que essa vivência entre lugares, línguas e culturas está presente nos seus filmes?

Sim, mas acontece sem premeditação. Escrevo sobre pessoas, imaginárias e/ou observadas.  Os temas só depois é que se tornam visíveis. Saí da Suíça com 18 anos, não me sentia propriamente bem inserida lá. Não sei dizer o que há de vivências minhas nos filmes. A realidade é que absorvo muito o que vejo e ouço à minha volta. Os pormenores. Por exemplo, um dia a andar numa rua de Lisboa atrás de três raparigas a falar e a rir, aquela vitalidade adolescente, aquela força intacta entrou no Daqui p’ra Alegria. Era tão fácil a comunicação entre elas… tudo começou ali, nesse grupo de miúdas de origens diversas, embora depois o filme se tenha expandido para outros lugares e ideias.

 

[Daqui p’ra Alegria]

Em Berlin geriu uma sala de cinema e teatro, também já foi assistente de realização, decoradora, cenógrafa e colaborou com vários realizadores portugueses, é argumentista e realizadora. Como é que descreve o seu percurso  e como é já ter desempenhado todos estes papéis?

Cada um tem o seu percurso. Aprender um ofício aos bocados, sem frequentar uma escola, é cada vez mais uma coisa do passado. A verdade é que fiz estas coisas porque as queria fazer, porque me interessavam, e não porque as considerava degraus a subir para chegar a qualquer lado. Gostei de quase todas estas funções. Direção de arte, então, fiquei destroçada quando percebi que se uma pessoa realiza uma curta-metragem que fosse, é provável nunca mais ser chamada para trabalhar noutra coisa. Ser autodidata abre o leque, não há especialização, mas acontece-me cair em enormes buracos de desconhecimento. Em geral, fazer de tudo um pouco significa saber de tudo um pouco, e é útil, independentemente de como se aprende.

Haverá diferenças de género nesse percurso?

As diferenças existem, sim. Há bestas, mas também há carinho. Sempre gostei de guiar as carrinhas grandes, de ser a única mulher na equipa, estas coisas parvas. Vai havendo cada vez mais mulheres em quase todos os postos. Eletricistas, maquinistas, nessas funções nem por isso. Mas as coisas estão a melhorar. As diferenças de classe é que continuam a ser mais difíceis de ultrapassar.

As suas três longas - Daqui p’ra Alegria (2003), Pas Douce (2007) e O Vento Assobiando nas Gruas (2023) - centram-se em torno de perdas de vários tipos. Perda da mãe, do pai, de um filho, da virgindade, da esperança de viver e da capacidade de amar, entre outras. Porquê contar esse tipo de histórias?

A perda também se pode ver como um deslocamento. De facto, muitas das minhas personagens têm um vazio, algo que lhes falta, mais ou menos grave. Nas curtas, há uma dançarina que já não dança, uma mãe cujo filho sai de casa.  Mas, no fundo, isso tem também a ver com a própria natureza das narrativas,  personagens que têm tudo o que precisam, quer na felicidade ou na infelicidade, não há muita coisa para dizer. Isso interessa-me mais do que os eternos conflitos. A ideia de que havendo uma falta, uma perda, criam um desequilíbrio, e as coisas podem mexer e acontecer a partir daí.

Pois. Também nesses filmes encontramos a mesma dinâmica entre adulto e jovem que partilham a experiência de pertencerem a famílias disfuncionais e se reconhecem nas suas semelhanças e diferenças. Essas dinâmicas fora da família biológica tornam-se centrais no percurso de autodescoberta, maturidade e reconciliação com si mesmo.

Bom, parece que eu faço parte dos cineastas que fazem sempre o mesmo filme! [Risos] Parece-me muito normal, e até necessário, que as pessoas ao crescerem fiquem curiosas sobre o que está fora da família, mesmo que essa não seja assim tão má. Este tropo de ter duas pessoas díspares que encontram na outra o que não têm, e entre as quais nasce uma troca útil e frutífera é comum nas artes e na vida.

 

[Pas Douce]

Em 2007, aquando da estreia de Pas Douce, descreveu a protagonista Fred como uma “menina num corpo de adulta” (TéléObs). Há outros exemplos deste tipo de protagonista feminina. A Bruna (em Daqui pr’a Alegria) é uma menina que não o quer ser mais, e que utiliza o seu corpo de mulher nova para conseguir aquilo que deseja. Já a Milene (em O Vento Assobiando nas Gruas) é uma mulher adulta com mentalidade de criança devido à sua neurodivergência. O que têm de atraente estas personagens?

De facto, são personagens algo parecidas, há nelas as três uma grande energia e alguma dificuldade em viver. Mas conseguem. De certo modo, poderia dizer-se que elas vão crescendo de um filme para o outro. Tenho ideia que esse desencontro existe em muita gente. Não somos completamente adultos antes de muito tarde, ou por vezes nunca o seremos. Há sempre resquícios, recaídas, bolsas de infância ou de imaturidade que tendem a vir à tona de vez em quando.

Será por isso que o crítico de cinema Jorge Mourinha ao escrever sobre Pas Douce falou de Fred como um exemplo de “heroína desequilibrada” [“A enfermeira suicida e o adolescente obnóxio,” P2 a 27 de abril de 2007, p. 12]? Concorda com esta leitura?

Desequilibrada é uma palavra que pode significar tarada ou maluca, o que não acho que Fred seja.

Exatamente. E se tivermos de falar em personagens “desequilibradas” talvez tenhamos de dizer “heróis e heroínas”, “pessoas comuns”, já que tanto o Francisco de Daqui p’rà Alegria como Fred tentam o suicídio como forma de se libertarem das suas angústias mais profundas.

Concordo. É verdade que tanto ela quanto o Francisco estão num estado de desequilíbrio.  Mas o que acho mais interessante na Fred é que ela não falha o seu suicídio. Pelo contrário, só tentando morrer e não o conseguindo é que realmente pode recomeçar a viver. Já no caso do Francisco, ele não salta no vazio mas pode dizer-se que morre na mesma. Há nele qualquer coisa de covarde, o seu medo de reviver a perda não o deixa viver.

O Vento Assobiando nas Gruas é a sua primeira adaptação cinematográfica. Por que se interessou por este romance em particular? É bom lembrar que é um romance com quase 500 páginas! 

Há uns anos, andava à procura de um romance português para adaptar. Gosto de livros gordos, onde se tem tempo para passear. O Vento tem personagens fabulosas, um mundo lento, mas variado e fascinante, e pensei logo que apesar de algumas dificuldades poderia funcionar. Funcionar para mim também queria dizer ter camadas suficientes para continuar interessante durante o muito tempo que dura fazer um filme. Contactei a Lídia Jorge que aceitou. Porém, na altura não consegui financiamento e o projeto não avançou, até 2020.

[O Vento Assobiando nas Gruas]

Como foi o processo de adaptação?

Comecei por uma leitura cuidadosa e cheia de notas e papelinhos de cor para perceber primeiro os problemas e, segundo, o que era imprescindível. Só depois comecei a pensar no tratamento, em como organizar as cenas, em como juntá-las. Essa primeira versão ficou bastante comprida, e apesar dos cortes, o guião de rodagem ainda era longo. Quando voltei a pegar nele, não voltei ao livro. Já as personagens para mim tinham ganhado vida própria, não era preciso. A distância permitiu-me trabalhar o material com mais liberdade, pude adicionar cenas onde sentia que faziam falta. Ao argumento, claro, não ao livro. Uma segunda “poda” feroz aconteceu durante a montagem. Muitas coisas tiveram de desaparecer. O filme centrou-se mais na Milene. E ficaram os momentos da chegada à Fábrica e do regresso dos tios após o enterro da avó Regina, assim como o jantar terrível, “a missa negra” como Lídia Jorge lhe chama, com o seu paralelo que é o conselho de família na Fábrica.  É sempre importante deixar pontas soltas, não dizer tudo, deixar liberdade aos espetadores.

E quais são essas pontas soltas?

Quem leu o livro saberá, para quem não leu não interessa. [Risos] Uma das interrogações é simplesmente o que acontece depois. A família da Milene cometeu um crime contra ela. A verdade é que a esterilização de pessoas com dificuldades cognitivas ainda se pratica em Portugal. Mas o Antonino de certo modo também a traiu. E agora? Milene vai conseguir reencontrar uma alegria? Antonino vai aceitar não ter mais filhos? As portas da igreja fecham-se sobre eles. Ficam no escuro. O que vem aí não será fácil. Mas senti necessidade de acabar com uma nota de esperança que não existe assim tanto no livro. Resolvi confiar na força de vida da Milene. Os filhos dos outros podem dar tanta alegria como os nossos próprios.

[O Vento Assobiando nas Gruas]

Em vários momentos do filme, a Milene ouve o álbum Doze Sucessos da cantora norte-americana Cyndi Lauper.  O título do filme em inglês, The Fortunate Ones é parte de um verso de uma das canções desse álbum, “Girls Just Want To Have Fun”, mas para quem conhece o romance de Lídia Jorge este título convoca uma dimensão de ironia e até de paradoxo que não se encontra no romance – já que o final feliz existe às custas de um crime imperdoável. Como surgiu o título em inglês?

A Milene do filme dança ao som de “Girls just wanna have fun”, e a música volta a aparecer no genérico, numa cover maravilhosa cantada por Sofia Grácio. Não fui eu que escolhi este título. The Fortunate Ones foi ideia de um vendedor internacional que acabou por não ficar connosco, mas depois já era tarde para mudar. Seja como for, o final não é feliz. Apenas parece feliz.

Já falamos dos seus filmes e do fascínio que nutre por um certo tipo de histórias. Poderia falar um pouco das suas influências cinematográficas?

Influências mesmo, são as coisas com as quais cresci. Os japoneses dos anos 60, (mas de início não o Ozu, esse veio mais tarde). Faßbinder e a maior influência dele, Douglas Sirk. Também Chantal Akerman. A ficção científica. Céline et Julie vont en bateau. Lina Wertmüller. Lynch. Cronenberg. Chris Marker. Raúl Ruiz.

por Patrícia Martinho Ferreira e Laura Caballero Rabanal
Afroscreen | 12 Junho 2024 | 25 de abril, imigração, Jeanne Waltz, Lídia Jorge, O Vento Assobiando nas Gruas, Portugal